Mudanças climáticas aquecem interesses geopolíticos no Ártico

21-12-2024 | Nuno Passos

Um barco atravessa as águas geladas da Gronelândia (foto: Holger J. Bub/Pexels.com)

Francisco Cuogo recebeu o Prémio de Ensino EEG (Escola de Economia e Gestão da UMinho), a 11-03-2019, nos 37 anos da EEG

Com a embaixadora do Paraguai, Maria José Argaña Mateu, os professores Paulo Duarte e Teresa Almeida Cravo e dois alunos de Relações Internacionais da Minho, no encontro "Sem as RI não havia o CECRI", a 10-12-2019, no Setra Bar, em Braga

De 1984 para 2016, passou-se de 1,86 milhões para apenas 110 mil quilômetros quadrados de gelo antigo ao nível da extensão mínima anual do Ártico (fonte: NASA Earth Observatory)

Os direitos das populações indígenas Inuit e Sami devem ser salvaguardados nas discussões internacionais (foto: Sergei Shilenko/Pexels.com)

O papagaio-do-mar tem sido uma das espécies mais simbólicas e acarinhadas da região polar (foto: Harrison Haines/Pexels.com)

O turismo de natureza é um dos muitos fatores de atratividade do Ártico (foto: Simon Migaj/Pexels.com)

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O Círculo Polar Ártico não é famoso apenas pela “casa” do Pai Natal na Lapónia. Os EUA, Canadá, Rússia ou China posicionam-se na gestão de recursos deste território, mas a UE e outras vozes políticas e ambientalistas levantam-se, explica o professor Francisco Cuogo.


O docente da Escola de Economia, Gestão e Ciência Política da Universidade do Minho dedicou a sua tese doutoral ao tema e tem aprofundado a pesquisa em projetos no Centro de Investigação em Ciência Política (CICP).

Quais são os principais fatores que tornam o Ártico uma região de grande interesse geopolítico?
Há vários, mas os mais estratégicos são a riqueza de recursos naturais disponíveis no Ártico, a abertura de novas rotas comerciais, a instalação de novas infraestruturas, a soberania territorial, o controlo das águas (conforme a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - CNUDM), a segurança militar e práticas de cooperação internacional.

Pode detalhar?
Os recursos naturais e as rotas de navegação estão cada vez mais acessíveis, e de forma mais rápida, devido às alterações climáticas. O degelo permite também a construção de infraestrutura para explorar recursos naturais, atraindo grandes empresas e e investimentos que podem não observar regulações e condições necessárias à preservação do ecossistema. A soberania nacional está sempre em discussão por parte de atores como Canadá, Rússia, Noruega e Dinamarca acerca de reivindicações sobre certas zonas árticas. O controlo das águas passa pelos critérios do direito internacional e isso gera disputa entre os interessados na região polar. Com as suas ambições políticas e económicas, os atores intensificam a presença militar no Ártico, visando proteger as fronteiras e também dissuadir a expansão de terceiros. Isso leva ao aumento de bases militares e do arsenal, especialmente de mísseis intercontinentais.
 
Apesar destas condições, o Ártico nunca contemplou um conflito armado direto entre os seus atores.
É um exemplo de cooperação internacional e um espaço favorável para o debate científico acerca de questões ambientais. A principal dúvida é se isso se vai manter nos próximos anos ou se as tensões geopolíticas e as ambições económicas e territoriais irão sobrepor-se.
 
Como o degelo afeta o equilíbrio entre proteção ambiental vs. exploração económica e as relações entre países da região e além?
As relações entre atores e os problemas observados no Ártico (militares, económicos, sociais, ambientais...) são de ordem sistémica e muito interconectados. Todas as decisões e ações que se assumem vão sempre refletir consequências e desdobramentos nos demais atores, ou no próprio cenário ártico, cujo ecossistema sempre foi delicado, muito específico e adaptado àquelas condições climáticas e geográficas. O desequilíbrio ecológico, além de afetar a fauna e flora, expõe abruptamente o acesso aos recursos naturais, como petróleo, gás natural e minerais. As reservas que antes estavam inacessíveis e só eram alcançadas de maneira gradual, repentinamente tornam-se acessíveis, gerando uma corrida desenfreada por tais recursos.

Há pressa em explorar o extremo norte do globo.
A corrida gananciosa pelos seus recursos leva a uma exploração sem o nível de manutenção e de supervisão necessários para preservar as especificidades do ecossistema. O resultado poderá ser mais danoso do que se pensa, ao gerar dois eventos simultaneamente: o aumento nas tensões entre grandes atores da política internacional e a exposição a riscos ambientais, talvez irreversíveis. Além disso, com o degelo, o Oceano no Ártico fica disponível para navegação comercial, reduzindo o tempo de navegação entre Europa e Ásia, gerando também necessidades de ampliação de infraestrutura. Estas novas instalações podem gerar efeitos danosos se não forem desenvolvidas medidas corretas, numa estreita relação entre preservação ambiental, sustentabilidade e desenvolvimento económico. Em suma, o degelo intensifica as interações no Ártico, que já são bem complexas no equilíbrio entre o ambiente e a economia, exigindo que os atores olhem, além das ambições militares e económicas, para as condições ambientais e sociais desta zona.
 




União Europeia é um pilar da cooperação internacional

Como os países não árticos, em especial a China, se têm afirmado neste contexto?
Muitos países [outsiders] demonstram, cada vez mais, fortes interesses na região. Não só a China, mas também Japão, Itália, França, Coreia do Sul, Índia... E a principal forma de se tentarem afirmar como "influenciadores" é adotar discursos que buscam legitimar as suas capacidades de contribuir na governança regional ártica. Obviamente que o motivo principal desses países é as oportunidades económicas e de descobertas científicas. Por isso, além de tentar estabelecer vínculos na governança ártica, atores não-árticos fazem investimentos em portos, em tecnologia para explorar energia no Ártico e em estações de investigação para gerarem conhecimento que contribua para o controlo do ecossistema da região polar.

Isso evidencia o valor do Ártico no desenvolvimento científico e económico...
...mas também confirma o quanto a política internacional precisa de estar preparada para tratar de assuntos dessa região. Aliás, estes desdobramentos revelam os desafios de se acomodar os diversos interesses dos muitos atores que aí se pretendem posicionar. Alguns, como a China, têm-se autodenominado "Estado próximo do Ártico" (Near-Arctic State), a fim de convencer a comunidade internacional do seu direito e da sua capacidade de atuar no extremo norte do globo.
 
E como se posiciona a UE, quando só três dos seus 27 Estados (Dinamarca, Suécia, Finlândia) estão no Ártico?
Esse facto não retira à União Europeia menos influência, pois sempre teve capacidade normativa e exerce influência global, estendendo as suas perceções e valores em várias regiões do mundo. Não é diferente no Ártico, pois trata-se de uma zona estratégica e sensível às mudanças ambientais. A UE tem tido um posicionamento cada vez mais pró-ativo para o Círculo Polar Ártico, articulando questões que se concentram em alterações climáticas, uso sustentável dos recursos naturais da região, proteção dos povos indígenas, segurança, estabilidade e desenvolvimento económico. Portanto, não sendo um protagonista direto através dos seus Estados-membros na região, a UE olha com interesse para esta zona geográfica, estendendo as suas preocupações com princípios universais que acompanham os valores europeus, como sustentabilidade, cooperação e estabilidade, reproduzindo no Ártico as influências de uma potência normativa em questões globais. Dito isso, o seu posicionamento e influência não dependem da quantidade de Estados-membros que lá estão, mas da sua capacidade de articulação, que é cada vez mais objetiva, em relação à realidade do Ártico.
 
Considera que há cooperação significativa para gerir os desafios daquela região? Pode ser um modelo de governança multilateral eficaz?
Eu diria que tem potencial. De facto, nunca houve uma guerra ou um conflito armado direto entre atores, mas observa-se mais tensões, pelo aumento de bases militares e de armamento alocado no Ártico. Ademais, há um crescente investimento em tecnologia militar específica para as condições adversas daquela zona. Isso não significa em si que haverá guerra. Pode ser que sim, mas pode ser que o Ártico continue a ser um potencial exemplo de governança multilateral e estabilidade. Tudo vai depender de como os atores lidarão com os desafios que se alargam naquela região. No final do século XX, na criação do Conselho do Ártico, estabeleceu-se um fórum intergovernamental (composto pelos oito Estados árticos), com membros observadores não-árticos e com espaço para a participação dos povos indígenas.

Essa estrutura demonstra que há interesse no diálogo e na cooperação.
Exatamente. Contudo, o Conselho do Ártico ficou muito tempo focado na regulação de questões marítimas, tendo por base a CNUDM, em planos de desenvolvimento sustentável, na proteção ambiental e na promoção de investigações científicas. Obviamente que isso tudo foi essencial para alinhar os interesses dos Estados árticos e promover a cooperação eficaz na região. Mas, paralelamente, questões militares e disputas por soberania foram emergindo e agora precisam de ser tratadas de maneira estratégica e equilibrada. Comparando o Ártico com outras regiões do mundo, podemos dizer que é uma referência na governança e na cooperação. E o cenário geopolítico global atual poderá ser uma oportunidade para confirmar se o modelo aí adotado se firmará como um exemplo para as outras regiões do mundo ou, então, se serão necessárias adaptações profundas para lidar com os desafios emergentes no Ártico.



Os direitos das populações indígenas Inuit e Sami devem ser salvaguardados nas discussões internacionais (foto: Sergei Shilenko/Pexels.com)