As luvas de futebol de Clécio têm melhor absorção e aderência

11-06-2014 | Nuno Passos | Fotos cedidas por Clécio Lacerda

O investigador é natural de Pernambuco, Brasil, e licenciado em Desenho Industrial pela Universidade de Campina Grande (Paraíba), mestre em Design Industrial pela Universidade do Porto e doutorando em Engenharia Têxtil na UMinho

Apesar de ser designer industrial, Clécio Lacerda arriscou juntar a engenharia têxtil, a biologia e o desporto, confirmando que a ciência é cada vez mais multidisciplinar. Na foto, aparece a dissecar um casco de cabra-montês

Aspeto prévio da nova luva. Ao longo do trabalho, Clécio Lacerda consultou diversas fontes de bibliografia, fez inquéritos a guarda-redes profissionais, auscultou empresas da área, pesquisou os produtos no mercado e fez testes laboratoriais

O protótipo em estrutura hexagonal expande-se e volta à forma inicial, tal como o casco da cabra-montês

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A palma da luva criada nos departamentos de Engenharia Têxtil e Biologia imita o casco da cabra-montês. O projeto já é cobiçado pelo mercado.




Um investigador da Escola de Engenharia da UMinho está a desenvolver uma luva de futebol cuja palma imita o casco da cabra-montês, aumentando a absorção do impacto, a aderência e o conforto. O projeto de Clécio Lacerda vai ser patenteado e já desperta interesse do mercado. A pesquisa junta o Departamento de Engenharia Têxtil e o Departamento de Biologia, é financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e tem a parceria do Vitória de Guimarães e de empresas como a HO, que equipa Eduardo e Beto.

A investigação de Clécio Lacerda partiu da sua tese de doutoramento em Engenharia Têxtil, “Desenvolvimento de superfície têxtil mimética e aplicação ao desporto”. De início analisou as diversas modalidades olímpicas e lançou propostas de melhoria dos equipamentos têxteis com base na imitação da natureza (biomimética). “Acabei por fixar-me na luva do guarda-redes de futebol, por estar ligada ao desporto-rei e ter potencial de mercado, e porque as costas da luva estão há muitos anos bem resolvidas estética e tecnologicamente,  mas surpreendentemente a palma da luva não, quando é a parte mais importante, pois contacta diretamente com a bola, mas o seu látex desgasta-se relativamente rápido e não tem a aderência ideal”, explica.

O brasileiro de 33 anos explorou então microorganismos, plantas, animais e outros sistemas biológicos que tivessem a estética e a funcionalidade aplicáveis à palma da luva. “Foi um processo demorado. Por exemplo, a viscosidade da lagartixa absorvia o impacto, mas largava. Até que cheguei ao casco da cabra-montês, que é muito ágil a subir os montes e a saltar entre pedras”, elucida Clécio Lacerda. Nos laboratórios verificou-se que esses cascos são formados por fibras, que partem do núcleo de proteína e gordura para se transformarem em queratina na base externa.
 
A grande questão foi perceber como as fibras se organizavam vertical e horizontalmente para se poder imitar o processo artificialmente. Gerou-se vários modelos, testou-se em simultâneo o comportamento face ao atrito e à compressão e, por fim, chegou-se a uma espuma de látex de base tecnológica diferente. “O protótipo em estrutura hexagonal expande-se e volta à forma inicial, tal como o casco da cabra”, sorri o investigador, que tem tido apoio dos professores Raul Fangueiro, Margarida Casal e Raul Machado. O protótipo inclui ainda uma camada de polímero ou slicone para faclitar a aderência e falta, agora, validar os sistemas de corte da luva, no semestre final do doutoramento.

 
Tecnologia pode ser aplicada noutros desportos
 
Clécio Lacerda admite que esta tecnologia venha a ser aplicada noutros desportos e contextos. Poderá, por exemplo, absorver o impacto de quedas de ciclistas e motociclistas. “Os materiais usados hoje nas calças e casacos de motociclismo são rijos e incómodos”, nota. As sapatilhas para escalada e as proteções de guarda-redes de hóquei em patins são outras possibilidades.
 
Para o designer industrial, a biomimética é uma área científica emergente e está mais próxima do que imaginamos. “Muitos cidadãos não dão conta que têm em casa materiais criados a imitar a natureza, como o velcro,a camuflagem ou o ecrã com economia de luz. Temos imensas respostas para os nossos problemas na natureza, só falta é encontrarmo-las”, afirma. A espécie humana sempre observou o comportamento dos outros seres vivos, o que garantiu a sua sobrevivência e o desenvolvimento de novos produtos, quer para o seu bem-estar como para facilitar as tarefas diárias.
 


Quando ainda se usava luvas de couro e de jardinagem
 
A história reza que as primeiras luvas de guarda-redes foram patenteadas por William Syes em 1885. Nos anos 1920', Ricardo Zamora usava na Espanha luvas de lã, camisola de gola alta e boina, como um gentleman a ir à ópera. Após sofrer dois "frangos" contra a Inglaterra, passou a usar luvas de couro. Em Portugal, o primeiro a imitá-lo terá sido Azevedo, do Sporting. Nos anos 1940’ o argentino Amadeo “Tarzán” Carrizo popularizou as luvas no River Plate. Curiosamente, só em 1952 é que estas entraram em campo no Reino Unido, a pátria do futebol, no jogo Airdrie-Celtic. O guardião italiano Stefano Andreotti desenhou nessa altura uma luva sem dedos com cordas de couro por fora para melhorar o aperto, mas substituiu-as depois por pedaços de borracha, criando a marca Stanno. Com a evolução das chuteiras e os jogos televisionados, as luvas generalizaram-se nos anos 70, através de marcas como Reusch e Uhlsport. Os keepers Sepp Maier (Bayern Munique) e Neville Southall (Everton) chegaram a testar luvas de jardinagem e de lavagem.
 
Hoje é aceite que as luvas de guarda-redes ajudam a agarrar a bola, proteger remates rápidos, prevenir lesões, flexibiliizar as articulações e regular a temperatura das mãos. A forma como a luva é cortada e costurada define as suas propriedades. A espessura do látex varia de dois a cinco milímetros. A engenharia têxtil recente junta, por exemplo, partículas de titânio na espuma para melhor tração à chuva, espuma extra de amortecimento na zona de soco, ossos curvos removíveis para resguardar os dedos, entre outros. A maioria dos guardiões tem vários pares de luvas, adequando-as ao seu perfil e às condições do jogo para o compromisso ideal de apanhar, afastar, socar e lançar o esférico. Curiosamente, tal visão hi-tech não impediu Ricardo de defender eficazmente um penalti sem luvas no Euro’2004 e levar Portugal às meias-finais...