"Foi um privilégio fazer parte do início da UMinho"

30-11-2015 | Paula Mesquita

Maria Emília Moreira está aposentada, tem 70 anos e nasceu em Penacova, Coimbra

Maria Emília chegou à UMinho em 1974 e mais tarde foi secretária pessoal do professor Carlos Lloyd Braga, primeiro reitor da instituição

Maria Emília (em pé, 6ª a contar da esquerda) entre colegas, na festa de Natal de 1977, realizada no salão medieval da Reitoria

Veio de Moçambique para a UMinho em 1974, por causa da guerra, través de professores conhecidos de Lourenço Marques que já estavam cá

Envolvia-se na organização de festas para docentes e funcionários: magusto, festa de Natal, sardinhadas e outras "patuscadas"

Primeiro Encontro das Universidades Portuguesas, em 1979. O almoço decorreu no Bom Jesus, debaixo de um sol abrasador

Maria Emília (ao centro, à esquerda do prof. Carlos Lloyd Braga) entre os colegas da UMinho que organizaram o IX Encontro dos Funcionários das Universidades Portuguesas

Com os professores Lúcio Craveiro da Silva e Sérgio Machado dos Santos, na Casa Nogueira da Silva, aquando da receção do Conselho da Europa em 1978

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Maria Emília Moreira

"Conheci gente muito boa e bonita, com quem aprendi imenso. Nessas pessoas está, definitivamente, o professor Lloyd Braga", evoca a sua secretária pessoal.


Maria Emília Frias Pita Moreira, aposentada, tem 70 anos e nasceu em Penacova, Coimbra. Ainda menina foi para Moçambique e aos 23 anos começou a trabalhar no Círculo Universitário de Lourenço Marques, onde era professor Carlos Lloyd Braga: aquele que viria a ser o primeiro reitor da Universidade do Minho.
 

O professor Carlos Lloyd Braga foi uma das primeiras pessoas com quem iniciou a sua vida profissional.
Sim, eu comecei a trabalhar no Círculo Universitário de Lourenço Marques, que era uma associação criada pelo então reitor da universidade, professor Veiga Simão, com a finalidade de ligar a universidade e o meio empresarial, tendo em vista a angariação de bolsas de estudo para o pessoal docente da universidade poder ir para países estrangeiros formar-se e desenvolver investigação. O professor Lloyd Braga era membro diretivo do Círculo Universitário. Como tinha o Curso Geral de Comércio e o curso de Gestão Hoteleira, acabei por ficar com as funções de coordenação do Círculo. Cabiam-me responsabilidades ligadas aos recursos humanos, à contabilidade, a assistência à direção,... As instalações ficavam no centro da cidade e, portanto, ali se recebiam as visitas oficiais, académicas e as mais altas individualidades que vinham a Lourenço Marques e à universidade.
 
Como foi o trabalho com o professor Lloyd Braga?
 Foi muito gratificante, honroso e sobretudo um grande desafio, pois era profundamente conhecedor de tudo o que tinha que ser aplicado e feito no Círculo. Gostava de se rodear de gente com iniciativa, com vontade de trabalhar e, principalmente, com vontade de aprender [sorriso] e desde logo me ensinou que “nunca se diz que não se sabe”!
 
E foi isso que fez.
Recordo-me de uma situação em que um dos sócios me mandou chamar à sala de jantar e dizer-me: “sra. Maria Emília, pela primeira vez, tenho que fazer um breve reparo: hoje o prato onde comi os espargos com manteiga não vinha devidamente quente!...” Sabia eu lá que tinha que se escaldar os pratos antes de servir! Apresentei o meu pedido de desculpa e fui logo ter com o cozinheiro. A partir daí, e como em muitas outras situações, passou-se a ter em conta mais uma tarefa. Aprendi decoração e a compor jarras de flores para as salas de receção. Estudei as marcas de vinhos e as suas regiões para ter sempre disponíveis os mais pedidos e saber aconselhar em caso de desprovimento. Foi assim que aprendi, foi assim que cresci. Conheci gente muito boa e muito bonita, com quem aprendi imenso e o professor Lloyd Braga está, definitivamente, entre essas pessoas. Todas as semanas havia reunião de direção e sempre me perguntavam se eu estava bem, se precisava de alguma coisa e se estava satisfeita. Foi um trabalho que teve tanto de diversificado como de interessante. Os objetivos cumpriam-se e o Círculo era considerado a sala de visitas de Lourenço Marques.
 
Mas o cenário alterou-se com a Revolução de Abril.
Em finais de 1974, devido à situação política gerada pelo 25 de Abril, teve que se encerrar o Círculo Universitário. Atribuíram-me funções na reitoria da Universidade de Lourenço Marques, onde era então reitor o professor José Correia Neves, que, curiosamente, manteve sempre a esperança de que nada se iria alterar e que ficaríamos ali para sempre. A verdade é que isso não aconteceu e ele acabou por ser mesmo o último reitor português daquela universidade.
 
Foi aí que veio para Portugal?
Depois de 24 anos, e com muita pena, tive que deixar Moçambique. A guerra estava instalada e não havia opção. Como já estavam cá alguns professores que eu conhecia de Lourenço Marques, pedi colocação em Braga. Em 24 de outubro de 1974 iniciei funções na UMinho. A universidade tinha sido recentemente criada e estava em regime de Comissão Instaladora, presidida pelo professor Carlos Lloyd Braga. Se bem me lembro, os vogais eram os professores Barbosa Romero, Freitas do Amaral, Pinto Machado, Lúcio Craveiro da Silva e António Carneiro. Fiquei a trabalhar na Reitoria, numa sala enorme do Largo do Paço, onde estavam vários serviços, pois as instalações ainda não estavam feitas. Comecei no registo do correio. que chegava à UMinho. Naquela altura, naturalmente, fazia-se à mão, num grande livro de registos. Ao mesmo tempo, punha um carimbo nas cartas que lhes atribuía um número. Depois de registado, o correio era separado para distribuição.
 
Como foram esses primeiros tempos?
Trabalhei com alguns colegas naturais de Braga. Lembro-me do Afonso, da Silvéria, da Isabel Maria, da Rosinha e do Fernando. Vindos do ultramar, recordo-me da dra. Maria José Gusmão e da Maria José Ramos. Foram tempos de muito trabalho e todos tínhamos de fazer o que era preciso. O professor Lloyd Braga andava sempre a correr para o Ministério da Educação, em Lisboa, para conseguir as verbas e as aprovações que necessitava. Passávamos a noite a “bater as teclas” na máquina de escrever para depois ele ir com o Fernando e a sua almofada - ele dormia durante a viagem [sorriso] - e estar logo pela manhã, ao abrir o Ministério, começar a “guerra”. Todos fazíamos tudo; não havia horas, não havia classes. Éramos uma família! Aos domingos, nós, os de mais longe, sem casa nem família por perto, juntávamo-nos na casa de um colega que fosse daqui, participávamos nas despesas e fazíamos caril de galinha. No fim, jogávamos e cantávamos. Havia um colega, o Lenine, que cantava muito bem o fado de Coimbra! Fomos sempre bem acolhidos em Braga. Eu aluguei um quarto na casa de um casal muito querido. O marido era o comandante da Polícia de Braga e tinham uma filha com quem fiz amizade. Felizmente, ainda hoje somos amigas.

 
Um reitor simples e descontraído

O professor Lloyd Braga também aplicou a sua força na UMinho.
 Era um lutador. Foi incansável no crescimento da universidade. Para ele, e para nós que o rodeávamos, não havia mãos a medir: era arregaçar as mangas e vencer, custasse o que custasse. Tinha uma estatura imponente, mas era muito simples, até na própria forma de vestir, e andava sempre com ar descontraído. Houve um dia, ia ele a passar no átrio da Reitoria, do Salão Medieval para a escadaria – ainda não havia porteiro, nem qualquer funcionário à entrada – quando entra um senhor que logo o interpela: “Olhe, pode dizer-me como posso falar com o  sr. reitor?” Responde-lhe o professor Lloyd Braga: “Olhe, sou eu. Diga lá!”, tal era a sua simplicidade. Se calhar, era esta forma de estar que nos movia…
 
…e que fez a UMinho crescer.
Admitiam-se constantemente novos docentes e funcionários. Começaram a chegar colegas de ex-colónias, que vinham essencialmente de Angola e Moçambique. Crescemos de tal forma que as nossas festas de Natal passaram a ser feitas no Salão Medieval, para que todos se juntassem, incluindo as crianças, e pudéssemos distribuir uma prendinha por cada uma. Tínhamos o apoio da Reitoria, dos docentes e principalmente do eng. Heitor Almeida, que ensaiava os cânticos de Natal! Fazíamos sardinhadas para funcionários, docentes e famílias. Quando apareciam as castanhas, organizávamos um magusto no Largo do Paço. Contratávamos o senhor que assava as castanhas na rua e lá vinha ele com o carrinho. Uma vez, estava a malta à espera e ele nada de aparecer. Tinha-se esquecido! Eu peguei no carrinho, que fumegava por todos os lados, outra colega pegou no saco das castanhas e lá viemos, pela Rua do Souto fora. Deu para umas boas risadas, a festa fez-se e beberam-se uns copos. As despesas eram sempre divididas por todos. Era um grupo de colegas incrível, sempre pronto para ajudar. Não me atrevo a mencionar nomes, porque posso esquecer-me de alguém. Seria injusto. Além do mais, todos nós sabemos quem éramos!
 
Um dos primeiros acontecimentos organizados pela UMinho foi o 1º Encontro das Universidades Portuguesas.
Foi um sucesso! [sorriso] Organizou-se um almoço sentado no Bom Jesus para todos os colegas e docentes de todas as universidades participantes. Estava um dia maravilhoso, um sol escaldante nada previsto. Como era ao ar livre, começou tudo a abafar e a proteger a cabeça. Lembrei-me de pedir aos motoristas para irem ao Largo do Paço buscar jornais velhos e fizemos bonés para pôr na cabeça. A festa animou-se enquanto se comiam os bons rojões do nosso Minho, regados com bom vinho verde. Enfim, foi uma ótima forma de todos nos conhecermos e criar uma boa relação. A partir daí, o evento repetiu-se por vários anos, numa universidade diferente.
 
O Museu Nogueira da Silva também marca o seu percurso pela UMinho.
Em 1975, a Universidade do Minho recebeu do comendador Nogueira da Silva um legado composto por duas casas, uma em Lisboa outra em Braga. Eu e o Afonso (falecido), que trabalhava na Biblioteca Pública, fomos destacados para fazer o inventário. Para coordenar este serviço, o reitor nomeou o professor Mendes Atanásio (falecido), docente de História de Arte. Primeiro trabalhámos em Lisboa. A casa de Braga ficava na Avenida Central. Tinha três andares e nas traseiras um jardim magnífico com estatuetas. Foi um trabalho que durou cerca de dois anos. Para fazer o inventário de todo aquele património tínhamos de pegar nas peças, identificá-las e descrevê-las. Felizmente, nenhum “acidente” aconteceu! Terminado o inventário, continuou a coordenar-nos o arquiteto Luís Mateus. Havia que pôr a Casa de novo ao serviço. Então os convidados da Universidade eram ali recebidos e alojados nos mesmos quartos que antes acomodavam o comendador e a sua família. A grande sala de jantar passou a ser o espaço de receções e outros eventos. A acompanhar-nos nesta lida contámos com “prata da Casa”: três funcionárias do tempo do sr. comendador, que já estavam mais do que treinadas e conheciam a história e os cantos todos.
 
Quem recorda ter sido lá recebido?
Muita gente. Assim de repente, lembro-me do dr. Azeredo Perdigão, primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, e sua senhora; o D. Duarte Nuno de Bragança, entre outros. Foi um tempo em que revivi todo o passado e experiência do Círculo Universitário em Lourenço Marques, tornando o trabalho mais fácil. O “pesadelo” era mesmo as peças expostas!
 
A partir daí, o seu percurso profissional divide-se entre Lisboa e Braga.
A minha primeira saída da UMinho foi em agosto de 1978, quando o professor Lloyd Braga, nomeado ministro da Educação, me convidou para o acompanhar enquanto sua secretária pessoal. Foi uma experiência diferente, mas não difícil, porque já estava habituada aos horários do professor. Regressei à Universidade em novembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1985, voltei ao Ministério de Educação para acompanhar o professor João de Deus Pinheiro. Fui sua secretária pessoal até março de 1987. Em agosto desse ano voltei a acompanhá-lo quando assumiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Três anos mais tarde, regressei à UMinho.
 
Alguma vez imaginou no que a UMinho se viria a tornar quatro décadas depois?
Sempre tive a certeza de que a obra que estava a ser criada e construída pelos nossos reitores, professores e funcionários iria tornar-se num grande marco na vida de todos e iria servir longamente os nossos alunos. A cidade de Braga, que era linda e rica quando a conheci, passaria a ser ainda mais rica e poderosa. E o mesmo aconteceria com Guimarães.
 
Sente-se privilegiada por ter sido uma entre os primeiros?
Foi um privilégio ter vindo para a UMinho no seu primeiro ano de vida. Foi um privilégio ter conhecido os meus colegas e trabalhado com eles. E foi um privilégio, ao fim de poucos meses, passar pela Rua do Souto, a caminho do Largo do Paço, e chamarem-me para pedir que levasse uma carta para o reitor ou para um serviço qualquer, uma encomenda para o colega da tesouraria, o que fosse… falavam-me como se me conhecessem há anos! Nunca esquecerei. Isso, sim, foi um privilégio!
 


  As “tradições” de Maria Emília

  Um livro. “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado.
  Um filme. "Aniki Bóbó", do realizador Manoel de Oliveira.
  Uma música. Fado de Coimbra.
  Uma figura. Zeca Afonso.
  Um passatempo. Palavras cruzadas.
  Um sítio. Bom Jesus de Braga.
  Um momento. Qualquer um. Desde que me proporcione alegria!
  Um vício. Tabaco.
  Um prato. Mexidos.
  Um sonho. Que todos tenham acesso à Educação.
  Um lema. Amanhã melhor do que hoje.
  A UMinho. Uma vitória do “Interior”.