“Adoro a liberdade e a criatividade da academia, sobretudo na investigação”

17-02-2020 | Pedro Costa | Fotos: Nuno Gonçalves

Patrícia Jerónimo licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra, em 1995

Na Universidade de Nova Iorque (EUA), em 2005, conjugando com o doutoramento no Instituto Universitário Europeu (Itália)

Em Timor-Leste, em 2010, sobre cujo sistema jurídico tem várias publicações e está no projeto "Variedades de Democracia"

Numa passagem académica em Atenas (Grécia), também em 2010

Entre alunos do mestrado em Direitos Humanos, em 2018, no projeto "Valor dos Direitos Humanos no Caminho de Santiago", com 20 universidades de 13 países

Workshop do projeto internacional "InclusiveCourts", em 2019, no campus de Gualtar, em Braga

Patrícia Jerónimo é casada com o investigador holandês Maarten Vink

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Patrícia Jerónimo, investigadora do JusGov e professora da Escola de Direito, recebe hoje o Prémio de Mérito Científico da Universidade do Minho.




Patrícia Jerónimo é professora associada da Escola de Direito da UMinho, onde leciona desde 1995, o ano em que se formou na Universidade de Coimbra. Cumpriu o doutoramento no Instituto Universitário Europeu, em Florença (Itália), em 2008, com uma tese sobre migrações e cidadania em Portugal, na União Europeia e no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.  Além de migrações e cidadania, os seus principais interesses de investigação são os direitos humanos, o pluralismo jurídico e os direitos das minorias. Possui uma experiência vasta de ensino e de investigação no campo do Direito Comparado, com publicações envolvendo os sistemas jurídicos dos países de língua portuguesa, como Angola e Timor-Leste. 

Leciona as disciplinas de Direito Comparado, Migrações e Refugiados e Direitos Humanos e Diferença Cultural, entre outras. Dirige o mestrado em Direitos Humanos e o Departamento de Ciências Jurídicas Gerais da Escola de Direito. É diretora do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov), que se dedica à investigação avançada e aplicada no Direito, com trabalho nas áreas dos Direitos Humanos, Direito da UE, Criminologia e Justiça Criminal, entre outras. É também especialista no Observatório da Cidadania Global (GLOBALCIT) do Instituto Universitário Europeu e coordenadora para Timor-Leste no projeto "Variedades de Democracia" (V-DEM), liderado pela Universidade de Gotemburgo (Suécia). No JusGov, é investigadora principal no projeto “Igualdade e Diferença Cultural na prática judicial portuguesa” (InclusiveCourts), financiado pela FCT.



Como foi a sua infância?
Uma infância tranquila. Passei os primeiros anos numa localidade dos arredores de Leiria, com campos para correr e brincar à vontade e em segurança. Desde que me lembro, sempre gostei muito de ler. Era uma ávida leitora dos livros da Enid Blyton e da Julie Campbell. Também desenvolvi desde cedo o gosto pelo cinema, muito por influência dos meus pais. Apesar de a oferta cinematográfica em Leiria nesse tempo não ser grande, rara era a semana em que não ia ao cinema com a minha mãe e o meu irmão. Gostos e hábitos que se mantêm até hoje.
 
Quais eram as brincadeiras mais comuns?
Lembro-me que, desde pequena, gostava muito de assumir a liderança [risos] e de organizar as brincadeiras com os miúdos da vizinhança, tentando reproduzir enredos de aventuras que ia vendo na televisão.
 
A comunicação e o cinema poderiam ter sido o seu caminho...
Sim, poderiam. Até ao liceu estive inclinada para o jornalismo, mas percebi que o Direito era uma aposta mais segura.
 
Isso faz de si uma espectadora especialmente atenta?
Sim, sou uma consumidora ávida – cinema, televisão, revistas e jornais –, com preferência pelos media tradicionais.
 
Como justifica a sua opção?
Eu pensei no jornalismo como carreira, porque gostava da ideia romântica da descoberta da verdade e da defesa dos mais vulneráveis. Esta ideia, de resto, não deixa de estar também presente na visão - igualmente romântica - do jurista, em especial do advogado. Não é por acaso que o meu trabalho tem vindo sempre a incidir nos Direitos Humanos.
 
Entretanto, saiu de casa, foi para Coimbra estudar e transformou-se numa cidadã do mundo. Não custou?
Confesso que não. Nada mesmo. A minha vida tem sido sair de um lugar para outro e não tenho qualquer problema com isso. Saí de Leiria para Coimbra, depois fixei residência em Braga, pelo meio estive três anos em Itália a fazer o doutoramento, mais quatro meses na Universidade de Nova Iorque (EUA) e as frequentes deslocações a Timor-Leste… A família está em Portugal e na Holanda. Os amigos estão um pouco por todo o lado.  A Leiria volto por razões familiares, mas não sou uma pessoa com grande apego às raízes ou dada às saudades.
 
Tem tempo para sentir o mundo, além de uma carreira académica tão exigente?
Sim, tenho. Têm que existir esses momentos para sair da esfera profissional. Continuo a consumir muito cinema e vou fazendo muitas coisas que me tiram do contexto estritamente profissional, porque são uma parte importante da vida.

 

 

“Encontrei na UMinho uma abertura e uma proximidade que me surpreenderam”
 
Como chegu à UMinho?
Concorri para as vagas abertas em 1995 para assistente estagiário. Ainda estava em Coimbra a fazer melhorias de nota quanto fui chamada para a entrevista. Tive muita sorte, porque foi-me dada a oportunidade de começar a lecionar. A adaptação foi muito fácil. A primeira grande sensação ao chegar à UMinho foi a de proximidade. Encontrei uma universidade muito mais aberta do que aquilo a que estava habituada. Fui muito bem acolhida e tiveram um papel importante a Carmelinda Vilaça – secretária do então Departamento Autónomo de Direito e que foi como uma mãe para mim – e também o professor António Cândido de Oliveira, diretor do Departamento na altura. Na UMinho, foram-me dadas muitas oportunidades para crescer, algo que muito provavelmente não teria acontecido se tivesse permanecido em Coimbra ou ido para uma universidade mais tradicional.
 
Imaginava que iria ficar todos estes anos?
De alguma forma, sim. O Estatuto da Carreira Docente então em vigor permitia que os assistentes estagiários ingressassem logo num percurso de carreira (tenure track), o que me motivou a cumprir as sucessivas etapas na UMinho. Fiz provas de aptidão pedagógica e capacidade científica, em 2000, e depois tive a oportunidade de gozar uma dispensa de serviço docente para estar três anos em Florença a fazer o doutoramento. Tenho tido sorte, porque recebi sempre o apoio da Escola de Direito e da UMinho para fazer investigação nas áreas de que gosto.  
 
E a sensação de lecionar?
Gosto muito da interação com os alunos, ainda que já não tenha a mesma energia de outros tempos. É uma forma de devolver aquilo que fizeram por mim. Na medida do possível, procuro estar disponível para os alunos e investigadores mais jovens, sobretudo aqueles que se interessam ou pretendem desenvolver trabalho nas áreas em investigo.
 
Quais são os principais desafios que implica lecionar?
A escassez de tempo dos alunos, que limita a disponibilidade deles para uma maior dedicação às aulas. Sinto isto, sobretudo, com os alunos de mestrado, que, frequentemente, tentam conciliar as aulas e a dissertação com o estágio de advocacia e os exames da Ordem dos Advogados ou os exames para o Centro de Estudos Judiciários. Isto implica alguma dispersão, apesar de haver também muito entusiasmo – sobretudo no mestrado em Direitos Humanos, onde é frequente termos alunos associados ao ativismo e à defesa dos Direitos Humanos no terreno.
 
Também assume a direção do JusGov, que traz responsabilidades acrescidas.
Com certeza! Em primeiro lugar, importa cumprir o contrato-programa que temos com a FCT. Temos investigadores muito talentosos em várias áreas, quer nos Direitos Humanos, quer no Direito da UE, na interação entre as tecnologias e as empresas. Temos um laboratório de justiça que acompanha a prática judicial e uma equipa muito importante a trabalhar nas áreas da Criminologia e do Direito Penal. Temos muitas áreas em que podemos dar contributos importantes para a sociedade e para a própria academia.
 
A tal preocupação com a transferência do conhecimento...
Sim. São duas vertentes que têm que estar sempre a par. Por um lado, temos que estar atentos à articulação da investigação que é desenvolvida e aquilo que é lecionado nos vários programas de formação; por outro, também àquilo que a sociedade espera de nós ou àquilo que podemos devolver à sociedade. Até porque muitos dos trabalhos desenvolvidos são financiados por dinheiros públicos. É importante que o que fazemos não verse apenas sobre os temas de que gostamos porque suscitam a nossa curiosidade científica, mas também sobre temas que sejam politicamente relevantes, ou seja, cujo tratamento possa proporcionar elementos úteis aos decisores políticos no momento da adoção de medidas legislativas ou da definição de políticas públicas.
 
 
 
“A interceção entre Direito, Cultura e Direitos Humanos estimula na investigação"
 
Porquê a academia e não os tribunais?
Eu fiz o estágio de advocacia e obtive a cédula profissional, mas nunca tive aspirações a trabalhar como advogada e acabei por suspender a cédula pouco tempo depois de a obter. Acho que, no meu último ano de faculdade, em Coimbra, já comecei a pensar na carreira académica como algo que fazia mais sentido.
 
Por alguma razão em particular?
Gosto muito da liberdade e da criatividade envolvidas na carreira académica. Temos muitas obrigações administrativas, por certo, mas há dois aspetos de que gosto muito: por um lado, a comunicação em aula com os alunos, o poder cativá-los para diversos assuntos – de alguma forma, a aula como "espetáculo" [risos] –, bem como o contacto com as novas gerações; por outro lado, a liberdade e a criatividade associadas à pesquisa das fontes, à construção do raciocínio e à redação de textos dirigidos aos académicos, práticos e público em geral. Este é o aspeto de que gosto cada vez mais. Na verdade, é um luxo ter horas livres e tempo só para pensar, montar um raciocínio e escrever sobre um assunto.
 
Presumo que não a atrai tanto o ato de interpretar, de forma mais ou menos literal, determinada legislação...
Diz-se que, se os juristas forem bons, podem defender uma coisa de manhã e o oposto à tarde, com igual capacidade de persuasão. Claro, isto está paredes meias com a ideia de jurista “troca-tintas” e “aldrabão” [risos]. Mas gosto muito desse trabalho de interpretação, de comparação entre interpretações diferentes, da própria evolução da interpretação dos quadros normativos. Há muitas coisas interessantes que podem ser feitas e não tenho nada uma visão positivista da lei, pois é possível fazer uma interpretação atualizadora do texto legal, de modo a ir ao encontro das necessidades das sociedades e responder aos problemas. Claro que o papel do académico é, frequentemente, olhar de forma crítica para as soluções adotadas pelo legislador, aquilo que foram os compromissos políticos num dado momento histórico e pensar em que medida é que aquelas soluções responderam às preocupações subjacentes àquela medida legislativa, avaliando se continuam a ser suficientes para dar resposta aos novos problemas com que as sociedades se deparam.

É um inesgotável campo de trabalho.
Exatamente. Ainda em relação à ideia do jurista agarrado à lei, devo dizer que sou uma jurista em termos, pois tenho sempre procurado fazer pontes com outras disciplinas, nomeadamente com a Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política. O "InclusiveCourts" é precisamente um projeto multidisciplinar que envolve juristas, mas também psicólogos, antropólogos, sociólogos e linguistas. O cruzamento destas várias lentes disciplinares permite uma análise muito mais rica daquele que é o objeto de estudo – o modo como os tribunais portugueses lidam com a diversidade cultural.
 
O seu trabalho percorre outras especialidades, mas também não para nas fronteiras. O que traz dessas experiências internacionais?
Desde logo a clara perceção da realidade do pluralismo jurídico. De que, por esse mundo fora, encontramos soluções muito diferentes para problemas sociais aparentemente semelhantes. Isto apesar da globalização e de ser comum os Estados em vias de desenvolvimento copiarem soluções jurídicas adotadas por países do chamado Norte Global. Por exemplo, em Timor-Leste encontramos muitas soluções jurídicas decalcadas da ordem jurídica portuguesa, mas também são visíveis idiossincrasias locais que fazem com que os transplantes jurídicos europeus não resultem em menos, mas sim em mais diversidade. O estudo destes processos é muito relevante, sobretudo no quadro da discussão dos riscos e virtualidades associados aos programas internacionais de apoio ao desenvolvimento.
 
É esse o seu caminho imediato? É o que a estimula como investigadora?
Tudo o que diga respeito à interseção entre Direito, Direitos Humanos e diferença cultural estimula-me como investigadora. Tanto numa perspetiva macro, de comparação entre diferentes países e tradições jurídicas, como numa perspetiva micro, de análise do modo como cada ordem jurídica estadual concreta reconhece ou ignora a diversidade étnica, religiosa, linguística, entre outras. O "InclusiveCourts" versa precisamente sobre questões relacionadas com esta segunda perspetiva, tendo Portugal como estudo de caso.  
 
Os direitos humanos e as migrações internacionais são um dos seus principais objetos de estudo e são cada vez mais contemporâneos. É trabalho acrescido?
Sim, é algo que está omnipresente na agenda mediática, política e académica. Portugal tem-se mantido algo à margem das questões mais tóxicas referentes às questões de imigração e da integração dos imigrantes – desde logo porque felizmente, direi eu, ainda não temos movimentos anti-imigração –, mas esses temas são muito importantes e é um domínio onde há muito a fazer. Em Portugal, a investigação sobre migrações e políticas de integração tem sido desenvolvida sobretudo pelos colegas da Sociologia, da Ciência Política e da Geografia. Tem menos cultores na área do Direito, mas isto está a mudar, com trabalho importante a ser feito por vários investigadores do JusGov, em matéria de imigração e asilo, direitos dos estrangeiros, cidadania e multiculturalismo. 
 
Que significa para si a sua universidade atribuir-lhe um Prémio de Mérito Científico?
Acho que é muito importante, porque é um grande incentivo. Por vezes, há motivos de desânimo ao longo do trabalho de investigação e é bom saber que há quem esteja atento. Por outro lado, tenho ainda muito caminho a fazer e tenho que dar provas de que o prémio foi merecido. Espero poder confirmar a confiança que foi depositada em mim. Fiquei muito feliz quando recebi a notícia, desde logo porque a minha carreira académica foi toda feita aqui e porque me sinto aqui bem. Tenho aqui bons colegas, boas condições e apoios, tanto da Escola de Direito como da Reitoria, que me proporcionaram liberdade para escolher as minhas prioridades em termos de investigação. Só posso agradecer as oportunidades – que foram muitas – e os apoios que me deram.