A inclusão está a perder para a performance

31-05-2017 | Pedro Costa

Leonor Torres é investigadora do Centro de Investigação em Educação (CIEd), professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Educação e vice-presidente do Instituto da Educação da UMinho. Na foto, entrevista a uma TV do Brasil

Os rituais de distinção dos melhores alunos envolvem 94% das escolas secundárias públicas do país e o fenómeno prolifera nos vários níveis de ensino. Na foto, cerimónia no agrupamento de escolas de Pombal, em 2015

A investigação já foi alvo do livro "Entre mais e melhor escola - Inclusao e excelência no sistema educativo português", publicado pela Mundos Sociais em 2014 e coordenado por Leonor Torres e José Augusto Palhares, professores da UMinho

Sessão de abertura do Seminário Internacional "Entre mais e melhor escola: a excelência académica na escola pública portuguesa (Excel.pt)", que o Instituto de Educação da UMinho recebeu no âmbito do projeto de investigação homónimo

Imagem do projeto "Excel.pt", financiado pela FCT, que envolveu investigadores das universidades do Minho (coordenação) e de Aveiro e consultores das universidades do Porto, Católica de Lovaina (Bélgica) e Federal de Minas Gerais (Brasil)

Leonor Torres é licenciada em Sociologia pela Universidade do Porto, mestre em Educação e doutorada em Organização e Admnistração Escolar pela UMinho, onde leciona desde 1995. Na foto, junto à minibiblioteca do seu gabinete

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Leonor Torres, do Instituto de Educação, estuda os impactos do sucesso nas comunidades escolares.




As orientações de política educativa de âmbito global têm colocado no centro das suas prioridades a promoção da excelência, da qualidade e da eficácia dos sistemas de ensino e formação. Leonor Torres, do Centro de Investigação em Educação (CIEd) e professora do Departamento de Ciências Sociais da Educação do Instituto de Educação da UMinho, propõe debater de que forma a promoção dos melhores alunos dos ensinos básico e secundário impactam a comunidade escolar e a sociedade local. É uma reflexão que avalia a influência dessa agenda na realidade educativa portuguesa a partir de um olhar sociológico sobre a política em estado prático, isto é, sobre os mecanismos de apropriação ocorridos no espaço organizacional e sua articulação com as especificidades culturais da escola. A cultura de escola, a sua missão educativa, a promoção da excelência e do mérito são algumas das problemáticas analisadas na investigação que esta docente e investigadora coordenou. Os principais resultados, aflorados nesta entrevista, encontram-se em fase de publicação em livro, que divulgará as várias contribuições da equipa de investigadores (portugueses e estrangeiros) participantes no projeto.

 
Quais as principais conclusões que foi possível retirar do estudo que levou a cabo?
O projeto que coordenei sobre A Excelência Académica na Escola Pública Portuguesa, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia [FCT] a partir de 2012, procurou analisar o fenómeno a partir de três escalas – macro, meso e micro. Do ponto de vista macro, identificamos a prevalência de orientações políticas de pendor neoliberal com forte impacto nos modos de governação das escolas, designadamente ao nível da redefinição da sua missão estratégica e da implementação crescente de práticas de distinção dos melhores alunos. Esta tendência atravessa vários países situados em diferentes continentes, apresentando uma enorme variedade de manifestações, embora a tónica aponte para a prevalência de lógicas meritocráticas de gestão escolar. No caso de Portugal, 94% das escolas públicas com ensino secundário aderiu aos rituais de distinção dos melhores alunos – um ritual que exige a preparação antecipada de uma cerimónia pública de entrega de diplomas e/ou prémios no final do ano letivo, na qual participam vários atores escolares e representantes da comunidade local. O estudo destes rituais concluiu igualmente que 50% destas escolas premeiam exclusivamente os alunos pelos resultados escolares - com classificações internas acima dos 17,5 valores -, enquanto igual percentagem valoriza os resultados e os comportamentos exemplares.

E no plano meso?
Os estudos de caso realizados em quatro escolas secundárias nacionais mostram que a construção da excelência é um fenómeno multidimensional, resultando de vários fatores externos e internos à escola. Nos aspetos mais relevantes na promoção da excelência destacam-se a condição sociocultural dos alunos, a cultura de escola e os processos de liderança. Embora a maioria dos alunos com desempenhos elevados seja proveniente de famílias profissionalmente bem posicionadas - 46,7% são profissionais técnicos de enquadramento e 26,8% são empresários, dirigentes e profissionais liberais -, identificou-se um grupo de alunos que configuram casos de dupla contratendência, ascendente e descendente. Por outro lado, a cultura de escola surge como uma dimensão relevante, sendo enunciada pelos alunos e professores de diversas formas – o foco do projeto educativo, o clima de aprendizagem, o modo como a escola se organiza para a promoção do sucesso, o estilo de liderança do diretor e demais gestores intermédios. Por fim, no plano micro, destaco o perfil-tipo do aluno excelente: pertencente à classe média, dedica muitas horas ao estudo individual (40% dos casos, com explicações), frequenta atividades extraescolares e tem reduzida participação na vida da escola para além das atividades letivas.


A organização escolar influencia o processo de desenvolvimento dos jovens

De que forma se comportam as diferentes regiões?
Tenho vindo a defender a ideia de que as organizações escolares encontram-se num espaço-tempo de dupla compressão: por um lado, condicionadas por políticas educativas de inspiração gerencialista e, por outro, pressionadas pelas famílias e comunidades locais para a promoção do sucesso educativo. Este movimento simultâneo e convergente tem vindo, progressivamente, a reconfigurar as prioridades da escola pública, designadamente ao nível do secundário, empurrando-a para a valorização cada vez mais assumida dos valores da eficácia, da excelência e da performatividade, deixando na penumbra a sua missão inclusiva e democrática. Esta situação não é homogénea, nem pode ser perspetivada de forma linear, pois apresenta variantes e graus diferenciados de manifestação consoante as especificidades culturais das escolas e dos contextos sociais e políticos em que estão inseridas. Se tomarmos como exemplo um dos indicadores estudados pela equipa que coordenei – a prática de rituais de premiação dos melhores alunos –, a conclusão óbvia aponta para a ampla adesão das escolas à consagração dos valores da excelência; contudo, um mapeamento mais aprofundado mostra a existência de algumas diferenciações regionais: um maior peso da distinção focada nos resultados na região da Madeira (50%), no Norte interior (28,2%), no Centro litoral (19%) e no Norte litoral (18,1%); a distinção focada nos valores apenas presente na região do Alto Alentejo e Alentejo Central (15%); a região de Baixo Alentejo e Alentejo litoral com a percentagem mais elevada de escolas e agrupamentos sem mecanismos de distinção (13%).
 
São dados que permitem conclusões...
Embora seja precoce aventar explicações conclusivas, é possível arriscarmos algumas pistas: com a exceção da região autónoma da Madeira, cujo enquadramento legal e cultural é diferente do continente, a ênfase colocada nos resultados na região Nordeste poderá estar relacionada com o posicionamento menos positivo destas escolas no ranking nacional e, igualmente, com a necessidade de resistir ao movimento em curso de encerramento de escolas nesta zona do país. Por outro lado, a valorização da distinção focada nos valores na região do Alentejo poderá significar a centralidade atribuída aos valores inclusivos, mais próximos das necessidades educativas da região, cujas taxas de abandono e insucesso são significativas.
 
Como pode a cultura de escola influenciar as dinâmicas de rendimento escolar?
Essa questão remete para uma outra que tem alimentado a discussão na comunidade científica: pode a organização escolar fazer a diferença? Os vários estudos têm demonstrado que cada escola institui, de forma durável e única, uma matriz axiológica que funciona como modelo orientador da ação. Por outras palavras, as escolas, designadamente as suas lideranças, definem programas políticos, elegem as prioridades estratégicas e os valores que as sustentam. As opções políticas, ou a política em estado prático, configuram processos de socialização, impulsionando comportamentos que, por força da sua repetição, podem transformar-se em padrões culturais. Sendo a instituição escolar uma das mais poderosas agências de socialização dos jovens, a sua cultura condiciona certamente o desenvolvimento de aprendizagens e de disposições individuais e coletivas, no sentido proposto por Bérnard Lahire. Prova disto mesmo: os quatro estudos de caso revelaram diferenças significativas no modo como os alunos percecionaram a organização da sua escola e a sua importância no desenvolvimento do ideário da excelência. Mais ainda, a relação entre a qualidade da escola e o estilo de liderança adotado pelo seu diretor foi o enunciado que mais acentuou as diferenças interescolas.
 
A forma como se promove o rendimento e o talento é centralista ou tem diferenças de escola para escola?
Os múltiplos mecanismos de controlo e de prestação de contas – introdução dos exames nacionais, publicação de rankings, programa de avaliação externa, mecanismos de avaliação de desempenho, gestão a partir de plataformas informáticas – têm exercido uma pressão sem precedentes sobre as organizações, impelindo-as à redefinição do seu mandato e das suas estratégias de atuação. Contudo, esta poderosa agenda resultadista é diferentemente incorporada pelas direções das escolas, em função do seu ideário, do compromisso estabelecido com a comunidade e do jogo de forças e relações de poder que se confrontam na definição do programa político e pedagógico da escola. A análise dos programas políticos das quatro escolas estudadas pôs em evidência diferentes perfis de liderança, uns mais focados na produção de resultados, outros mais atentos às dimensões da inclusão e outros, ainda, mais comprometidos com a conciliação de ambas as prioridades.

E isso influi na socialização dos alunos.
Estes diferentes estilos de liderança, quando traduzidos em orientações e práticas de gestão concretas, adquirem uma força significativa no desenvolvimento do processo de socialização dos estudantes. Embora os jovens estejam submetidos a uma pluralidade de tempos e espaços de socialização - a família, os amigos, os contextos culturais, desportivos e associativos, entre outros -, a organização escolar ocupa um lugar central no seu processo de desenvolvimento, não só pelo tempo de permanência na instituição, como pela forma intensiva, constante e regular que carateriza o processo de escolarização. Neste sentido, a natureza dos programas político-pedagógicos e a forma como as lideranças os operacionalizam em cada escola configuram pilares fundamentais no processo de socialização dos estudantes.

 

O mérito coletivo como caminho de futuro
 
A que nível de discussão se coloca a dicotomia inclusão social versus excelência?
A escola pública vive imersa na tensão entre os propósitos democráticos e as demandas de uma sociedade assente nos ideais do mérito e da seletividade. Vários grupos de pesquisa, sobretudo europeus e americanos, têm vindo a colocar no centro da agenda o estudo do dilema mais-melhor escola ou, por outras palavras, a relação de forças entre os mandatos democrático e meritocrático da escola pública. Na mesma linha, tenho vindo a aprofundar um modelo conceptual que propõe a ideia de um continuum balizado por cenários ideais-tipo, por oposição a uma classificação de natureza dicotómica de tipo mais-melhor. Tal significa que a realidade observada pode situar-se ora mais próxima dos extremos do continuum, configurando perfis de escolas mais democráticas ou mais elitistas, ora situar-se em diferentes lugares dentro desse mesmo espaço consoante as combinações possíveis. De acordo com esta proposta, o "cenário 1" dá conta de uma visão meritocrática de escola, apologista da seleção dos alunos e de uma política pedagógica centrada na construção da excelência académica; o "cenário 2" inscreve-se numa visão democrática de escola, que privilegia os princípios da igualdade de acesso e sucesso, da inclusão e da participação democrática. O espaço que medeia os dois polos representa as diferentes possibilidades de conciliação entre prioridades educativas observáveis nas organizações escolares.
 
A cultura resultadista tem caminho para evoluir para a inclusão?
Na minha visão (não dicotómica), é sempre possível encontrar alternativas que melhor se ajustem e aprofundem a ideia de uma educação mais humanista e democrática. Entre os inúmeros caminhos a trilhar, destacaria a necessidade de dessacralizar a conceção unidimensional do mérito, associado às esferas cognitivas e reprodutivas do saber, contrapondo com a ideia de pluralidade de formas de excelência, ampliadas às dimensões sociais, artísticas e culturais. O desafio poderá passar por novas formas de olhar a competição escolar, mais focadas em grupos, comunidades ou mesmo escolas e menos no culto da performance individual. O aprofundamento das valências inclusivas e democráticas não pode dispensar o reconhecimento e incorporação da diversidade de méritos e talentos individuais - eles próprios constitutivos da sociedade -, não tanto como um fim em si mesmo, mas como um processo catalisador do desenvolvimento integral do sujeito, condição essencial à realização da missão educativa da escola pública, enquanto projeto mais amplo de justiça e coesão social. Uma “escola excelente” não pode resultar de um único princípio de excelência.