Alfredo Guisado levou a Galiza a Pessoa

17-06-2015 | Nuno Passos

Carlos Pazos é professor do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho e investigador do Centro de Estudos Humanísticos e do GALABRA da USC

Capa do livro "Relações culturais intersistémicas no espaço ibérico", de Carlos Pazos

A revista “Orpheu”, que teve apenas duas edições (março e junho de 1915), foi “o primeiro grito moderno” que se deu em Portugal

Guisado a caminhar pela capital e, à direita, recorte d'"O Notícias lustrado" com os colegas percursores do modernismo - Fernando Pessoa, Almada Negreiros, José Pacheco, Santa Rita Pintor, António Ferro, Mário Sá Carneiro, Raul Leal

Fernando Pessoa pintado por Almada Negreiros, ambos da geração de "Orpheu"

O primeiro livro de Alfredo Pedro Guisado, “Rimas da noite e da tristeza”, saiu em 1913

O Município de Lisboa homenageou postumamente o escritor, dando o seu nome a uma rua de S. Domingos de Benfica e colocando uma placa na residência onde nasceu, no Rossio

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No centenário da revista “Orpheu”, o Centro de Estudos Humanísticos e o Consello de Cultura Galega publicam a tese doutoral de Carlos Pazos sobre o escritor "injustamente esquecido".





É curioso pensar que o modernismo, principal movimento cultural português do século XX, surgiu num restaurante de imigrantes galegos em Lisboa. O “Irmãos Unidos”, em pleno Rossio, servia há precisamente 100 anos para autores como Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros definirem a sua estratégia, juntarem materiais e até obterem apoio económico para editar a revista-ícone “Orpheu”. O filho desses imigrantes galegos, Alfredo Guisado (1891-1975), teve também 13 sonetos naquela revista, por mérito próprio. Mas a História tem-no tratado como “o injustamente esquecido” em Portugal e “desconhecido” na Galiza.

Para entender o cenário, acaba de sair em livro o percurso deste escritor, jornalista e político. "Relações culturais intersistémicas no espaço ibérico" baseia-se na tese de doutoramento de Carlos Pazos Justo, professor do Departamento de Estudos Românicos da UMinho. A edição é do Centro de Estudos Humanísticos da UMinho (CEHUM), do Consello da Cultura Galega – cujo presidente Ramón Villares assina o prefácio – e da Húmus.
 
Guisado contribuiu em particular para enobrecer a imagem da comunidade galega em Lisboa e para iniciar na Galiza a internacionalização do modernismo literário português, realça Pazos. O seu estudo contextualiza também o reconhecimento atingido por alguns escritores da “Orpheu”, em especial no Estado Novo, e as relações culturais em 1910-30, nomeadamente as ideias e práticas da “colónia” galega em Lisboa e as representações sociais que aí havia sobre a Galiza e o seu povo. Carlos Pazos cruzou métodos sistémicos e sociológicos de análise, mormente do francês Pierre Bourdieu, do israelita Itamar Even-Zohar e do GALABRA - Grupo de Estudos da Cultura. “Creio, com humildade, que contribuí para conhecer melhor a literatura enquanto fenómeno da cultura e, também, para entender o quanto a literatura tem de repositório cultural a atuar ideológica e simbolicamente na organização das nossas vidas”, frisa.
 

Um homem multifacetado
 
O livro centra-se naturalmente em Guisado, que “desde a juventude tinha vontade de intervir na sociedade”. Isso é claro na sua adesão a movimentos político-culturais como o galeguismo, nas suas apostas literárias ou no seu vincado republicanismo, chegando a ser eleito como primeiro deputado luso-galego na Assembleia da República, em 1925. “Esta trajetória espelha a vontade dos imigrantes galegos de Lisboa de, após vários séculos, conquistarem novos espaços e capitais”, diz Carlos Pazos.
 
Alfredo Pedro Guisado teve efetivamente uma vida intensa. Como autor lançou 17 livros de poesia, prosa e infantojuvenis. Como jornalista foi diretor-adjunto do diário “República” e trabalhou no “Rebate”, “Século”, “El Tea” e em quatro revistas. E como político foi deputado, governador civil de Lisboa, “vice” da Câmara Municipal de Lisboa e presidente do Conselho Geral das Juntas de Freguesia de Lisboa. Militante do Partido Republicano, opôs-se à ditadura com artigos de jornais e sátiras sob o pseudónimo João de Lobeira ou Domingos Dias Santos. Foi inclusive preso três dias, após o golpe de Estado de Gomes da Costa, em 1928.
 

Elogiado entre os pares
 
E há mais pormenores deliciosos. A ele se deve a opção, enquanto vereador, de muitas ruas e jardins lisboetas terem nome de poeta – ganharia a sua placa póstuma em Benfica (em 1977) e outra na casa onde nasceu (em 2000). Guisado foi ainda dos primeiros licenciados em Direito na Clássica de Lisboa, mas exerceu advocacia só a título gratuito para os pobres. Já na Galiza presidiu à Associação de Agricultores de Pías e foi ativista cívico, sensibilizando, por exemplo, para o papel termal e cultural do balneário de Mondariz, onde a Real Academia Galega realizou sessões literárias. Guisado foi até, imagine-se, colecionador e criador de pássaros.
 
É árduo perceber como uma personalidade tão rica tem sido secundarizada no cânone da História. Nas letras, por exemplo, fica à sombra de Rosalía de Castro e Castelao na Galiza, ou de Pessoa e Sá Carneiro em Portugal. Este último elogiou-o por carta em julho de 1914, um ano antes de “Orpheu”: “Não imagina como me orgulho de as suas poesias se incluírem na mesma escola das minhas obras e das do Fernando Pessoa”. Guisado seguiu por vezes as pisadas estéticas dos colegas intelectuais, como poetar sob o pseudónimo Pedro de Menezes. Este ano, a Casa Fernando Pessoa e a Universidade de São Paulo (Brasil) são duas das entidades que evocam o centenário do modernismo luso. Oportunidades para recordar Guisado e a cultura galega - e não só.



Navegar o rio Minho para vários fins e direções
 
Carlos Pazos Justo decidiu abordar esta figura e o seu contexto quando estudava no Porto, marcado pelas “conversas apaixonadas e na primeira pessoa” do juiz galego-descendente Manuel Miguez. Teve depois no mestrado a orientação dos professores Carlos Cunha e Elias Torres Feijó e, no doutoramento, este último e o professor Xaquín Núñez Sabarís. A edição do livro com prefácio de Ramón Villares “foi uma sugestão feliz” da diretora do CEHUM, Ana Gabriela Macedo, “e generosamente acolhida”. “O amável prefácio manifesta, na sua dimensão testemunhal, possibilidades de navegar o rio Minho para vários fins e em diversas direções”, resume Pazos, que dedica também o volume ao saudoso Carlos Cunha, “por ter acompanhado inteligente e generosamente” o seu início como investigador e pela “notável qualidade humana”.
 
 Nascido há 40 anos em Redondela (Galiza), Pazos é doutorado em Ciências da Cultura pela UMinho, mestre em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa pela UMinho e em Cultura Espanhola Contemporânea pela Universidade de Alcalá, pós-graduado pela Universidade do Porto e licenciado em Filologia Galega e em Filologia Portuguesa pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Na UMinho, foi leitor do Centro de Estudos Galegos e é investigador do CEHUM e professor da Área de Estudos Espanhóis e Hispano-Americanos do Departamento de Estudos Românicos, onde dirige o mestrado em Espanhol Língua Segunda e Língua Estrangeira (b-learning). Colabora igualmente no GALABRA - Grupo de Estudos da Cultura da USC.