A Biblioteca Pública de Braga está a ganhar um conceito novo

19-10-2018 | Nuno Passos

Elísio Araújo completa em breve dez anos como diretor da BPB, após ter sido o primeiro diretor da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva e de ter passado pelas bibliotecas da UMinho (foto: Nuno Gonçalves)

Na sala do Fundo Antigo da BPB (foto: Nuno Gonçalves)

A entrevista decorreu ainda na icónica sala do Arcaz, onde está atualmente o Fundo de Reservados da BPB (foto: Nuno Gonçalves)

Elísio Araújo é apaixonado pelos livros e pelas bibliotecas e um acérrimo defensor da memória, da conservação e da divulgação cultural (foto: Nuno Gonçalves)

A sala Manuel Monteiro, com a sua livraria pessoal e decoração cuidada, é um espaço de visita obrigatório (foto: Nuno Gonçalves)

A emblemática ala medieval do complexo Largo do Paço é uma das áreas ocupadas pela BPB

A sala de leitura, de teto em talha do século XVIII e mobiliário cuidado, voltou a ser reocupada pela BPB, e das suas janelas vislumbra-se um bucólico jardim interior com fonte, num cenário inspirador para leituras e pensamentos

O salão medieval da UMinho servia nos anos 1990 de sala de leitura da BPB e era muito concorrido em vários períodos letivos

As visitas guiadas pelo acervo da BPB são comuns

As exposições temporárias no átrio da BPB promovem o seu espólio e têm cativado públicos diversificados (foto: José Gomes/BPB)

Inauguração da exposição do livro 'Hortus Sanitatis' (1496), nos 175 anos da BPB, com Rui Vieira de Castro, Elísio Araújo e Ricardo Rio (foto: Avelino Lima/Diário do Minho)

Um dos momentos expositivos das comemorações dos 100 anos do Theatro Circo (foto: José Gomes/BPB)

A conferência/mostra sobre o património musical da Misericórdia de Braga foi outra parceria recente da BPB com a sociedade (foto: José Gomes/BPB)

"O Mundo em 80 m2", a retratar o percurso da BPB, foi exibido no outono de 2014 na Reitoria e considerado um momento marcante (foto: Isabela Pereira/Académico)

A mostra "100 anos de Jorge Amado" esteve patente na galeria do salão medieval da Reitoria no verão de 2012

A primeira sessão de "Um Escritor Apresenta-se" contou com Maria Ondina Braga, no Museu Nogueira da Silva, a 28 de abril de 1983, sob organização de Henrique Barreto Nunes, da BPB

Antiga sala de leitura da BPB nos Congregados, em 1905 (foto: Manuel Carneiro/ASPA-MNS)

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Elísio Araújo

Entrevista ao diretor da BPB, no âmbito do ciclo de conversas com os diretores das unidades culturais da UMinho.


A Biblioteca Pública de Braga (BPB) surgiu a 13 de julho de 1841. Com que objetivo?
Em 1834 é publicado o decreto que extingue as ordens religiosas. Como consequência, os conventos ficam “despovoados” e sujeitos a todo o género de apropriações indevidas. Para salvaguardar e recolher as livrarias destes conventos é publicada legislação que previa a criação de bibliotecas nas capitais de distrito. O primeiro bibliotecário da BPB, Manuel Rodrigues da Silva Abreu, foi nomeado a 27 de julho de 1840, por indicação de Almeida Garrett, de quem era amigo e correligionário no exílio. Amante dos livros, bibliófilo e bibliógrafo, interessado pela ciência das bibliotecas, onde chega a editar publicações de caráter técnico, este bibliotecário vai ter um papel absolutamente decisivo na fundação da BPB. No ano seguinte, em 13 de julho de 1841, uma carta régia de D. Maria II cria a Biblioteca Pública de Braga, que fica instalada no convento dos Congregados do Oratório, na Avenida Central, onde hoje fica o Departamento de Música e a Unidade de Arqueologia da UMinho. Porém, os primeiros tempos de existência não foram tranquilos para este bibliotecário, pelo contrário, permanentes conflitos preenchiam os seus tempestuosos dias. Alberto Feio, no Boletim da Biblioteca Pública e do Arquivo Distrital de Braga, narrou, de forma preciosa, os problemas diários do bibliotecário nestes primeiros e conturbados tempos: ter os soldados de um lado para o outro, chegar de manhã e encontrar portas arrombadas porque lhe foram tirar livros para fazer fogueiras ou para calçar uma mesa; ter que pagar do seu bolso as obras do carpinteiro para arranjar as portas arrombadas; ter o reitor do Liceu Nacional de Sá de Miranda, que aqui iniciou a sua atividade, a viver no edifício e haver risco de incêndio (em divisões como a cozinha o uso do fogo era habitual)... Naquele período, o edifício albergou ainda algumas repartições públicas e até servia de quartel para soldados, em plena Revolução da Maria da Fonte. 

Donde provinham as primeiras obras da BPB?
Dos conventos do Carmo, Falperra, S. Frutuoso, Pópulo e Tibães (Braga); Franqueira, S. Francisco, Palme e Vilar de Frades (Barcelos); Rendufe e Bouro (Amares); Arnoia (Celorico de Basto); Refojos e Colégio S. Bento (Cabeceiras de Basto); e S. António dos Capuchos, Casa da Cruz, Costa, S. Domingos e S. Francisco (Guimarães). Falecido Manuel Rodrigues da Silva Abreu em 1869, a BPB viveu períodos difíceis até à nomeação de Alberto Feio como seu responsável, em 1911. A incorporação das livrarias das casas congreganistas entretanto extintas e as de outras instituições religiosas veio agravar a situação da exiguidade das instalações. A solução apontada era a da recuperação do antigo palácio do Arcebispo D. José de Bragança, destruído por um incêndio em 1866 e que se encontrava em ruínas. Para esta solução, aprovada pelo Governo em 1918, contribuíram decisivamente alguns notáveis bracarenses, de que se pode destacar o papel de Manuel Monteiro, primeiro governador civil de Braga após a República, cuja livraria a BPB detém, em sala com o seu nome.
 
É onde está agora.
Esta entrevista decorre no espaço do palácio que foi totalmente remodelado e adaptado para alojar a Biblioteca Pública e que foi inaugurado em 1 de dezembro de 1934. As obras de renovação do antigo Paço Arquiepiscopal decorreram até 1950, estendendo-se a biblioteca para espaços como o salão medieval e o salão nobre. Mais propriamente, esta sala é parte da antiga capela de D. José de Bragança. A mudança era urgente, uma vez que, para além do que referi, foi criado, em 1917, o Arquivo Distrital, apenso à BPB nos Congregados, o que tornou aquele espaço ainda mais exíguo. Para além disso, a BPB passou a ser beneficiária do depósito legal desde 1931, o que constituiu um claro benefício em termos de enriquecimento do fundo documental, mas que ainda veio agravar mais a situação da falta de espaço.
 
Quais foram os benefícios de esta Biblioteca ser integrada na UMinho em 1975/76?
Na altura ficámos com menos espaço devido ao facto de o complexo do Paço passar a acolher a Reitoria da UMinho, alguns serviços e julgo que até houve cá algumas aulas. Contudo, a integração na Universidade do Minho trouxe enormes benefícios à Biblioteca Pública, nomeadamente no que diz respeito à conservação do edifício; ao quadro de pessoal, o que permitiu encarar de frente o tratamento de fundos documentais; na aquisição de mobiliário e equipamentos. Mas destacou-se, sobretudo, a estabilidade que esta integração veio trazer à BPB. É preciso não esquecer que esta foi a primeira biblioteca da Universidade e foi aqui que nasceram os Serviços de Documentação (SDUM) que tutelam as bibliotecas da UMinho, a Biblioteca Geral (BGUM) e, muito posteriormente, a Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS), em parceria com o Município e para dar corpo à Rede de Leitura Pública. É por isso que costumo dizer que a Biblioteca Pública é a alma mater das bibliotecas da Universidade e da cidade.
 
Esta unidade cultural está a “renovar-se” no complexo do Largo do Paço, após a saída do Arquivo Distrital de Braga (ADB) para a rua Abade da Loureira em 2017. O que mudou?
Para além da ocupação dos espaços outrora pertencentes ao Arquivo Distrital, tivemos também que alojar cerca de 56.000 monografias, provenientes do depósito legal de 1976 a 1985, que, por falta de espaço de acondicionamento, regressaram da BLCS. Acresce a isto o facto de termos desativado o depósito existente na rua Afonso Henriques, que suscitou tantas inquietações, e acondicionar o fundo dali recuperado. Encaramos, pois, este como um momento privilegiado, um desafio, uma oportunidade apenas comparável com a saída dos Congregados em 1934, para podermos levar a efeito uma mudança conceptual há muito desejada. Começámos por melhorar as condições dos utilizadores, regressando à sala de leitura original da BPB, onde instalámos uma rede sem fios; criámos as salas para investigadores e de estudo em grupo. Delimitámos e seccionámos os espaços de trabalho e convertemos a antiga sala de leitura (junto ao átrio - Praça do Município) em local de receção e triagem de publicações, nomeadamente as provenientes do depósito legal.

Foi um trabalho amplo.
Sim. Foi, contudo, ao nível da acomodação das publicações que se operou a principal transformação, com a definição de zonas distintas para os diferentes tipos de documentos, tendo também em consideração a frequência com que eram consultados na sala de leitura: selecionámos e concentrámos os livros anteriores a 1800, designados por livro antigo, que se encontravam dispersos pelas diversas áreas temáticas; deslocámos o fundo de reservados para um outro espaço mais adequado; reunimos numa outra zona, em salas contíguas, os fundos das livrarias particulares; criámos uma área para acondicionamento da iconografia e outros suportes de informação; aproximámos os documentos (essencialmente publicações periódicas) dos leitores. É importante salientar o apoio que tivemos da Reitoria, nomeadamente da sra. vice-reitora, professora Manuela Martins, pois proporcionou nomeadamente a colaboração de estudantes que nos deram uma preciosa ajuda na realização destas ações e sem a qual não teria sido possível ter executado este trabalho, pelo menos num espaço temporal tão curto, entre março e setembro de 2018.
 
Ter mais área disponível significa mais espaço para arrumar os livros?
Não necessariamente. As alterações efetuadas permitiram distender o fundo documental. No entanto, tivemos que corrigir algumas situações: reduzir a altura das estantes para diminuir o peso suportado pelas lajes; libertar obras para outras áreas e tornar os espaços mais amplos; desocupar os vãos das janelas, uma vez que a falta de espaço tinha obrigado a aproveitar todos os “cantinhos” da casa, aumentando, em consequência disso, os níveis de segurança pela redução de concentração de carga térmica; e acomodar as monografias transferidas da BLCS, como já referi. Importa ainda sublinhar que, enquanto beneficiários do depósito legal, continuaremos a receber mensalmente milhares de publicações, nomeadamente revistas e jornais, que têm que ser acondicionados nos nossos espaços. Acresce ainda o facto da probabilidade de a BPB continuar a receber doações de bibliotecas privadas de relevante importância que não poderá enjeitar, mas, pelo contrário, deverá estimular. Temos, de facto, mais espaço, mas menos densidade de armazenamento, tendo-nos pautado por uma ocupação do espaço mais compatível com a política da Reitoria para este complexo. Estes factos são, por si, suficientes para, numa perspetiva de médio prazo e mesmo no âmbito do projeto de requalificação do Paço, se encarar a necessidade de aumentar a capacidade de armazenamento e se optar pela instalação de equipamentos mais modernos, mais versáteis que permitam a maior rentabilização do espaço disponível.

 
Pular os muros do Palácio
 
A Reitoria pretende tornar o Largo do Paço visitável. Onde entra aí a BPB?
A Reitoria tem vindo a dialogar connosco sobre essa temática e, por isso, a remodelação que agora efetuamos teve já em linha de conta essa perspetiva. Estaremos preparados para dar o nosso contributo, a nossa participação ativa e assumir as responsabilidades que nos forem atribuídas na dinamização que a Universidade do Minho pretender fazer neste espaço.
 
Que balanço faz do percurso desta Biblioteca até ao momento?
A Biblioteca Pública já desempenhou ao longo da sua história várias funções: primeiro como uma biblioteca de conservação, depois como biblioteca “erudita” e agente da dinamização cultural, como biblioteca universitária (no início da UMinho), como biblioteca de leitura pública e agora como biblioteca patrimonial de investigação, preservação e conservação. Todos estes papéis foram desempenhados com competência e dedicação, que geraram reputação, prestígio e credibilidade, traduzidos em várias distinções que ao longo dos tempos lhe foram sendo concedidas. O balanço que poderíamos fazer deste percurso está traduzido no lema que adotámos nas comemorações do aniversário em 2016/2017: “Biblioteca Pública de Braga: 175 anos a preservar a memória, promover a cultura e o conhecimento”.
 
Que eventos destaca deste percurso?
O percurso é longo e, por isso, não será fácil destacar o que foi feito ao longo da sua história, nomeadamente dos últimos 40 anos. Não poderemos, contudo, deixar de referir o ciclo “Um escritor apresenta-se” pelo que de extraordinário representou na década de 80 do século XX, ao receber nomes de relevo como Maria Ondina Braga e José Saramago, entre muitos outros. Mais recentemente destaco, por exemplo, exposições apresentadas na galeria do Largo do Paço como “100 anos de Jorge Amado”, "O Mundo em 80m2” e “A Universal Pintura”, esta última em parceria com o Arquivo Distrital, e que contaram com o contributo científico de professores e investigadores das universidades do Minho e do Porto, como Luís Moreira, João Carlos Garcia, António Lázaro e Francisco Mendes. A partir daí, também “pulámos os muros do palácio” [de D. José de Bragança], através de parcerias que levaram as nossas publicações e ações às comemorações dos 100 anos do Theatro Circo (com várias exposições, conferências e a edição de uma monografia), aos centros interpretativos Cândido Pedrosa (Bom Jesus) e da Santa Casa da Misericórdia (Palácio do Raio) no âmbito do projeto “O Património Musical do Concelho de Braga”, coordenado pela professora Elisa Lessa; à Casa dos Crivos, com o Município de Braga; ao auditório do Parque de Exposições, com a InvestBraga, onde abrimos a 50ª Agro com a apresentação do vídeo Como chegámos aqui que relata a história das feiras agrícolas em Braga, que remonta a 1792 e onde foi interpretado o Hino da Feira Agrícola de 1863, cuja partitura integra o espólio da BPB; a Restauração da Independência de Portugal: expressões das comemorações estudantis em Braga, no salão nobre do Theatro Circo, com a AAUM e o agrupamento de escolas Sá de Miranda, para destacar apenas as mais relevantes. Colaborámos igualmente em mostras e intervenções sobre o S. João de Braga e a Semana Santa, por exemplo. Nos 175 anos da BPB fizemos três ciclos expositivos (obras intemporais, efemérides, outras exposições) e o vídeo Um investigador apresenta sobre Ho Preste Joam das Indias…, com o professor António Lázaro. Promovemos ainda o legado que Álvaro Carneiro confiou à BPB, na edição conjunta com o Município de Braga de uma sua partitura inédita e na sua apresentação pública em concerto, no salão medieval. Além da partitura, faz parte do espólio uma obra inédita cuja edição está a ser ultimada.
 
Quais são os principais projetos para os próximos tempos?
Há projetos que gostaria de ver concretizados, ou pelo menos iniciados, a curto prazo: desde logo, aquele que considero o mais importante, porque é central para toda a atividade da biblioteca, prende-se com a “desmaterialização” dos catálogos manuais – o catálogo em linha da BPB contém apenas cerca de 25% das referências bibliográficas do seu fundo documental; a concretização do projeto de convergência da BPB, os SDUM e a BLCS na adoção de um mesmo software de gestão de bibliotecas e a sua materialização num portal de pesquisa bibliográfica das bibliotecas da UMinho; na sequência da desinfestação recentemente efetuada, tendo em vista mais a prevenção que a reação, desenvolver a implementação de uma política contínua de vigilância, preservação e conservação das coleções, bem como a implementação de um serviço de restauro onde possam ser efetuadas pequenas intervenções de conservação nos documentos. Para além disso, temos vindo a definir novas formas de interação cultural com a sociedade, nomeadamente ao nível da comunicação, da mediação e da gestão cultural, que é necessário aprofundar.
 
Quer deixar alguma mensagem final?
Apesar de sermos uma biblioteca pública e, consequentemente, disponível a todos os cidadãos, não se pode esquecer que nós somos Universidade. É nesta particularidade que teremos de focar mais a nossa atenção e esforço para podermos proporcionar à comunidade académica o conhecimento de quão importante somos, enquanto espaço de conhecimento e cultura. Desta relação certamente que toda a comunidade tirará partido.