Discursos racistas e xenófobos têm crescente popularidade e capital político

24-01-2017 | Pedro Costa

Patrícia Jerónimo é professora do Dept. Ciências Jurídicas Gerais da Escola de Direito (EDUM) e investigadora do Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos (DH-CII) e do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU)

Reunião do grupo de investigação no Centro Europeu de Estudos Políticos (CEPS), na Bélgica

Patrícia Jerónimo (quarta à esquerda) entre os parceiros do projeto de investigação europeu

Encontro intercalar da equipa do TRANSMIC, em maio de 2016, em Bruxelas, com Patrícia Jerónimo (de vermelho) ao centro

Mulheres e crianças sírias bloqueadas em junho de 2016 na plataforma da gare de Budapeste, Hungria (foto: Mstyslav Chernov)

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Patrícia Jerónimo, da Escola de Direito, crê que há uma demonização dos imigrantes e dos refugiados na Europa.




O Programa para as Migrações Transnacionais, Cidadania e Circulação de Direitos e Responsabilidades (TRANSMIC) pretende contribuir para a compreensão daquelas migrações, nomeadamente pela análise das suas condições e efeitos, das possibilidades de aumentar a mobilidade dos direitos dos migrantes e dos vínculos entre migração, cidadania e desenvolvimento. O projeto decorre desde 2014 e até agosto de 2018, sendo financiado no âmbito das "Acções Marie Curie - Redes de Formação Inicial" (ITN) da Comissão Europeia. Tem na Escola de Direito da UMinho (EDUM) uma entidade parceira e tem ainda a Universidade de Maastricht (Holanda), que lidera, além das universidades de Liège (Bélgica), Oxford (Reino Unido), Aix-Marseille (França), Tampere (Finlândia), Varsóvia (Polónia) e o Centro Europeu de Estudos Políticos (Bélgica). Além destas, também se associaram o Instituto Europeu Universitário (Itália), o Instituto Europeu de Administração Pública (Holanda), a Everaert Advocaten (Holanda), o Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas de Migração (Áustria), o Instituto de Políticas de Migração (EUA/Bélgica) e o Instituto de Investigação da Paz (Noruega). Patrícia Jerónimo é a coordenadora para a UMinho e concedeu uma entrevista ao NÓS para esclarecer o papel estruturante do projeto no âmbito das migrações.

Quais os objetivos fundamentais do TRANSMIC?
É uma Initial Training Network (ITN) financiada pela Comissão Europeia, coordenada pela Universidade de Maastricht e com a participação de várias universidades e centros de investigação europeus. Enquanto ITN, envolve uma componente de formação académica e profissional, para além de uma componente de investigação científica interdisciplinar, concretizada através do desenvolvimento, por investigadores recrutados especificamente para o efeito, de projetos individuais de doutoramento e de pós-doutoramento. Os objetivos fundamentais incluem a discussão do conceito de migrações transnacionais, a análise crítica do modo como, na prática, a mobilidade dos indivíduos é frequentemente prejudicada pela imobilidade dos seus direitos e o mapeamento de padrões migratórios transnacionais para identificar as condições em que estes podem ser simultaneamente benéficos para os países de origem, para os países de acolhimento e para os próprios migrantes.

Qual é o seu papel, bem como o da Escola de Direito da UMinho (EDUM), neste trabalho?
A EDUM participa de várias formas. Tal como os demais parceiros, acolhe um aluno de doutoramento - neste caso, a dra. Fanny Tittel-Mosser - que está a desenvolver um projeto de investigação sobre as Parcerias para a Mobilidade celebradas entre a União Europeia, alguns dos seus Estados-Membros e países terceiros, procurando perceber, por um lado, qual o impacto que este tipo de instrumento tem sobre a regulação das migrações e dos direitos dos migrantes nos países terceiros e, por outro lado, em que medida os laços pós-coloniais entre países terceiros e Estados-Membros da UE, como Portugal e França, influem sobre o modo como as Parcerias para a Mobilidade são postas em prática. A dra. Fanny Tittel-Mosser está a ser orientada por mim e pelo professor Maarten Vink, da Universidade de Maastricht. Além deste contributo-base, a EDUM foi uma das instituições parceiras que organizou e acolheu uma sessão de formação de uma semana, em abril de 2015, com participação de docentes das instituições parceiras e de todos os alunos de doutoramento e de pós-doutoramento integrados no TRANSMIC. Enquanto coordenadora do projeto na EDUM, fui responsável pela organização da sessão, para além de ter lecionado um dos módulos do programa. Tenho também estado nas reuniões de coordenação do projeto, realizadas em Maastricht, em Liège e em Bruxelas.
 
O projeto envolve um grande grupo de entidades e universidades europeias. No entanto, o fenómeno é mundial. Qual é a abrangência da intervenção do TRANSMIC?
O caráter mundial das migrações internacionais é refletido em vários aspetos, a começar pelos temas incluídos na formação académica proporcionada aos investigadores durante o primeiro ano do projeto. Além disso, os alunos de doutoramento e de pós-doutoramento foram recrutados através de concursos abertos a candidatos de qualquer parte do mundo e, apesar do claro predomínio de investigadores europeus, conta com uma aluna de doutoramento chinesa e com um aluno de pós-doutoramento norte-americano. Por outro lado, os temas objeto dos projetos individuais de investigação têm, na maioria dos casos, uma forte dimensão comparativa e olham muito para além do contexto europeu. É o que se passa, por exemplo, com o projeto desenvolvido na UMinho, que se centra nas Parcerias para a Mobilidade celebradas com Marrocos e Cabo Verde. Outros projetos incidem sobre a Índia, os EUA, a China, o Sri Lanka e vários países da América Latina.


"Preocupa-me a pujança económica do tráfico de pessoas"

De que forma a análise deve ser pensada ao nível dos direitos e responsabilidades? Quais são os maiores riscos?
Há já vários anos que, no discurso oficial da UE, se fala muito em migrações transnacionais ou circulares. Umas vezes para descrever as caraterísticas das migrações contemporâneas, outras vezes para apontar o tipo de migrações que nos interessam e que devemos incentivar. O que sejam exatamente migrações transnacionais/circulares não é consensual, mas a ideia-chave é a de que, com as facilidades de deslocação e comunicação que hoje temos, os migrantes mantêm, cada vez mais, contactos com os respetivos países de origem, aos quais regressam frequentemente para fazer investimentos, visitar a família, participar na vida política, entre outros aspetos. Esta circularidade tem sido incentivada pela UE com o argumento de que, desse modo, os imigrantes oriundos de países terceiros podem contribuir para o desenvolvimento dos seus países de origem, contrariando desse modo o problema da “fuga de cérebros”. Os incentivos da UE às migrações circulares podem, no entanto, ser vistos, de forma mais cética, como uma estratégia pensada sobretudo para evitar que os imigrantes se instalem permanentemente no território dos Estados-Membros.

Este ceticismo está subjacente no TRANSMIC?
Sim, procuramos testar se a aposta nas migrações circulares é ou não acompanhada por incentivos à mobilidade para os imigrantes oriundos de países terceiros. Quando um indivíduo cruza a fronteira de um Estado, que direitos leva consigo e que direitos deixa para trás? Se um imigrante perde direitos (de acesso ao mercado de trabalho, a benefícios sociais, à naturalização...) por se ausentar do país de acolhimento por seis meses ou um ano, isto constitui um obstáculo muito significativo à mobilidade. Um dos objetivos do TRANSMIC é precisamente identificar e discutir os obstáculos e as oportunidades que existem à circulação de direitos e responsabilidades e, por aí, à mobilidade transnacional. A inclusão da referência a responsabilidades ao lado da referência a direitos não resulta de uma preocupação específica com a imposição de deveres aos imigrantes, ainda que este aspeto esteja na ordem do dia. Trata-se sobretudo de convocar uma fórmula que já vai sendo habitual no discurso político e académico sobre a integração dos imigrantes: a de que a integração é um processo bidirecional que implica adaptações – e o reconhecimento de direitos e deveres – de parte a parte, quer das sociedades de acolhimento, quer dos imigrantes, os quais têm sempre o dever de cumprir a lei do país de acolhimento. 

Que efeitos das migrações contemporâneas são mais preocupantes, na sua perspetiva?
As migrações internacionais de grande escala não são um fenómeno novo. O que é (relativamente) novo é a extrema politização do assunto nos países ditos de imigração, onde se ganham ou perdem eleições consoante as posições assumidas em matéria de controlo de fronteiras e de integração dos imigrantes. Pode parecer-nos estranho, mas, na Europa, estes temas só ganharam protagonismo político nas últimas décadas do século XX, quando se chegou à conclusão de que os imigrantes admitidos como trabalhadores convidados não iriam regressar aos seus países de origem e estavam, pelo contrário, a instalar-se nos países europeus de acolhimento a título permanente e a fazer-se acompanhar pelas suas famílias. Aí, tentou-se restringir o acesso de novos imigrantes, mas, como se sabe, as medidas restritivas não travaram a imigração, apenas contribuíram para o aumento da imigração irregular e das oportunidades de negócio para os traficantes. A dimensão securitária que as políticas de imigração assumiram na sequência dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 veio apenas agravar este cenário. A meu ver, o que é preocupante nas migrações contemporâneas não é o número de pessoas em trânsito, ainda que não possa deixar de condoer-me por todas as pessoas que são forçadas a sair dos seus países de origem e a procurar asilo noutro país. O que me preocupa é a pujança económica do tráfico/contrabando de pessoas (diretamente proporcional ao seu grau de desumanidade) e a demonização dos imigrantes e dos refugiados nas sociedades europeias de acolhimento, onde os discursos abertamente racistas e xenófobos gozam de crescente popularidade e capital político.


A pressão migratória não vai diminuir

Pode afirmar-se que foi a globalização que trouxe um novo paradigma para os fenómenos da migração?
Globalização é um daqueles termos que se presta a controvérsias intermináveis. Há quem diga que a globalização começou com a expansão ultramarina dos portugueses e dos espanhóis. Há quem prefira falar em globalizações para sinalizar a complexidade do fenómeno e o seu caráter multifacetado. Enfim… É claro que também se pode falar em globalização para designar simplesmente o conjunto de conquistas tecnológicas que, nas últimas décadas, transformaram o planeta numa “aldeia global”. Neste sentido, podemos efetivamente estabelecer uma relação direta entre globalização e migrações transnacionais, já que são os avanços tecnológicos nos meios de transporte e de comunicação que potenciam a manutenção, pelos migrantes, de laços - pessoais, profissionais, políticos - simultâneos com os países de origem e de acolhimento e com diásporas noutros lugares do mundo. Este caráter transnacional/circular das migrações contemporâneas levanta problemas específicos relacionados com a mobilidade dos direitos e deveres, como referi, e obriga-nos a repensar o que poderá/deverá exigir-se dos imigrantes como sinal de integração nas sociedades de acolhimento. Podemos dizer, por isso, que se trata de um novo paradigma das migrações internacionais trazido pela globalização.
 
Este é um processo em mutação permanente?
Relembro que as migrações internacionais de grande escala não são um fenómeno novo. Há tendências recorrentes, como a procura de países de destino no hemisfério Norte, ao lado de tendências novas, como o crescimento das migrações Sul-Sul. Não é de esperar que a pressão migratória diminua, porque os fatores que levam as pessoas a sair dos seus países de origem não vão desaparecer - a procura de um melhor nível de vida, a fuga a situações de guerra ou a perseguição por motivos políticos ou religiosos, entre outros. É previsível, no entanto, que as rotas, os perfis dos migrantes e as políticas de imigração e de integração dos países de acolhimento sofram alterações, influenciando-se reciprocamente. 
 
Os objetivos finais do projeto ficarão na interpretação e compreensão enquanto ferramentas, ou haverá lugar à produção de propostas de intervenção?
O TRANSMIC pretende não apenas compreender as migrações transnacionais, mas também avançar propostas de intervenção a recomendar aos decisores políticos. Uma das componentes da formação ministrada no primeiro ano do projeto incidiu precisamente sobre a produção de policy papers. O projeto desenvolvido na UMinho por Fanny Tittel-Mosser é especialmente relevante pelos contributos que trará para o debate político sobre as Parcerias para a Mobilidade, sobre cujos efeitos práticos ainda se sabe muito pouco. Nas conferências internacionais em que aquela investigadora tem vindo a apresentar resultados preliminares da sua investigação, o interesse manifestado por representantes da Comissão Europeia e outros stake holders tem sido muito grande.