Há 5000 anos influenciámos a Europa

29-04-2016 | Nuno Passos

Pedro Soares investiga no Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) e no Instituto para a Biossustentabilidade (IB-S) e é ainda professor convidado de Genética Molecular e Bioinformática na UMinho

Vasos campaniformes e utensílios de um túmulo de Villabuena del Puente, em Zamora, Espanha (foto de P. Witte)

Os vestígios de vasos campaniformes foram achados numa área que vai da Irlanda à Ucrânia, do Norte de Marrocos à Sicília

Os aborígenes bushmen, do deserto do Kalahari, que falam com cliques, são dos grupos étnicos mais divergentes da genealogia humana (foto do portal x-ploregroup.com)

A representação do ADN, numa ilustração de Kay Morrison

“A meta não é tentar descobrir sozinho a História da espécie humana, mas sim fazê-lo sempre em colaboração com outras áreas”, considera, antes da foto nos jardins da Reitoria

Para o investigador, a genética mostra por vezes que modelos científicos a que se presta menos atenção passam entretanto a fazer sentido

O Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) situa-se na Escola de Ciências da UMinho, no campus de Gualtar, Braga

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As inovações e a cultura campaniforme marcaram o velho continente, diz o geneticista Pedro Soares, do Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA).




As inovações e a cultura ibéricas, sobretudo lusitanas, marcaram a Europa há quatro e cinco milénios. Pedro Soares, investigador do CBMA da UMinho, quer confirmar esta teoria nos próximos três anos – coordena um projeto que inicia este mês e deve envolver parcerias com arqueólogos, antropólogos, linguistas e geneticistas de Huddersfield (Inglaterra), Pavia (Itália), Santiago de Compostela (Espanha), Porto e Algarve.
 
“No final da Pré-História surgiu na Estremadura portuguesa a cultura campaniforme, associada a recipientes com a forma de sino, novos objetos, técnicas avançadas e comércio à distância. Este povo teve supostamente uma onda de migração para o resto da Europa, influenciando-a significativamente no seu desenvolvimento económico, social e cultural”, diz Pedro Soares. “Estaríamos na altura a exportar inovações para a atual Alemanha, o que hoje sucede provavelmente ao contrário”, exemplifica. O estudo poderá assim demonstrar que não foi apenas nos Descobrimentos que os ibéricos influenciaram o mundo “conhecido”.
 
O projeto de investigação de Pedro Soares é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e intitula-se “Origens da cultura campaniforme: testando a hipotética expansão Neolítica a partir da Península Ibérica usando genomas mitocondriais atuais e antigos”. A ideia é olhar pelo retrovisor da História e comparar populações, através do ADN mitocondrial. Este é um pequeno anel de material genético que está fora do núcleo celular, nas "baterias" das células ou mitocôndrias, e é transmitido pelas mães às filhas e filhos, permitindo assim remontar às mães genéticas ancestrais de dada população. Também é possível estudar linhagens patrilineares, através do cromossoma Y (determinante do sexo masculino), passado pelos pais aos seus filhos homens.
 
Pedro Soares vai avaliar as linhagens encontradas em ossadas e restos arqueológicos de há 4000, 5000 anos e tentar encontrar ligações entre as populações ibéricas e as da Europa central, britânica, de leste e mediterrânica. Um parceiro fulcral é Martin Richards, da Universidade de Huddersfield, sede de um dos melhores laboratórios mundiais na extração e análise de ADN antigo. “Não se sabe ainda a motivação dessa migração ibérica, mas a influência que teve na cultura europeia reúne consenso entre cientistas de vários ramos e geografias”, frisa o investigador do CBMA. Há linguistas e arqueólogos ingleses a ligar esta migração à afirmação da cultura dos celtas, surgidos na Península Ibérica e que depois rumaram pela costa atlântica até às ilhas britânicas.
 
A cultura campaniforme terá nascido na região do estuário do Tejo, a crer nos vestígios de inícios da Idade do Cobre encontrados nos castros de Zambujal (Torres Vedras), São Pedro (Azambuja) ou Chibanes (Palmela). O fenómeno coincidiu com inovações como a prática da agricultura, a invenção da roda, o uso da força animal para transporte ou a domesticação de animais, como o cavalo, alargando as trocas comerciais (chegou marfim à Estremadura, por exemplo). Os vasos e copos campaniformes, por vezes decorados, foram sobretudo achados em contexto funerário, a par de objetos como punhais de cobre, proteções de braço dos arqueiros e botões em “V” perfurados.
 

Cidadãos querem descobrir as suas origens ascentrais

Os estudos sobre evolução humana e ancestralidade são ainda emergentes em Portugal, mas geram bastante impacto nos países anglo-saxónicos e do centro europeu, com cidadãos curiosos em descobrir pelo ADN se vieram de África ou se descendem dos primeiros colonizadores, dos indo-europeus agrícolas ou dos vikings. Grupos étnicos como ciganos e judeus têm sido muito estudados, tal como os bascos, que frequentemente se autoclassificam como descendentes de uma população diferente da ibérica. “Não se confirma, os bascos viveram isolados muito tempo e daí terem certas linhagens diferentes, mas o padrão genético é comum”, nota Pedro Soares.
 
O investigador afirma ainda que a maior parte da descendência materna da população judia europeia tem origem na própria Europa e não na chamada Terra Prometida. A conclusão desse estudo foi publicada na conceituada revista Nature Communications e gerou discussão na sociedade. “Nós fazemos ciência e queremos fugir de polémicas e interpretações com base no olhar político ou dominante da atualidade”, rebate.
 
Pedro Soares dedica igualmente trabalhos a outros continentes. No caso do Sudeste Asiático e Pacífico abordou no doutoramento tribos como orang asli e semang, na atual Malásia, que variam entre colonizadores primitivos, caçadores-recoletores e agricultores. “Muitos países asiáticos têm leis que proíbem a exportação de amostras de ADN para pesquisa. Por isso, apostei em fortes colaborações com grupos de genética e arqueologia locais, o que se torna vantajoso nos dois sentidos”, justifica.
 
A sua pesquisa estende-se à África, onde o homo sapiens sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos em África. Mas não há consenso se foi no Norte/Centro ou no Sul. Por exemplo, os aborígenes bushmen, do deserto do Kalahari, que falam com cliques, são dos indivíduos mais divergentes da genealogia humana, assinala. Será preciso restos paleontológicos de 200 mil anos com qualidade para sequenciar ADN. “A evolução humana é atualizada com derivações por vezes inesperadas. É claramente das áreas científicas mais multidisciplinares e esse cruzamento de saberes permite estabelecer melhor o modelo mais provável de colonização de certa região, quando esta sofreu a redução e o aumento da população ou a migração de regiões exteriores”, contextualiza.
 
Pedro Soares assinala, no entanto, que há grupos académicos mais conservadores que tardam em aceitar descobertas dos geneticistas. “Por vezes contrariamos teorias de décadas, cujos cientistas e comunidades visadas têm esses modelos ‘no coração’. Por exemplo, em diversas regiões da Ásia pensava-se que as populações descendiam dos invasores que vieram com a agricultura, mas provámos que isso não foi violento, houve uma pequena onda de migrantes e os povos locais assumiram aos poucos o modo de vida e a aprendizagem da agricultura”, frisa.
 

Bases de dados falham na informação antropológica
 
Qualquer estudo na área obriga ao depósito em bases de dados das sequências de ADN associadas. Há várias bases internacionais comparativas de ADN, como a 1000 Genomes. Incluem também outras espécies de hominídeos, mas apesar da amplitude falham por vezes na informação antropológica, não identificando, por exemplo, diferenças entre grupos étnicos conterrâneos – pode estar aqui o segredo de um estudo ou, em parte, da evolução humana.
 
No seu dia-a-dia, o geneticista faz uma amostragem da população geral para tentar reconstruir o que existia no passado, mostrando linhagens de convergência entre as diferentes pessoas do grupo. Todos temos porções de ADN mitrocondrial que eventualmente vão convergir num certo ponto; no caso europeu, é nos últimos 50-60 mil anos.
 
O trabalho do geneticista para obter ADN atual é simples e não invasivo. Escova ligeiramente o interior da boca da pessoa, mergulha essa saliva num líquido e extrai o ADN, fazendo a respetiva sequenciação. Esta é depois comparada com diferentes pessoas e relações, numa espécie de árvore na qual as interseções superiores dão possíveis sequências a determinado número de anos. Como ao longo da vida acumulamos mutações, tenta-se ainda ajustar uma taxa de mutação, chamada “relógio molecular”, para aproximar as sequências e dizer, por exemplo, se se relacionam há 10 ou há 15 mil anos.
 


Nota biográfica
 
Pedro Soares nasceu em Amares, distrito de Braga, há 35 anos e está há dois anos na UMinho, como investigador do CBMA e do Instituto para a Biossustentabilidade (IB-S) e como professor convidado de Genética Molecular e de Bioinformática. Fez a licenciatura em Biologia na Universidade do Porto (UP) e o doutoramento e pós-doutoramento em Genética Humana na Universidade de Leeds (Reino Unido), com bolsas Marie Curie e da British Academy, respetivamente. Fez ainda um pós-doutoramento no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da UP (IPATIMUP). Os seus artigos científicos foram citados quase duas mil vezes nos últimos cinco anos.