Há 800 mil cuidadores informais a necessitar de apoio psicológico

30-04-2018 | Pedro Costa

Maria da Graça Pereira venceu o Prémio Investigação 2018 da Escola de Psicologia pelo seu trabalho na área da saúde, bem-estar e rendimento.




A docente e investigadora Maria da Graça Pereira coordena a Unidade de Investigação em Saúde, Bem-Estar e Rendimento do Centro de Investigação em Psicologia (CiPsi) na UMinho. Fez o doutoramento na Universidade do Estado da Flórida (EUA), na área da Medicina Familiar Sistémica e Prática de Terapia Familiar Médica e fez a agregação em Medicina, na Universidade do Porto, na área de Investigação Clínica e Serviços de Saúde. Já lecionou na Florida State University e nas universidades de São Paulo, Federal de Minas Gerais e Federal de São João del-Rei, todas no Brasil. A sua carreira envolve um profundo estudo em torno do trinómio família, saúde e doença, com foco no impacto psicossocial e psicofisiológico das doenças crónicas nos pacientes e cuidadores/familiares; o impacto físico e psicologico do stress em grupos vulneráveis, incluindo o stress traumático e o crescimento pós-traumático; a promoção da saúde individual/familiar, particularmente os estilos de vida saudáveis em populações clinicas e não clínicas, no sentido de promover a qualidade de vida e o bem-estar além da educação interprofissional em saúde. Essas linhas demarcam a sua posição enquanto cientista especializada. A professora associada com agregação da Escola de Psicologia da UMinho acredita que se constitui um desafio atual combater a continuidade de “uma crença de que o corpo é uma entidade separada da mente”.

 
Que caminho de investigação seguiu e a que se deve essa opção?
As questões da saúde e do comportamento humano sempre me fascinaram e já ao nível da licenciatura acreditava que as repercussões da doença não se manifestavam só a nível físico pois nessa altura já só restava uma intervenção remediativa. Eu estava enamorada por todas as manifestações da doença, incluindo o mal estar que ela já provocava anteriormente à sua manifestação física, durante a doença e o seu posterior impacto no doente e na família. Percebi que precisava de uma visão mais holística e sistémica. Assim, no final da minha licenciatura decidi estudar terapia familiar nos EUA e perceber o significado dos sintomas num contexto sistémico. No final do mestrado candidatei-me a uma instituição onde pudesse colocar em pratica os meus conhecimentos. Neste caso, uma que dava apoio a famílias em crise, famílias de adoção e de acolhimento e pessoas sem abrigo. Consegui ser selecionada. Nesse ano tive a oportunidade de trabalhar com famílias problemáticas, de varias etnias e diferentes níveis socioeconómicos. Aprendi imenso e no final decidi prosseguir estudos. Consegui entrar para um programa de doutoramento conceituado e aprovado pela Associação Americana de Terapia de Casal e Familiar, na Flórida. E foi a partir daqui que a minha investigação começou a ter um sentido. Aprendi imenso com um famoso professor na área da psicologia, psiconeuroimunologia e traumatologia e ganhei uma bolsa enquanto aluna de doutoramento para dar apoio às famílias dos veteranos do Vietname.

Começava a desenhar-se o seu caminho...
Sim. Medicina familiar sistémica e terapia familiar médica eram áreas novas que me fascinavam e decidi estudá-las profundamente. Foi-me dada a oportunidade de estagiar no Hospital da Capital da Flórida em medicina familiar sistémica, onde integrei a equipa de medicina do comportamento e, tal como os internos de medicina, também fazia as rondas de manhã aos doentes. Participei na formação psicossocial desses médicos e permitiram-me ainda lecionar módulos aos primeiros anos da Escola de Medicina e colaborar na disciplina "Mind, Body and Medicine". No final do estágio já preenchia todos os requisitos para ser, além de membro, supervisora clínica da Associação Americana de Terapia de Casal e Familiar, um dos objetivos de quem investia e trabalhava na área. Foi sem dúvida um trabalho pioneiro que me deu muita gratificação e do qual me orgulho.

Quando voltou a Portugal?
Apesar de me ter sido proposta a possibilidade de continuar, decidi voltar para Portugal e, já na UMinho, continuei os estudos de investigação. Em Portugal estava a emergir um campo novo, o da psicologia da saúde, e foi exatamente aí que centrei o foco da investigação. As minhas primeiras publicações foram na área da medicina familiar sistémica, mais concretamente sobre a colaboração entre médicos de família e psicólogos, bem como no estudo do trauma em grupos vulneráveis, nomeadamente os veteranos da guerra colonial, continuando a mesma linha das famílias dos veteranos do Vietname. Centrei-me assim no impacto do trauma no veterano e na família, sobretudo as esposas e filhos. Como docente na área da psicologia da saúde, a minha investigação também se debruçou, por essa altura, no estudo do impacto da doença crónica nos doentes, familiares e cuidadores, que até hoje mantenho, juntamente com a promoção da saúde individual e familiar, continuando os estudos em grupos vulneráveis e a educação interprofissional em saúde.
 
Fez um percurso vanguardista e difícil. Como vê o seu percurso até agora?
Sim, sempre estudei áreas emergentes onde o papel do psicólogo ou as variáveis psicológicas necessitavam de mais investigação. Mesmo na Universidade do Estado da Flórida, os temas de pesquisa em que estava envolvida eram vanguardistas. Relembro que na altura, no Instituto de Traumatologia da universidade, procurávamos o ingrediente que fazia a diferença na intervenção no trauma. Foram chamados os proponente de todas as terapias mainstream e terapias alternativas que se conheciam para serem alvo de avaliação de eficácia. Eu tive a oportunidade de integrar essa equipa. Em Portugal, muitas dessas terapias eram perfeitamente desconhecidas. Na verdade, só há relativamente poucos anos se começou a falar delas, mas tive a oportunidade de as conhecer e estudar em 1994Na UMinho ajudei a sedimentar a área da psicologia da saúde na formação ao nível do mestrado e doutoramento. Além disso, tive oportunidade de ser docente e ainda coordenadora do curriculum psicossocial da Escola de Ciências da Saúde [atual Escola de Medicina] e da Escola Superior de Enfermagem. Aliás, a colaboração da psicologia na formação dos profissionais de saúde sempre foi e continua a ser um foco do meu interesse como investigadora, ao nível da educação interprofissional em saúde.
 
Investigou e trabalhou muito fora do país. Opção ou inevitabilidade?
Foi uma inevitabilidade, pois em Portugal não podia estudar aprofundadamente como desejava e fazer a investigação que pretendia. Nos EUA tive a oportunidade, no final do mestrado, de aplicar os conhecimentos sobre intervenção sistémica numa instituição que me permitiu trabalhar com casos muito diversificados e de culturas diferentes. No doutoramento foram-me dadas também muitas oportunidades, quer ao nível curricular como no estágio no hospital universitário, que não teria tido em Portugal.


O paciente e o cuidador estão no centro do sistema de saúde
 
Como está hoje a investigação na sua área, quando a compara com o que havia quando começou?
Obviamente que muita coisa mudou. Hoje, psicologia da saúde é uma área bem sedimentada com muita investigação e, especificamente a psicologia clínica e da saúde é uma das especialidades reconhecidas pela Ordem dos Psicólogos. Dizer isto, só por si, responde à questão. Além disso, a minha investigação tem-se focado desde o início na psicologia da saúde familiar; atualmente, o meu grupo de investigação em Saúde Familiar & Doença é composto por uma equipa interdisciplinar, contando com alunos de doutoramento de diferentes formações, como enfermagem, medicina, ciências da nutrição, sociologia da saúde, além de psicólogos, naturalmente. E isto é sem duvida uma evolução! Além disso, este grupo está focado em abordagens diversas que há uns anos seriam bem mais difíceis de operacionalizar, como o estudo do impacto de um aroma hedónico em mulheres com cancro da mama a receber quimioterapia ou o estudo de variáveis psicológicas em pacientes com lombalgia a receber acupunctura ou tratamento quiroprático, ou ainda o impacto do relaxamento na cicatrização de úlceras, para citar apenas alguns exemplos.
 
Sendo uma especialista em doença crónica, particularmente no impacto ao nível dos cuidadores, que pertinência encontra nas preocupações atuais desta problemática?
Com o envelhecimento da população, o paciente e o cuidador estão no centro do sistema de saúde. Na verdade, se as doenças crónicas associadas a este envelhecimento não forem adequadamente tratadas, as consequências podem ser graves. Se não houver uma integração dos cuidados, pequenos problemas podem escalar em verdadeiras emergências médicas que resultarão em hospitalizações desnecessárias, maior mortalidade e mais custos de saúde. Os cuidadores informais que cuidam de pessoas dependentes são mais de 800 mil em Portugal, sobretudo mulheres entre os 45 e 75 anos, segundo as estimativas - e precisam de atenção! Os cuidadores tem sido alvo dos nossos estudos e, na verdade, precisam de apoio psicológico. Os níveis de sobrecarga e distress são muito elevados. Além disso, não recebem formação e nem sempre têm estratégias ou recursos que lhes permitam ter uma melhor adaptação à doença do familiar, com implicações na sua qualidade de vida e na sua saúde mental. Por isso, descuram a saúde para assistir o membro familiar, colocando em risco o seu bem-estar. Os resultados dos estudos revelam que os cuidadores apresentam pior saúde física e mental e maior morbilidade psicológica, comprometendo a sua capacidade para continuarem a ser cuidadores. Também podem existir consequências positivas em simultâneo com as negativas, não é tudo negativo! Os cuidadores precisam de sentir competência e controlo, possuírem competências de resolução de problemas e de interação com o sistema de saúde, de forma a negociar o suporte que precisam, bem como informação sobre a doença. Sei que vai ser criado o estatuto de cuidador informal - julgo que o processo legislativo estará terminado no final do verão -, que vai de certeza ser benéfico e que deveria incluir apoio psicológico. O meu grupo de investigação tem-se debruçado sobre cuidadores informais na doença oncológica e Alzheimer, em particular.

Quais são os desafios contemporâneos em torno da linha de investigação a que se dedicou?
A meu ver, o grande desafio é mostrar como as variáveis psicológicas são importantes como moderadoras ou mediadoras nos processos de saúde e doença; ou seja, enquanto o individuo não for tratado numa perspetiva biopsicossocial, o foco continua na árvore, esquecendo-se a floresta! O desafio, a meu ver, é assim saber focar nos dois níveis conforme as necessidades, sem dar primazia apenas a um. Parece que dois séculos depois de Descartes, numa era em que assistimos a tantos desenvolvimentos tecnológicos, continuamos agarrados à crença de que o corpo é uma entidade separada da mente. O meu profundo desejo é poder continuar a contribuir e assistir à implementação dos cuidados de saúde integrados.
 
De que forma se pode concretizar isso?
Como é do conhecimento público, os cuidados de saúde primários fornecem cerca de 50% dos serviços de saúde mental. Além disso, os adultos com doenças mentais ou uso de substâncias também apresentam taxas elevadas de doenças crónicas. Os pacientes com taxas elevadas de problemas de saúde física também apresentam concomitantemente problemas de saúde mental. Logo, é o "casamento ideal" se queremos diminuir os custos de saúde e ter resultados positivos. Além disso, muitos doentes podem não ter condições de receber cuidados de saúde mental se não for desta forma integrada. Por exemplo, aproximadamente 75% dos adultos com depressão procuram os médicos de família, mas apenas metade é diagnosticada corretamente. Por outro lado, quando o médico de família refere um doente para um profissional de saúde mental, só metade é que de facto comparece. Isto significa que muitos problemas psicológicos não são detetados e tratados. É sabido que as pessoas com doenças mentais severas morrem mais cedo, do que a população geral, perante condições médicas que podem ser tratadas por um profissional dos cuidados de saúde primários. Os cuidados de saúde primários são assim a porta de entrada dos cuidados de saúde mental! No fundo, é aumentar a acessibilidade e ir a uma só “loja”: ter tudo no mesmo local! O desafio, ao nível dos profissionais de saúde, passa também pela educação interprofissional em saúde, isto é, como diferentes profissionais podem colaborar e falar uma linguagem comum. Tudo o que eu possa fazer para apoiar a integração dos cuidados de saúde será sempre o principal objetivo: contribuir para cuidados mais compreensivos, personalizados e centrados no paciente. Num sentido mais amplo, o meu grupo de investigação pretende contribuir para a redução dos custos associados às doenças crónicas, assim como para criar políticas da promoção da saúde no sentido da otimização dos programas de intervenção, ao nível do Sistema Nacional de Saúde (SNS).
 
Onde e como pensa estar daqui a dez anos?
Gostaria de estar a investigar a eficácia dos cuidados integrados no SNS, mas também a eficácia de várias abordagens agora consideradas alternativas ou complementares à medicina convencional, isto é, num nível de integração diferente, não só a integração entre a saúde física e mental, mas também entre a medicina mainstream e as terapias complementares e/ou alternativas. Assim, daqui a uma década gostaria de estudar também o impacto psicológico de abordagens complementares aliadas à medicina convencional nos cuidados de saúde, suportada por investigação rigorosa, ao nível da adaptação à doença e qualidade de vida. Na verdade, o novo paradigma da medicina integrativa está a surgir e cada vez mais os doentes têm escolhido estas novas modalidades, logo exige-se o estudo rigoroso do seu impacto psicológico!
 
O que representa para si o reconhecimento da EPsi no prémio que lhe atribuiu?
Fiquei muito satisfeita, porque todo o meu desenvolvimento desde que cheguei aconteceu aqui. Há associado um grande sentimento de gratidão para com a Escola de Psicologia e para com o CiPsi, que me deram todas as oportunidades e me viram crescer. Por outro lado, é gratificante obter o reconhecimento do meu trabalho, pela investigação que produzo. Estou muito grata e espero continuar a merecer!