A vida nos extremos

21-12-2016 | Nuno Passos | Fotos/Photos: Tony Collins

O investigador do Centro de Biologia Molecular e Ambiental já realizou duas expedições à Antártida, além de colaborações com universidades e empresas de Bélgica, Holanda, Irlanda e Portugal

As xilanases são enzimas que podem ser utilizadas na panificação para fortalecer a massa, deixando o pão maior e mais macio durante mais tempo (foto: iStock)

Há três dezenas de países com bases científicas no continente gelado

O navio de investigação polar é um singelo ponto vermelho na paisagem imponente do continente branco

Os pinguins são os animais mais famosos do extremo sul da Terra (na foto, alguns recém-nascidos da espécie Adélie)

A foca de Weddell vive nas costas geladas do polo Sul e, apesar de selvagem, é um animal calmo e recetivo à presença humana, sendo também por isso alvo de filmes, livros e desenhos animados

A Antártida fascina pela beleza, pela singularidade e pelo mistério. Descobri-la e compreendê-la alimenta o desejo de conquista e testa os nossos próprios limites e capacidades, considera Tony Collins

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A UMinho participa na exploração científica da Antártida. Tony Collins desenvolveu uma enzima de um organismo adaptado ao frio que é agora usada na maioria das panificadoras e padarias do mundo.




Tony Collins nasceu na Irlanda e vive em Braga. Doutorou-se em Bioquímica na Universidade de Liège (Bélgica), foi investigador no Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), em Oeiras, com uma bolsa da Organização Europeia de Biologia Molecular (EMBO scholarship), e está atualmente no Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) da Escola de Ciências da UMinho, como investigador FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia).
 
Trabalha sobretudo em "biotecnologia branca" (aplicada a processos industriais), nomedamente no estudo e desenvolvimento de proteínas para o efeito. Tem-se focado nos seres que vivem em condições extremas, em especial os organismos adaptados ao frio e as suas enzimas, fundamentos e aplicação na indústria. Publicou 
40 artigos científicos e quatro capítulos de livros com 3700 citações e tem duas patentes internacionais, traduzidas com sucesso num produto comercializado em todo o mundo pela Puratos N.V., da Bélgica. Trata-se da enzima xylanase, adaptada ao frio e com utilização na indústria alimentar. Tony Collins gosta de viajar, do contato com a natureza, de surf e de caminhadas.


Como se consegue viver no fundo do oceano?
 
Sabia que só 15% da superfície terreste é adequada à vida humana e das espécies vulgares? Os ambientes a que chamamos extremos são de facto muito comuns e todos estão habitados, sobretudo por microrganismos, que encontram aí condições ideais para sobreviver e prosperar. Por exemplo, os oceanos ocupam 70% da superfície terrestre e caracterizam-se pelas baixas temperaturas e altas pressões; a Antártida e o Ártico estão constantemente gelados; os geysers e furnas em zonas vulcânicas, como os Açores e o Parque Nacional de Yellowstone (EUA), têm temperaturas altas e pH ácido; há também ambientes de grande salinidade, como o Mar Morto e parte da costa de Aveiro e Faro, e lagos de soda dispersos pelo mundo com pH alto.
 
Os limites de resistência de seres vivos estão atualmente estimados entre -32º e 122ºC, entre 0 e 12 unidades de pH, concentrações salinas além dos 35% (aproximadamente 15 vezes mais do que a água do mar) e pressões mil vezes mais altas do que à superfície. Até se encontrou vida microbiana dentro da crosta terrestre e a 10km de profundidade no oceano, os pontos mais profundos e escuros do planeta. E também se encontrou uma bactéria na água de refrigeração de um reator nuclear. A Deinococcus radiodurans suporta uma radiação mil vezes superior à que mataria um ser humano, além de sobreviver a condições extremas de frio, vácuo e desidratação. É o ser vivo mais resistente do mundo para o Livro de Recordes do Guinness e é conhecida como “Conan, a bactéria”.
 
Como pode um organismo crescer eficientemente no frigorífico? Esse é precisamente o local onde os alimentos são frequentemente guardados para reduzir a deterioração microbiana. Como outros organismos podem crescer numa fermentação borbulhante, fervente de vinagre? E como os seus componentes celulares foram adaptados para permitir a vida no extremo? Estas são as perguntas fundamentais que muitos cientistas têm tentado responder nos últimos anos, mas há igualmente um foco no desenvolvimento destes organismos e dos seus elementos para outras aplicações.
 
De facto, os extremófilos já constituem uma componente central da indústria biotecnológica de milhares de milhões de euros, sendo usados no fabrico de biocombustíveis, nos detergentes, na indústria alimentar, na preparação de têxteis e no tratamento de resíduos tóxicos, por exemplo. Crê-se que os estudos revelarão mais segredos sobre estes interessantes organismos e espera-se ainda que a sua utilização na indústria vá crescer e expandir para outros campos.


Desenvolver novas enzimas para a área alimentar, química e farmacêutica

A que se deve o seu interesse pela ciência?
Eu sempre tive gosto pela ciência e em querer compreender como as coisas funcionam. Penso que valorizar a natureza foi influente nos meus passos iniciais para entrar na área das Ciências Naturais.
 
E por seres que vivem em condições extremas?
A natureza, as viagens e lugares belos e selvagens, como a Antártida e o Ártico, sempre me fascinaram. Até me propus, sem sucesso, ao British Antarctic Survey, no Reino Unido, para uma expedição à Antártida quando era estudante. Mais tarde, no meu projeto de mestrado na empresa Genencor-DuPont, na Holanda, tive oportunidade de trabalhar com extremófilos, onde estudei enzimas dos lagos de soda em África para uso em detergentes. Depois disso, o meu doutoramento, com o professor Charles Gerday, um dos principais especialistas na área das enzimas adaptadas ao frio, potenciou obviamente o meu interesse e conhecimento pelos extremófilos.
 
Quais são as principais marcas do seu percurso? Que descobertas já fez?
Ter um estudo científico concluído com sucesso até ao fim: desde trabalho de campo a recolher amostras na Antártida até aos estudos fundamentais em laboratório, seguindo-se a concessão de duas patentes mundiais para um produto final comercializado em todo o mundo que é usado no fabrico de produtos que eu próprio consumo regularmente. É um exemplo de como um estudo fundamental (estudar a vida no frio) pode ser a base para um novo produto comercializado (uma enzima, xilanase, usada na panificação).
 
Que projetos tem em mãos? E que parcerias com academias e empresas tem tido?
Na Bélgica colaborei com várias entidades, nomeadamente a Universidade de Liège, a Universidade de Ghent e a empresa Puratos N.V. Inicialmente, no CBMA, trabalhei com a equipa da professora Margarida Casal num projeto diferente, focado em aumentar os níveis e reduzir os custos de produção de proteínas de interesse industrial. Recentemente, reiniciei a investigação de enzimas extremófilas em parceria com a Universidade de Liège, na Bélgica, e a University College Cork, na Irlanda. Além disso, como parte do projeto EcoAgriFood, no CBMA queremos identificar e desenvolver novas enzimas para o tratamento de resíduos da indústria alimentar e a transformação em produtos de valor agregado. Esperamos colaborar com empresas de alimentos e bebidas do Norte de Portugal.
 
Qual é o seu principal objetivo na investigação a médio prazo?
Desenvolver técnicas para isolar e otimizar enzimas de interesse industrial e expandir o conhecimento na área das enzimas utilizadas na preparação de produtos farmacêuticos e químicos.
 
Se apenas 15% do planeta é habitável pelo Homem, e se este gera cada vez mais ambientes extremos, o que se segue?
O mundo torna-se um lugar mais difícil e indesejável para viver para nós, seres humanos. Esperemos que uma mudança social rumo a um modo de vida mais sustentável e eco-friendly vá reduzir o impacto.
 
No seu entender, a que deve o fascínio do Homem por regiões-limite do planeta?
Talvez devido à beleza e singularidade desses lugares, mas também pelo mistério a eles associado. Descobrir e compreender esses ambientes provavelmente também alimenta o nosso desejo de conquista, ao mesmo tempo que testa os nossos próprios limites e capacidades.