Desafios da medicina espacial

30-11-2024 | Foto: ICVS/UMinho

Ilustração: Pat Rawlings/NASA/Wikipedia

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A última fronteira da exploração é e sempre será ditada pelos limites da capacidade humana. Cabe a nós decidir onde traçamos a linha.




Não, não é só para os médicos de astronautas.
 
O ambiente espacial é inóspito. É desconfortável e não perdoa. Para já, continuamos sem encontrar vida além da Terra, e por boas razões. Existem 5 grandes grupos de desafios para a exploração humana do Espaço: radiação, seja ela solar de origem solar ou cósmica; alterações de gravidade, desde as acelerações até escaparmos à garra da tração terrestre até às alterações inerentes à “queda-livre” além da nossa atmosfera; o isolamento e confinamento, algo a que ficamos bastante familiarizados durante o ano de 2020; a distância à Terra, com o impacto associado no acesso a recursos, peritos e apoio sociofamiliar; e o próprio ambiente hostil, que obriga a sistemas de suporte intricados e a considerações que tipicamente tomamos como garantidas nas nossas rotinas diárias. Consequentemente, manter pessoas vivas neste contexto é o derradeiro desafio.
 
É tipicamente neste ponto da conversa que me confrontam com o “Então para quê isto tudo? Não seria melhor deixarmos robôs explorar por nós?”, ou a melhor “Temos ainda tanto por resolver na Terra, e andas tu com a cabeça na Lua”. Com a primeira não me debato muito - efetivamente é o mais lógico. Mais vale sempre enviar algo primeiro que seja descartável. Felizmente, já fizemos isso. E, infelizmente, é uma seca. Nada agarra a emoção humana como o êxito humano. Toda a gente conhece Vasco da Gama, mas questiono quantos de nós são capazes de nomear a nau em que seguia. Da segunda questão, pouco tenho a dizer - muito já foi dito por outros melhor do que eu. Poderia basear-me no argumento que os dinossauros não tinham programa espacial. No entanto, pendo para a perspetiva de que investigação em desenvolvimento não olha a áreas. Nunca esquecemos a utilização diária que damos aos nossos GPS. Mas poderíamos abordar por exemplo a tecnologia de deteção de planetas com potencial para vida que se encontra atualmente a ser utilizada na deteção precoce de cancro da mama.
 
Este último ponto abre outra nuance de colocarmos seres humanos neste ambiente inóspito - descobrimos coisas sobre nós que não descobriríamos de outra forma. Há atualmente programas de mestrado dedicados exclusivamente às entidades clínicas únicas que surgem no ambiente espacial. Estranhamente, o mais interessante não são as patologias e problemas que surgem única e exclusivamente pelos desafios deste contexto, mas sim aqueles que por vezes nós na Terra também temos que lidar diariamente. Basta considerarmos que, para simular na Terra as alterações cardiovasculares induzidas pela “ausência” de gravidade, colocamos pessoas deitadas em macas durante períodos prolongados de tempo, algo muito corriqueiro nos nossos hospitais. Falhar a perspetiva de transferibilidade de conhecimento é não só desaproveitar resultados; é roubar potencial motivador a trabalho que seria visto de outra forma como mundano.

A atualidade beneficia imensamente com o avanço na exploração humana do Espaço, mas o futuro irá depender desta. O Espaço proporciona-nos condições laboratoriais ideais, que não só permitem acelerar o estudo de determinadas patologias, como também desenhar fármacos com um nível de qualidade nunca antes visto. Além disto, ignorar o desenvolvimento da exploração comercial do Espaço, mais não seja para viagens intercontinentais em tempo recorde, é ignorar a curta janela temporal entre o primeiro voo dos irmãos Wright e o famoso "gigante salto da Humanidade". E daqui virão ainda mais desafios. Não estaremos a lidar com os melhores dos melhores; será uma classe mais envelhecida, com mais antecedentes, a vivenciar o limite da experiência humana.

A última fronteira da exploração é e sempre será ditada pelos limites da capacidade humana. Cabe a nós decidir onde traçamos a linha.

 
Gonçalo Torrinha

Docente assistente convidado e coordenador do Curso Rápido em Medicina Espacial da Escola de Medicina da UMinho, investigador clínico do ICVS e médico interno de Medicina Intensiva na Unidade Local de Saúde de Braga