"Para mim, a emoção é tudo!"

31-05-2017 | Nuno Passos

Na ópera "Banksters", de Nuno Côrte-Real e encenação de João Botelho, com o barítono Diogo Oliveira, no Teatro Nacional de São Carlos (foto de Alfredo Rocha)

Com Gregory Monk em "The Turn of the Screw", de Benjamin Britten e encenação de Ricardo Pais, no Teatro Nacional de São João, no Porto

Em "O Sonho", de Pedro Amaral e com encenação de Fernanda Lapa, no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (foto de Márcia Leça)

Em "O Sonho", de Pedro Amaral e com encenação de Fernanda Lapa, no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (foto de Márcia Leça)

Em "O Sonho", de Pedro Amaral e com encenação de Fernanda Lapa, no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (foto de Márcia Leça)

Com a Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos, no âmbito do Festival ao Largo 2016, no Teatro Nacional de São Carlos (foto de David Rodrigues)

Com os colegas do curso de Comunicação Social da UMinho, em 1996/97, em Braga

A participar com colegas da licenciatura num cortejo do Enterro da Gata, no centro de Braga

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Sara Braga Simões

Formada em Comunicação Social pela UMinho, a premiada soprano fez a estreia absoluta de sete óperas, teve dezenas de papéis principais e já atuou em vários países.


Que recordações tem da infância?
Tive uma infância muitíssimo feliz na Quinta da Capela, em Braga. Muita brincadeira, bonecas, bicicleta, correria, futebol sem bola... [sorriso] Em casa, eu e a minha irmã Joana fazíamos muitos concursos de canções e também cantava muito com a minha mãe. Em casa do meu pai [João Pedro] também havia muita música: ele tocava guitarra, desde Beatles, música brasileira… Estudei nas escolas primárias de São Lázaro e São Vítor, depois fui para o Conservatório Calouste Gulbenkian e fiz o secundário na Alberto Sampaio, mas continuando como supletiva no Conservatório. Havia a ideia de que a música era uma profissão difícil para subsistir, por isso encarava-a como um hobby.
 
Porque decidiu entrar em Comunicação Social na UMinho?
Foi a minha primeira opção. Sempre gostei de Jornalismo, de escrever e de contar histórias, era algo que sentia dentro de mim. Durante o curso acabei por enveredar pela Publicidade, influenciada pela febre dos festivais com anúncios de vários países, que duravam horas. Gostei desse lado criativo, imaginar uma ideia simples e eficaz.
 
Lembra-se dos primeiros dias na universidade?
Tive uma integração excelente. Entrei no 3º ano de existência do curso, sendo a primeira vez que faziam as chamadas praxes. Os alunos mais velhos estavam muito empenhados para que tudo corresse bem. Organizaram um peddy paper para conhecermos os espaços da Universidade, como a biblioteca e a cantina. Houve uma aula pirata de Semiótica, a disciplina mais temida, com o Isaac Pereira [aluno do 3º ano] a anunciar o monte de livros e trabalhos obrigatórios até à aula seguinte. Por sorte, estava com a Elisabete Barbosa, que já trabalhava na RUM e que o conhecia; assim, pudemos saborear melhor essa aula. [sorriso]
 
Que estórias a marcaram no curso?
O professor de Semiótica, Moisés Martins, é um “personagem”, marca para a vida. É genial e de tal maneira hipnótico que, mesmo quando os alunos não o estão a entender, não conseguem desprender a atenção e ficam a ouvi-lo encantados. Lembro-me das duas horas de aula, sem intervalo, e ele dizer no final: “Já me perdi…”. [sorrisos] Fui também aluna do atual ministro da Economia, que tratávamos por “professor Herédia”. Fiz muitos amigos! Gostei imenso dos meus tempos na UMinho.
 
Participou em projetos culturais na UMinho?
Não, apesar de haver o Coro Académico, várias tunas… Participava nas atividades do Grupo de Alunos de Comunicação Social [o atual GACCUM].
 
Onde fez o estágio do curso?
Fiz na McCann Erickson, no verão de 1998, no Porto. Enchi-me de coragem e fui ter com o diretor criativo: “Não quero servir cafés, quero aprender e fazer”. Ele achou piada e eu fui experimentando, era rápida a trabalhar, começou a confiar em mim e gostou. É curioso que lidamos por vezes com produtos que não dominamos. Fiz um anúncio para a Continental e não percebia de pneus, mas depois correu tudo bem. Analisei a marca, o produto, o perfil do consumidor. Fiz também para o Queijo LimianoPorto BarrosShopping Cidade do Porto
 
Tinha jeito?
[sorriso] Acho que sim, até porque a agência me contratou depois do estágio, em part-time - porque estava também a fazer o curso de Canto na ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo], também no Porto. Na altura podia-se fazer duas licenciaturas em simultâneo, sendo uma delas de Artes. Foi quando me pediram na agência para ficar a tempo inteiro que percebi que teria mesmo que optar – e fui para o Canto.


Um concerto "transcendente" que mudou a vida

Como surgiu essa vontade de cantar?
Foi algo natural. Sempre cantei muito, mas até à fase adulta nunca equacionei a possibilidade de ser cantora profissional. No Conservatório comecei por estudar violoncelo, o meu instrumento favorito; ainda toco de vez em quando, mas já perdi completamente a afinação. Só mais tarde iniciei aulas de Canto. Não tinha muito contacto com música clássica fora do Conservatório. Nessa época, em Braga havia pouquíssimos concertos e era difícil encontrar gravações deste género. Havia, com muita sorte, algumas na loja Vadeca, junto ao café A Brasileira, ou então ia-se à Roma Megastore, no Porto. Não havia YouTube nem internet como hoje para se ouvir várias interpretações de uma obra. No início dos anos 90 surgiu a Orquestra de Câmara do Distrito de Braga e, associada a ela, um Coro que incluía muitos alunos da Gulbenkian. Isso abriu-me horizontes. O nosso primeiro concerto, o Requiem de Mozart, na Sé de Braga, marcou-me. Seguiu-se Magnificat de Bach, Requiem de Miguel Carneiro… e nesses concertos comecei a ouvir cantores profissionais, como José Oliveira Lopes e Isabel Malaguerra.
 
Isso mudou algo em si?
Percebi que havia ali outra forma de vida que me interessava. Quando estudava Comunicação Social na UMinho, o meu amigo Miguel Amoreira Martins desafiou-me a concorrermos à ESMAE. O prazo de candidaturas ainda estava aberto… e pronto, foi assim, no capricho do momento! [sorriso] As coisas foram-se desenvolvendo muito rapidamente. No meu 2º ano na ESMAE fui convidada para fazer um concerto como solista com a Orquestra Nacional do Porto, agora Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Para mim, foi transcendente e percebi que era o que queria realmente fazer.
 
Porque decidiu prosseguir estudos?
Por uma questão de desenvolvimento pessoal. Tive a sorte de ser escolhida pelo Luís Madureira para o Estúdio de Ópera da Casa da Música, onde estive em formação durante quatro anos e tive muitas oportunidades de apresentação. Depois, fiz o mestrado em Ensino da Música. Neste momento, estou inscrita no doutoramento em Performance Musical, também na Universidade de Aveiro. Estou a fazer uma investigação artística sobre as obras dramáticas de António Leal Moreira. Ouvia o nome dele repetidamente nas aulas de História da Música, citado como um “dos mais importantes compositores do século XVIII”, mas no entanto ninguém conhecia as suas obras. Isso fazia-me confusão! Anos mais tarde, num recital no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, o David Cranmer, um dos mais importantes investigadores sobre a música do século XVIII em Portugal, comentou que apesar de estudar aquela música há 20 anos, seria a primeira vez que iria ouvir algumas das obras. Aquilo bateu-me muito fundo. Decidi estudar as obras dramáticas de Leal Moreira, interpretá-las, falar das suas personagens, trazê-las à luz do dia…
 
Gosta da força da ópera?
Muito. Mistura duas coisas que adoro: música e teatro. No teatro há mais liberdade em termos de tempo. Podemos fazer uma pausa para criar intensidade. Na ópera, isso já foi feito pelo compositor. Mas pegar na música e usá-la para expressar o sentimento dramático do personagem gera coisas tão diversas... Por isso, quando vemos uma ópera é sempre diferente, desde a leitura do próprio cantor, à do encenador, cenógrafo, figurinista. O próprio guarda-roupa cria em nós, intérpretes, outra forma de estar; torna as coisas mais físicas, as personagens entranham-se e tornam-se mais reais. Há que procurar um fraseado, um gesto, um movimento compatível com o personagem… é muito importante a autenticidade.
 


Momentos marcantes

Já fez três dezenas de personagens principais, sem contar as secundárias, inclusive em Espanha, França, Inglaterra, Eslovénia, Andorra e Moçambique. Que espetáculo a marcou?
Muitos. É difícil escolher! O Sonho, de Pedro Amaral, que fiz com a London Sinfonietta, foi muito intenso, orgânico e vivido, dos ensaios à produção final. O Banksters, de Nuno Côrte-Real, no São Carlos, foi também inesquecível, pela estreia mundial e pelo meu raro papel de “má da fita” [sorriso]. Como tenho uma voz mais cristalina, em geral faço as princesas ou virgens, ali foi diferente. O Evil Machines, de Luís Tinoco e Terry Jones (Monty Python), com quem adorei trabalhar e fiz até de máquina de secar roupa, com um figurino espetacular! [risos] O The Turn of the Screw, de Britten, pela intensidade do papel. Também me marcou o concerto no São Carlos com Vesselina Kasarova, uma das grandes [divas] da música clássica. Fiquei orgulhosa, mas ansiosa, até porque cantei depois dela! Estava do lado de fora do palco, à espera da minha vez de entrar... ela cantou tão bem que as lágrimas me caíram pela cara abaixo... Entrei para o palco ainda meio emocionada. Havia uma introdução orquestral longa e deu-me uma “branca”, não sabia quando começar. Lembrei-me então das palavras do professor Rui Taveira: “Quando tiveres uma 'branca', espera com calma porque no momento a música vem”. Cheguei a pensar ir espreitar a partitura do maestro! Mas a verdade é que a música “veio” mesmo. E, quando saí do palco, a Kasarova veio ao meu encontro abraçar-me e felicitar-me, provando que os “grandes” são os mais simples. Ao observar os mais velhos, os mais experientes, aprende-se muito! Aprendi muito com cantores como a Elisabete Matos, o Carlos Guilherme, o Jorge Vaz de Carvalho e a Elvira Ferreira. Só de os ver a gente aprende…
 


"Tenho muita capacidade de trabalho"

Destaca algum encenador com quem trabalhou?
Luís Miguel Cintra e Ricardo Pais, por trabalharem as personagens a fundo, por chegarem onde querem ao nível da emoção. Para mim, a emoção é tudo! Por exemplo, em The Turn of the Screw, de Britten, o Ricardo Pais passou muito tempo comigo a aprofundar a personagem; a história era muito angustiante. Anos mais tarde, o meu marido [pianista Rui Martins] estava a tocar em casa uma ária dessa ópera. Quando ouvi a música, não a reconheci logo mas comecei a sentir-me mal, fiquei muito angustiada e até tive que parar de tomar o pequeno-almoço. Quando a reconheci, tudo fez sentido. É engraçado como o corpo, através da música, foi buscar as sensações da personagem, mesmo depois de tanto tempo, o que prova que os sentimentos ficaram entranhados.
 
No seu percurso junta compositores atuais e clássicos, portugueses e estrangeiros.
Felizmente, em Portugal nunca me obrigaram a optar no que toca ao reportório. No início fazia muita música do século XX e XXI… eu acho que as pessoas pensavam que eu tinha ouvido absoluto, o que não é verdade. Tenho é muita capacidade de trabalho. [sorriso] Mas gosto de fazer um bocadinho de tudo e adoro fazer música portuguesa… há compositores excelentes! E o português, sendo a minha língua materna, permite-me "um sentir" mais intenso, um contacto muito direto com a palavra e com os sentimentos do personagem, seja ópera ou não. Para mim, a junção do sentimento com a música é essencial e é o que marca a diferença entre intérpretes.
 
Como é o seu dia normal?
Muito diversificado. Atualmente passo muito tempo a investigar para o doutoramento, a cantar e experimentar as obras do Leal Moreira; mas também posso estar a ensaiar com uma orquestra, a ver um concerto, a reunir com outros profissionais…
 
Que opinião tem sobre a recetividade da comunidade académica e da sociedade à ópera?
Há ainda um grande caminho a fazer. Existe pouca produção em Portugal: só temos um teatro de ópera [São Carlos], embora sejam feitas algumas produções fora do teatro e muito poucas fora de Lisboa. É um espetáculo caro de montar e talvez essa seja a maior dificuldade, pois junta profissionais de muitas áreas. Era muito importante para o país que, por exemplo, os espetáculos de ópera pudessem fazer uma digressão nacional, como acontece com algumas peças de teatro. Temos uma boa rede nacional de teatros. Como não há muita tradição, os teatros vão optando por outras formas de arte. É uma pena porque o público, quando tem oportunidade de ver ópera, adora e as pessoas perguntam logo porque é que não há mais espetáculos do género.

Dê-nos um exemplo.
A companhia all’Opera trouxe a Braga a ópera “Rita", de Donizetti, em 2014. Foi no Museu Nogueira da Silva; no início, as pessoas riam com certa timidez e depois acabaram às gargalhadas. A ópera não é elitista como muitos pensam. Pode ser coloquial, popular, porque leva a palco coisas do dia-a-dia. Hoje há sistema de legendagem, para que o público possa seguir facilmente o enredo, palavra por palavra. No que diz respeito à minha cidade, gostava muito de me dedicar no futuro a um projeto que envolva a ópera. Braga tem recantos incríveis que são cenários naturais soberbos, como o Largo do Paço, já para não falar do Theatro Circo, um dos mais belos teatros que conheço! No que respeita a música clássica, é essencial que os alunos do Conservatório de Braga e da UMinho continuem a ter oportunidades para tocar na sua cidade, como tem acontecido até agora. Mas também tem que haver espaço para os músicos profissionais. Há músicos bracarenses excelentes a tocar nas melhores orquestras europeias que nunca tocaram cá.
 
Trabalhar a partir de Braga é mais difícil?
Certamente que sim. Seria mais fácil estar numa metrópole. Tive muita pressão de maestros, encenadores e, principalmente de agentes para ir viver para Londres, para Viena, para a Alemanha… Claro que tenho consciência que a opção de continuar a viver em Braga me fez perder oportunidades, mas nós somos um todo e a nossa parte afetiva e emocional também é importante. Sinto-me bem em Braga e com estas pessoas. Sou bairrista. Quando passo temporadas fora, sou feliz profissionalmente, mas tenho saudades de casa, da cidade, dos meus. Trabalho essencialmente em Lisboa e nunca senti ser preterida por viver em Braga. Sabem que chego lá num instante. Mas, obviamente, se vivesse lá fora as oportunidades seriam outras.
 
Das suas próximas atuações, o que destaca?
Vou fazer a 4ª e a 8ª Sinfonias de Mahler em julho, no Porto. Apareçam!



Curiosidades

Um disco. Gosto de música ao vivo, por isso escolho “The concert in Central Park”, de Art & Garfunkel, que ouvi muitas vezes pela mão da minha mãe.
Um livro. Releio muitas vezes “Sinais de fogo”, de Jorge de Sena, que acho muito cómico. E “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez; adoro a confusão das gerações.
Um filme. “E tudo o vento levou” (1943). Adorava vê-lo no cinema! E o respetivo livro, em dois volumes, da Margaret Mitchell é ainda melhor. Dos filmes atuais, gosto de “Os outros” (2001), de Alejandro Amenábar, pelo final surpreendente.
Um clube. SC Braga.
Um desporto. Para ver: atletismo. Para praticar: caminhada e corrida.
Um passatempo. Brincar com a minha filha [Margarida] e jantar com a família e os amigos.
Uma viagem. A que fiz com o meu marido a Míconos, na Grécia.
Um vício. Comer! [risos]
Um prato. As pataniscas de bacalhau do “Félix”, os bolinhos de bacalhau da “Casa Pimenta”, a salada de bacalhau do “Ferrugem”. Ah, e faço um bolo de laranja excelente! [sorriso]
Uma personalidade. O Papa Francisco. Está a ajudar-nos a sermos mais tolerantes uns com os outros.
Um momento. O nascimento da minha filha.
Uma frase. “Põe quanto és no mínimo que fazes", de Ricardo Reis. Temos que nos entregar sempre a 100%.
Um sonho. Sinto-me muito realizada, sinto que não posso pedir mais nada. Tenho a sorte de fazer o que gosto e de trabalhar com pessoas extraordinárias e inspiradoras.
A UMinho. É minha! Sinto uma ligação muito forte e umbilical e espero um dia fazer mais coisas com a minha universidade.