E se tivéssemos direito a um rendimento fixo para a vida?

28-04-2017 | Catarina Dias

Professor de filosofia moral e política do Instituto de Letras e Ciências Humanas e diretor-adjunto do seu Centro de Ética, Política e Sociedade, Roberto Merrill é um dos principais porta-vozes do movimento "RBI Portugal"

Pagar um RBI de 450 euros a 30% dos portugueses que recebem até 700 euros por mês implica uma despesa de 17.5 mil milhões de euros. "É perfeitamente realizável", realça o investigador da UMinho

A atribuição do RBI pode vir a solucionar o problema do desemprego tecnológico das próximas décadas

Alguns investigadores do Departamento de Filosofia (da esquerda para a direita): João C. Rosas, Pedro Martins, Acílio E. Rocha, J. Marques Fernandes, Manuel Gama, Vítor Moura, Sara Gonçalves, João R. Mendes, Bernhard Sylla e Roberto Merrill

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Imagine receber um Rendimento Básico Incondicional (RBI), quer trabalhe ou não, quer seja rico ou pobre. A medida está a ser testada em vários países. Entrevista ao investigador Roberto Merrill.




Imagine uma sociedade na qual todos recebem um Rendimento Básico Incondicional (RBI) apenas por estarem vivos. Uma quantia atribuída aos cidadãos de um Estado, quer trabalhem ou não, quer sejam ricos ou pobres. Esta medida está a ser testada em vários países do mundo, incluindo a Finlândia, Holanda, Canadá e EUA. Por cá, o tema divide partidos de esquerda e direita. Roberto Merrill, diretor-adjunto do Centro de Ética, Política e Sociedade e cofundador do movimento “RBI Portugal”, fala do tema a 19 de maio numa conferência mundial, que decorre na UMinho e prevê a presença do ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José Vieira da Silva.
 
O que é o RBI?
Trata-se de um rendimento distribuído pelo Estado a todos os cidadãos de um país. É incondicional, pois a sua atribuição não depende da riqueza das pessoas nem do seu desejo de quererem trabalhar. É também universal porque é dado a cada indivíduo, permitindo-o ter uma vida digna.
 
Todos recebem o mesmo montante, independentemente das possibilidades económicas ou da condição profissional. Faz sentido?
A primeira intuição é de surpresa ou até de choque moral porque parece injusto. Até porque já existe o Rendimento Social de Inserção (RSI) em vários países, que é distribuído pelos mais pobres da sociedade, desde que façam o possível para encontrarem um emprego. Ao ser incondicional, o RBI parece colocar em causa o próprio RSI. Estão a decorrer experiências-piloto em vários países muito desenvolvidos em termos de reflexão sobre o futuro do Estado Social. Na Finlândia estão a estudar os efeitos da medida na busca de emprego. Será que as pessoas com um rendimento básico incondicional arriscam mais na procura de emprego ou na criação da sua própria empresa ou optam pela inatividade? Para responder a estas dúvidas, o governo finlandês de centro-direita selecionou aleatoriamente dois mil desempregados que irão receber uma prestação mensal de 560 euros. O Governo de Juha Sipilä acredita que a implementação do RBI pode combater a subida do desemprego. Na Holanda, a experiência será promovida este ano pelo Governo e pela Universidade de Utrecht. O programa “Know What Works” vai beneficiar 250 cidadãos com 960 euros mensais durante dois anos. Serão divididos em seis grupos com condições e somas diferentes para perceber o que os motiva. Noutros países pretende-se verificar se o RBI, ao ser adicionado ao salário de base, incentiva as pessoas a saírem da armadilha da pobreza ou do desemprego.
 
É justo os "Bill Gates" deste mundo receberem também este apoio do Estado?
Há vários modos de financiamento. No Alasca - considerado o estado mais igualitário dos EUA - ricos e pobres recebem um RBI que advém da exploração de riquezas naturais, como o petróleo. Em Macau acontece algo semelhante, com parte das receitas auferidas em jogos a serem partilhadas pelos residentes. Nestes modelos, todos recebem o mesmo porque provém de um recurso natural que também é de todos. Seria injusto ser de outra forma. Mas há outros modelos, que são os dominantes, com inspiração de direita (Milton Friedman, Prémio Nobel da Economia de 1976) ou de esquerda (James Meade, Prémio Nobel de Economia de 1977). Há modelos redistributivos (de esquerda) que permitem ajudar quem mais precisa indo buscar o dinheiro aos mais avantajados. Neste caso, os cidadãos receberiam de igual forma todos os meses, sendo que os mais ricos acabariam por “financiar” parte do RBI através dos impostos. Mas também podemos imaginar a criação em Portugal de um Fundo com parte da riqueza decorrente da energia do mar, solar ou do turismo, capaz de beneficiar da mesma forma todos os portugueses, como acontece no Alasca.



“Medida não é utópica, é perfeitamente realizável”
 
Que proposta está a ser discutida para o contexto português? Esta medida seria financeiramente sustentável num Estado como o nosso?
Pagar um RBI de 450 euros a 30% dos portugueses que recebem até 700 euros por mês implica uma despesa de 17.5 mil milhões de euros. Não é de todo utópica, é perfeitamente realizável. Adotar-se-ia um modelo de financiamento redistributivo, com um rendimento que corresponderia a metade do que é necessário para viver dignamente em Portugal. Teoricamente o limiar da pobreza está em 440 euros por mês. O objetivo seria avaliar os efeitos da medida, ver se gera riqueza e autoemprego e se ajuda a reduzir a pobreza. Se tudo funcionar de forma positiva aumenta-se a quantia inicial, se for possível. Há académicos que propõem um ponto de vista mais gradualista (por exemplo, começar com 200 euros por mês), como o filósofo belga Philippe Van Parijs, e outros mais radicais que acham que é melhor colocar tudo em prática de uma vez.
 
E as prestações sociais manter-se-iam?
Imaginemos que começamos a receber 200 euros por mês. As prestações com valores abaixo desse montante são absorvidos pelo RBI. Os apoios com quantias superiores aos do RBI não serão eliminados num modelo de Estado Social progressista, porque o objetivo é fazer do RBI o sóculo e as outras ajudas serem adicionadas a esse montante. Claro que com um modelo de direita as pessoas podem vir a receber um RBI generoso, mas ficam sem acesso à saúde, à educação, ... Poderíamos ter esse debate em Portugal se os partidos políticos começassem a refletir mais seriamente sobre o assunto. É isso que estamos a tentar provocar e recentemente um conselheiro do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse-nos que os portugueses estavam a perder o comboio do futuro se não se interessassem pelo RBI.
 
A atribuição de um RBI elevado levaria a longo prazo à privatização dos serviços?
Eu seria inteiramente contra uma versão do RBI que existiria apenas em troca do Estado Social. Não se justifica, seria de uma violência extrema. Devemos continuar a acreditar no Estado Social nos moldes em que tem vindo a existir. Se tivermos um debate sério sobre o assunto é óbvio que a direita, o liberalismo económico vai querer defender esta variante.
 
Portanto, há riscos de a medida ser desvirtuada…
Não podemos ser demasiado sectários. As pessoas que defendem o RBI em troca do Estado Social estão convencidas que é a melhor opção para uma sociedade mais civilizada e pela qual devemos lutar. No fundo, tudo remete para uma conceção do que é a liberdade de cada pessoa. Sabe-se que os grandes pensadores de direita têm uma conceção negativa da liberdade e os da esquerda têm uma noção de liberdade mais espessa e dependente das relações com os outros.
 
Esta ideia do RBI vem alterar a noção de trabalho?
Devemos começar por distinguir entre emprego e trabalho. O emprego é remunerado e o trabalho nem sempre conta com um salário. A maioria das atividades que fazemos no dia-a-dia não é assalariada, como cuidar de crianças e idosos, fazer voluntariado, … Neste sentido, o RBI pode vir a contribuir para o reconhecimento social de muitas atividades não-produtivas economicamente, mas que, no entanto, têm funções essenciais na sociedade.
 
É uma medida que pode vir a dar resposta ao desemprego tecnológico que aumentará ainda mais nas próximas décadas?
Este é outro aspeto que ajuda o RBI a entrar no debate público. Há muitos relatórios internacionais que referem que é provável que o desemprego tecnológico atinja números jamais vistos. Estamos à espera para ver. Podemos até perguntar-nos de maneira desconfiada se esta perspetiva não é fruto da agenda de capitalistas que têm todo o interesse em colocar robôs a trabalhar ao invés de pessoas, por exemplo. Se essa tendência se confirmar, é claro que o RBI surge como uma solução.
 

 
Portugueses a favor do RBI
 
O RBI já foi testado em Portugal?
Ainda não, mas seria interessante realizar uma experiência-piloto mais abrangente do que a finlandesa. Por exemplo, podia-se atribuir o RBI também a pessoas empregadas para ver se deixam de trabalhar, procuram um emprego mais estimulante ou criam o seu próprio negócio.
 
O RBI está longe de ser consensual, tanto à direita como à esquerda. Em Portugal, creio que só o PAN defende esta medida.
As lutas de esquerda sempre foram feitas graças a conquistas nas relações de trabalho. Se os partidos de esquerda acham que o RBI vai destruir o que ajudaram a construir, têm toda a razão em desconfiar. Que o façam à vontade, mas, por outro lado, que tentem encontrar soluções para o desemprego, a pobreza e os sindicatos cada vez mais esvaziados. À esquerda, o mais claro na sua rejeição é o ex-líder do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, e o mais recetivo, embora um pouco reticente, é o atual ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva. A historiadora Raquel Varela, que talvez seja uma intelectual mais próxima do Partido Comunista, tem uma atitude de rejeição, mas aberta ao diálogo. É preciso estudar e debater o tema seriamente. Infelizmente, em Portugal não há uma cultura do debate informado ao nível das teorias, a classe política lê e discute pouco as grandes teorias da filosofia política…
 
Acha que os portugueses têm abertura para a implementação do RBI?
Claramente. Em 2016 foi realizada, pelo Dalia Research, uma sondagem a nível europeu sobre o assunto. Dois terços dos inqueridos pronunciaram-se a favor de um RBI, tendo os portugueses votado maioritariamente a favor.
 
O RBI será discutido em setembro no Parlamento. Até lá estão agendados em Lisboa um workshop (15 de maio) e um congresso mundial (25 a 27 de setembro). O assunto será também debatido em breve na UMinho. 
Exatamente. Em Lisboa estarão presentes dezenas de especialistas de vários países que têm vindo a investigar a evolução e as consequências do RBI em sociedades contemporâneas. O workshop, que decorre na Universidade de Lisboa, prevê a presença do ministro Vieira da Silva, que regressa à UMinho no dia 19 de maio para a conferência “Futuro do Trabalho”, na qual também participo.

* Foto da homepage proveniente do portal colourbox.dk