“Nós somos muitas coisas”

28-04-2017 | Nuno Passos

A transmissão da memória entre gerações não se faz com pessoas isoladas frente a um ecrã, defende

Junto ao primeiro cartaz do observatório de cinema, um projeto inovador que tem sido acarinhado pelo público e pelos media

Na apresentação do Close-Up, com Álvaro Santos, diretor da Casa das Artes de Famalicão

Casa cheia de público infantil para ver uma película da saga "Monsieur Hulot", em março de 2017

Pormenor do átrio da Casa das Artes de Famalicão, anunciando a animação "Marnie", em janeiro de 2017

A fachada da Casa das Artes de Famalicão (foto: ComUM)

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Vítor Ribeiro

Fez a licenciatura em Engenharia Civil e o mestrado em Estudos de Cinema e Literatura. É atualmente diretor do Cineclube de Joane, coordenador do observatório Close-Up e programador de cinema da Casa das Artes de Famalicão.


Quais são as suas origens?
Nasci em Pousada de Saramagos, Famalicão, muito ligada à área têxtil e à empresa Riopele. Tive uma infância pacata e feliz. Estudei na Didáxis, em Riba d’Ave e na Escola Secundária de Joane.
 
Porque decidiu estudar Engenharia Civil na UMinho, uma área bastante diferente daquela em que está hoje?
Nós somos muitas coisas. Se calhar, foi o meu lado pragmático de procurar uma formação que me desse trabalho, se possível bem remunerado. Já no 9º ano tive dificuldade em optar entre Humanísticas e Ciências. Sempre gostei de Matemática e isso ajudou na escolha. Já a meio da licenciatura em Engenharia Civil hesitei, mas nunca quis desistir, por norma levo as coisas até ao fim. Fui um aluno mediano, o que era estranho, pois no secundário era bom aluno.
 
Como foi a integração?
Muito fácil. O campus de Azurém era pequeno, parecia-me uma escola secundária um pouco maior em termos de edifícios, da relação com as pessoas, da ligação amistosa com Guimarães. Sentia era falta de áreas diferentes de estudo, que levam a um maior cruzamento de pessoas e interesses – e uma universidade é também isto. De resto, procurei aproveitar a vida social e cultural da academia. As atividades notívagas fazem parte desse período e do desenvolvimento da personalidade. Ia com regularidade ao Cineclube de Guimarães, tal como, curiosamente, um arquiteto que me dava aulas de Planeamento e Urbanismo e era porreiro. Uma noite disse-me: “Então está aqui e ainda não acabou o trabalho para me entregar amanhã?”. [sorriso]
 
Como foi a entrada no mercado de trabalho?
Felizmente, comecei logo a trabalhar. Entrei para a função pública há vinte anos, para a Divisão de Habitação do Município de Famalicão. Fazia projetos e acompanhamento de construções de habitação social e a custos controlados. Em 2002 fui para o Município de Vila do Conde e aí fiquei 14 anos. O seu parque habitacional cresceu cerca de 600 casas. Foi quando senti mais satisfação e mais desafios na engenharia civil: era um trabalho exigente de conceção, projeto e acompanhamento. Levou-me por exemplo a investigar sobre certos materiais, sobre programas de informática e a obter skills para lidar com os desenvolvimentos na área. Depois, a 2 de maio de 2016, assumi funções de apoio à programação de cinema na Casa das Artes de Famalicão.
 
Onde entra o mestrado de Mediação Cultural e LiteráriaEstudos de Cinema e Literatura?
Eu era muito autodidata. Sentia que precisava de alguma sustentação académica, até para me confrontar e aprender outras coisas. O curso do Instituto de Letras e Ciências Humanas [ILCH] veio na hora certa, em 2010. Digamos que a minha paixão pelo cinema surgiu na adolescência, seja pelos filmes na TV como pela ida às salas. No final da licenciatura fundei o Cineclube de Joane, com o Joaquim Forte, que está hoje no Centro Ciência Viva de Guimarães. Também fiz guionismo, embora com poucos resultados. Escrevi a longa-metragem “Humberto”, uma ficção sobre uma pessoa real, e levei-a ao concurso de argumentos do Instituto do Cinema e Audiovisual, em 2008. A minha dissertação de mestrado, “Em teu ventre”, é outro guião e a escrita desse processo. Cruza “As afinidades eletivas”, de Goethe, com um sonho que tive.
 
Foi um estudante aplicado?
Sim, sim, apliquei-me a fundo. Ao contrário da licenciatura, tinha outra maturidade como aluno e como pessoa. Sabia o que me interessava. Por exemplo, os docentes a abordarem a Estética e a Literatura. Em várias aulas desafiavam-nos também a levar novas propostas; como gosto de “contaminar” e “ser contaminado”, trouxe muitas coisas do cinema e isso funcionou bem. Guardo boas memórias do curso. Alguns colegas do mestrado estão até a colaborar comigo.
 
Que balanço faz do Cineclube de Joane?
O seu objetivo inicial era divulgar cinema. O concelho só tinha duas salas, uma em Famalicão (da Lusomundo) e outra no centro cultural de Joane. Foi nesta vila que o Cineclube nasceu, aproveitando aquele espaço para exibir as sessões e a centralidade entre Famalicão, Guimarães, Braga e Vizela. Em 2002, quando a Casa das Artes foi inaugurada, o Cineclube foi convidado pelo município a mudar-se para esse espaço, onde prossegue a sua atividade intensa.
 
Como surgiu o Close-Up - Observatório de Cinema?
Vem na sequência desse trabalho de muitos anos e de querer criar um evento sobre cinema que fosse diferente de um festival, até porque não é apenas algo que acontece durante uma semana: é uma produção do Teatro Municipal, a Casa das Artes de Famalicão, e procura ter uma atividade permanente. Também não queríamos que tivesse apenas a habitual secção competitiva de curtas-metragens. Queríamos sim um olhar detalhado, cruzando cinema clássico com produção contemporânea, tendo um conjunto de filmes comentados e envolvendo a comunidade, como as escolas. O facto de ser um formato novo serve-nos de combustível e tivemos uma boa aceitação do público e da comunicação social.
 
Quais são os próximos projetos?
A primeira edição do Close-Up, sob o tema “Memória”, teve 25 sessões durante quatro dias, em outubro, depois programação de dois em dois meses e vai fechar nos dias 12 e 13 de maio, com o documentário “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann, sobre o genocídio dos judeus e que assinala os 70 anos sobre o Holocausto. Dura nove horas e meia, por isso dividimos em quatro sessões. É uma obra incontornável e altamente desafiante: é das primeiras vezes em que não sei que espectadores terei. Em relação ao II Close-Up, será de 14 a 21 de outubro, com o tema “Viagem”. É possível que gere alguma expectativa, é como o segundo álbum de uma banda que teve sucesso na estreia. Vamos ver. Já o Cineclube de Joane mantém a sua programação intensa. A próxima exibição é a 4 de maio: “Aquarius” (2016), do brasileiro Kleber Mendonça Filho e com Sónia Braga. É uma atividade contínua. Antes parava em agosto, mas a convite do município passamos também a programar cinema ao ar livre nesse período, no Parque da Devesa.
 
Como é o seu dia normal?
Diversificado. Tanto pode ser investigar e ler conteúdos, definir agendas, ir a um festival, fazer contactos, resolver questões administrativas ou, claro, programar ainda cinema para o grande público; teremos agora “A Bela e o Monstro” (2017) em cartaz na Casa das Artes, por exemplo.
 
Que visão tem da relação entre a academia e a cultura?
Tenho uma opinião cada vez mais positiva. Por exemplo, no Close-Up todas as sessões são comentadas antes ou depois do filme. Grande parte dos convidados são do mundo académico, que é cada vez mais aberto a estas “contaminações”. Nos últimos 15 anos surgiu muita gente com formação e trabalho interessante nesta área. Quando estava no mestrado programei com o professor Orlando Grossegesse um ciclo dedicado ao realizador alemão Werner Herzog e esse cruzamento entre a sociedade civil e o mundo académico funcionou bem. A universidade só ganha com essa abertura ao exterior.
 
Pensa voltar a estudar ou desenvolver projetos na UMinho?
Talvez daqui a uns anos, quando encontrar um tema para a tese de doutoramento na área do Cinema e da Literatura. Uma crítica que faço ao mundo atual é a rapidez com que se fazem mestrados e doutoramentos engatados. Olho para isso com alguma desconfiança. Estas formações suplementares devem advir de interesses construídos.
 
Que desafios pessoais e profissionais gostava de realizar?
Neste momento quero consolidar o que estou a fazer. Se a pergunta me tivesse sido feita há três anos, responderia que queria transformar a minha “segunda vida” fora de horas noutra coisa mais intensa.
 
No fundo, pretende criar alguma centralidade de Famalicão na sétima arte?
O Carlos Natálio, editor do portal À Pala de Walsh, definiu Famalicão como “a cidade cinema”. Sim, queremos ser isso. Nas divulgações dos teatros municipais nacionais o cinema vem quase sempre no último parágrafo. Nós queremos colocá-lo em igualdade com a música, a dança, o teatro. Tal como a música vai desde o pop ao erudito, o cinema tem várias vertentes – e queremos levá-las ao público.
 
E como contrariar a aparente tendência de se ver cinema em casa?
É uma problemática crescente nos últimos anos. Há mais facilidade em aceder a filmes através de outras plataformas. Eu continuo a defender que nada substitui a exibição pública em condições. A nossa projeção é digital (DCP) e percebe-se a diferença face a um pequeno monitor em casa. Aliás, mais do que entretenimento, é uma experiência social. Acredito que a transmissão de memória entre gerações não se faz com pessoas isoladas frente a um ecrã.
 


Curiosidades
 
Um livro. “As afinidades eletivas”, de J. W. Goethe, pela relação com a minha tese de mestrado, quero ver se não “desisto” do guião.
Um filme. É uma escolha dificílima. “Sunrise” (1927), de F. W. Murnau. O filme mudo não é uma forma primitiva de linguagem, antes pelo contrário – este é sofisticadíssimo.
Um disco. “The head on the door”, dos The Cure. Remete à minha adolescência e juventude.
Um desporto. Futebol.
Um clube. FC Porto.
Um passatempo. Filmes e livros. Por exemplo, estou a ler “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Gosto de literatura com “L” maiúsculo, essa foi uma razão para estudar no ILCH.
Uma viagem. A ida a São Francisco, Los Angeles e Nevada, nos EUA. No facebook brinco que sou de Los Angeles, é a ideia de que sou produto do cinema. Mudava-me para lá facilmente. Gostava também de conhecer o Sul dos EUA, do Texas a Georgia.
Um prato. Tripas à moda do Porto, peixe frito à alentejana, um bom vinho maduro.
Um vício. Cinema.
Uma personalidade. William Shakespeare. A sua obra atravessa séculos e vai perdurar.
Um momento. O nascimento da minha filha Maria Madalena, há nove anos.
Um sonho. Vê-la crescer.
Uma frase. "Não gosto da vida verdadeira e por isso me dedico à ficção. Se a literatura não existisse, eu mesmo a inventaria", do espanhol Enrique Vila-Matas, no livro “Ar de Dylan”.
A UMinho. Um sítio para voltar. É das coisas mais importantes que temos na região. Desejo uma UMinho forte para o futuro. O que de melhor devemos deixar aos vindouros é a educação e a formação.