"Tenho a profissão com que sempre sonhei"

18-02-2023 | Pedro Costa | Fotos: Nuno Gonçalves

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António Salgado, do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), recebe hoje o Prémio de Mérito Científico da UMinho. É uma referência na área de medicina regenerativa do sistema nervoso.


Nasceu em Braga, em 1978. Cedo se apaixonou pelo desporto e espreitou sempre oportunidades para explorar o pequeno cientista que havia nele. Da mesma forma que saltou do basquetebol do ensino secundário para o triatlo que hoje pratica, também de biólogo de formação explorou neurociências e engenharia dos biomateriais. Fazendo parte substancial da vida na sua cidade de sempre, a exploração científica já o levou a trabalhar na Ásia e na América do Norte. Os duros desafios do atleta levam-no a passar 15 a 20 horas por semana a treinar, onde diz precisar do mesmo foco, disciplina e objetivos que tem no laboratório. 

António Salgado lidera uma equipa de 25 cientistas no ICVS da Escola de Medicina, que têm como principal área de investigação o desenvolvimento de estratégias terapêuticas em medicina regenerativa do sistema nervoso central, através da utilização do secretoma de células estaminais. Vencer a falta de regeneração natural do sistema nervoso central é um desafio gigantesco, que Salgado encara com a mesma determinação com que enfrenta 226 km de uma prova de Ironman Thriatlon. Por isso, confessa que, da mesma forma que espera ver resultados da sua equipa científica a impactar vidas humanas, também espera qualificar-se para estar no Mundial de Triatlo de 2024, 
no Havai, está no seu horizonte.

É licenciado em Biologia Aplicada, doutorado em Ciência e Tecnologia de Materiais – Engenharia de Tecidos e Materiais Híbridos e agregado em Ciências da Saúde. É investigador coordenador e vice-presidente para a Investigação na Escola de Medicina, liderando a equipa temática ReNEU no ICVS. Tem cerca de 150 artigos científicos, 20 capítulos de livros e duas patentes, tendo editado também um livro. Foi incluído no ranking de Stanford/Elsevier, que reúne o top 2% de cientistas a nível mundial. Preside ainda a Sociedade Portuguesa de Células Estaminais e Terapias Celulares e soma várias distinções, como o Prémio Gulbenkian Investigação na Fronteira das Ciências da Vida e o Prémio de Investigação Melo e Castro, atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.


Quem é António Salgado?
Aos meus 45 anos, sinto-me um bracarense de gema. Cresci perto do centro da cidade, ali junto às Ruínas Romanas da Cividade. Tive uma infância e juventude normal, feliz, com amigos, com os meus passatempos.
 
Como se posicionou enquanto jovem?
O desporto foi sempre uma parte muito presente na minha vida, mas, curiosamente, nunca me vi a enveredar por essa área profissionalmente. Por necessidade, por causa de um diagnóstico de asma alérgica, comecei pela natação, descobri depois o basquetebol, com aquele fascínio da NBA, fui capitão da equipa de basquetebol no secundário, consumi tudo o que era desporto e nunca mais deixei de o praticar. Contudo, enquanto miúdo, sempre tive curiosidade por tudo o que era investigação - sem internet, era mais pela televisão, através dos documentários. Além disso, os jogos de computador e o cinema eram outras coisas de que gostava muito.
 
Um percurso muito feito em Braga...
Sim, estive nas escolas da zona de São Vítor e passei pela Escola Secundária Carlos Amarante. Depois, já tendo uma ideia de enveredar pela investigação - estava-me na cabeça desde o 10º ano -, quando tive que ingressar na universidade percebi que, na UMinho, estava a iniciar um curso de Biologia Aplicada que me pareceu interessante. Era um misto de Biologia Clássica e de Bioquímica. Identifiquei-me e fiquei por cá...

É um cidadão muito enraizado?
Não necessariamente. As oportunidades foram surgindo. Eu digo que tenho muita sorte, porque tenho a profissão que sempre quis, na minha cidade, passando alguns períodos fora. Estive em Singapura, no Canadá e, na realidade, o meu plano não passava por regressar a Portugal, pelo menos no imediato. Voltei por motivos pessoais e comecei por estabilizar aqui. Apesar de tudo, não me considero uma pessoa muito enraizada, porque o que me orientou sempre foi os meus objetivos.
 
É mais ligado aos ecrãs do que ao papel?
Hoje tudo passa pelos ecrãs. Nem me lembro da última vez que imprimi um artigo em papel. Do ponto de vista de hobbies, também fui sempre mais de ecrãs do que de papel. O gosto pelo cinema, que até há uns 15 anos estava muito presente na minha vida, depois também as séries e os documentários...
 
Como se informa mais?
Um pouco de tudo. Tipicamente, quando me levanto de manhã leio o Público – a minha principal fonte de informação – e vejo os canais de TV. A internet e por vezes as redes sociais são outras fontes.
 
Como vê o mundo que o rodeia?
Estamos a viver uma fase difícil. Complicada do ponto de vista social e político. Sou otimista e realista por natureza. Gosto de ver o “copo meio cheio”, mas reconheço que estamos a viver um momento complicado.
 
Como vive as suas relações interpessoais?
A família está sempre em primeiro lugar. Tento conjugar a minha vida, para ter espaço para a família, para os amigos, para o lazer. Gosto muito de viajar e de conhecer outras culturas – esse é um privilégio da minha profissão. Sou um apaixonado pela nossa gastronomia minhota – arroz de sarrabulho, um pica-no-chão, um bom bacalhau –, mas também gosto de comida internacional, pois adoro sushi, comida asiática, sul-americana... A brincar, costumo dizer que faço muito desporto para poder comer à vontade [risos]!
 
Mantém hoje uma prática desportiva muito intensa...
Sim. Eu sou um atleta amador, mas costumo dizer que tenho dois trabalhos. Sou investigador profissionalmente e tenho um segundo “trabalho”: o triatlo. Dedico-me à vertente mais longa, que é a distância de Ironman, totaliza 226 km, divididos por 3,8 km de natação, que em Braga equivale à distância entre a Bosch e o Hotel Meliá, seguem-se 180 km em bicicleta, que equivale à distância entre Braga e Coimbra, e no fim há uma maratona de 42 km, que equivale à distância entre Póvoa de Varzim e Viana do Castelo. É uma prova que em condições normais tento fazer em cerca de nove horas e meia, dez horas.
 
Isso exige muito de si...
Para preparar uma prova destas é necessário encontrar tempo para treinar. Por isso, os meus dias começam entre as 5h00 e as 6h00. Normalmente, antes de vir trabalhar faço sempre uma a duas horas de treino e muitas vezes ao final da tarde tento ter outra sessão de treino. Depois, nos fins-de-semana, é quando coloco mais horas de treino. Não é raro na altura em que esteja a preparar um Ironman chegar às 14h00 de sábado e já ter umas sete ou oito horas de treino. É preciso gostar muito, ter objetivos e disciplina, da mesma forma que os tenho na minha profissão.
 
Mas há momentos muito agradáveis neste contexto tão competitivo...
Sim! Não é só competição dura, pois estas provas incluem momentos de camaradagem e a vertente a que eu gosto de chamar “triturismo”, pois permite-me a mim e à minha esposa visitar lugares que não conhecemos e conhecer outras culturas. Já estive na Estónia, na Alemanha, em Espanha, para além de provas um pouco por todo o nosso país. Este ano era para competir no Texas (EUA), em abril, mas tive que mudar os planos. O meu objetivo é qualificar-me para o campeonato mundial da especialidade, que em 2024 decorre no Havai (EUA).




"Queria ser cientista, mas não sabia bem o que significava"
 
Biologia Aplicada foi a primeira opção?
Tive a possibilidade de conhecer antes a professora Cecília Leão, responsável do Departamento de Biologia da UMinho, e fiz algumas perguntas sobre o curso. Gostei do currículo e do que oferecia. Não era a biologia clássica, que eu não queria, e também não tinha uma componente química excessiva. Parecia ter um equilíbrio muito interessante, uma componente prática e experimental que me agradava.
 
Era um miúdo com 18 anos e já pensava ser cientista?
Sim, embora não soubesse o que isso significava. Sempre tive curiosidade sobre a investigação científica, muito através dos documentários sobre ciência que eu via. Quando entrei na UMinho, estava fascinado pela engenharia genética e pela biologia molecular. Percebi mais tarde que não gostava tanto disso e encontrei outros interesses que marcam o meu percurso profissional.
 
E passam pelas neurociências…
Sim, isso é um caminho curioso. Numa disciplina do 3º ano do curso, essencialmente experimental, tive um professor neurocientista que nos colocou um conjunto de desafios ligados às neurociências e fiquei interessado. Na altura tinha que encontrar um sítio para o estágio da licenciatura e falei com ele, indo para o Centro de Neurociências de Coimbra. Gostei muito, mas não me via a fazer aquele tipo de investigação mais fundamental. É extremamente importante, mas eu queria investigação aplicada, mais translacional. Antes do fim do estágio, tive uma cadeira de biomateriais lecionada na UMinho pelo professor Rui Reis. Percebi o que era engenharia de tecidos humanos e achei uma coisa nova, muito aplicada. Coloquei as neurociências na prateleira durante algum tempo e fui trabalhar em medicina regenerativa de tecidos ósseos no meu doutoramento [em Ciências e Tecnologia de Materiais - ramo Engenharia de Tecidos e Materiais Híbridos]. O tema permitiu-me passar pela Universidade Nacional de Singapura e pela Universidade de Toronto.
 
No fim do doutoramento voltou às neurociências…
Já tinha decidido que queria ter o meu próprio grupo de investigação e a minha própria linha de investigação. Recuperei o gosto pelas neurociências e apliquei o que aprendi no doutoramento à regeneração do sistema nervoso central. Foi uma questão de gosto, que achei muito interessante, mas que era estratégica também, pois não havia muitos grupos a trabalhar isto em Portugal e na Europa. Achei importante para um jovem investigador que estava a começar, como era o meu caso em 2006.
 
A passagem por ambientes científicos competitivos como o asiático ou norte americano dá-lhe importantes mais valias?
Eu sempre quis ir para o estrangeiro. Desde a licenciatura que pensei nesse tipo de experiência, queria ver como se fazia ciência no exterior. Nem pensei muito nas diferenças culturais que Singapura tinha. Por exemplo, o laboratório para onde eu ia era muito competitivo e não pensei em mais nada. Vi a oportunidade de crescer enquanto cientista e nem pensei na parte social. Em Toronto foi a mesma coisa. Eram contextos que me permitiam aplicar técnicas e formas de trabalhar diferentes das que tinha na UMinho e foi muito importante.
 
O que colheu destas duas formas diferentes de fazer ciência?
A primeira coisa que me ocorreu foi que a ciência que fazíamos em Portugal já era extremamente competitiva, de excelente qualidade, mas com um financiamento muito abaixo do que eu encontrei em Toronto e principalmente em Singapura, onde havia uma aposta enorme na área em que eu trabalhava. Destes locais retiro alguma simplificação, com formas mais objetivas e menos burocráticas de trabalhar.
 




Ultrapassar as limitações de reparação do sistema nervoso central

Como é que um biólogo acaba nas ciências da saúde a investigar o sistema nervoso central?
Hoje já não me considero um biólogo – sou apenas de formação –, pelo que diria que estou na fronteira entre a biologia e a engenharia. Sempre tive muita curiosidade sobre o sistema nervoso central, particularmente sobre a incapacidade que ele tem de se regenerar e reparar a ele próprio. Nós temos uma fratura, um osso partido e, até uma certa extensão, ele consegue regenerar. O fígado é um exemplo paradigmático do nosso corpo, com a sua grande capacidade de regeneração. O sistema nervoso central, devido à sua grande especialização, acaba por apresentar uma capacidade de se recuperar a ele próprio muito limitada. Por isso, problemas como a doença como Alzheimer, doença de Parkinson, eventos traumáticos como traumatismos crânio-encefálicos e lesões medulares, acabam por ter consequências severas na vida das pessoas, porque não temos essa capacidade de nos recuperar no que diz respeito ao sistema nervoso central. Como sempre tive essa curiosidade, quis trabalhar numa área que nos permita ter ferramentas para ultrapassar essas limitações do sistema nervoso central. Por isso, na equipa que coordeno no ICVS, pretendemos encontrar estratégias que permitam ultrapassar as limitações de reparação do sistema nervoso central.
 
Um desafio tremendo!
É [risos]!
 
O que é já foi conseguido?
Iniciamos há cerca de 15 anos uma linha de investigação muito centrada no secretoma de células estaminais. Explicando melhor... Comunicamos entre nós através de palavras, gestos e outras formas. Tal como nós, as células também têm necessidade de comunicar entre si. Comunicam através de sinais, que são proteínas, fatores de crescimento, vesículas secretadas de dentro das células, para fora. Descobrimos que estes sinais produzidos pelas células estaminais podem ser usados para regeneração. Estamos a tentar perceber de que forma estes sinais induzem regeneração e, acima de tudo, podemos usá-los para desenvolver estratégias que permitam ter um impacto positivo na regeneração do sistema nervoso central. E já conseguimos resultados positivos, tanto ao nível das doenças degenerativas, mas essencialmente nas lesões medulares traumáticas, que é onde temos mais financiamento. Usando esse secretoma, verificamos como conseguimos induzir ganhos de capacidade motora e de locomoção bastante interessantes em relação aos modelos de controlo. Já submetemos duas patentes e estamos numa fase em que pretendemos dar o salto dos modelos que se utilizam em estudos como este (roedores) para estudos mais avançados, ainda não em humanos, mas em animais de porte superior que nos permitam validar esta tecnologia. Mais tarde, se tudo correr bem, vamos pensar numa aplicação humana, mas estamos a falar de uma distância temporal grande.
 
Neste trabalho é fulcral a rede de cooperação internacional.
Sim, claro. Eu devo realçar que a Escola de Medicina e o ICVS têm condições excecionais para o desenvolvimento do nosso trabalho científico. Muitas vezes só precisamos de preocupar-nos em ter ideias para desenvolver o trabalho. É um fator muito importante, que potencia as qualidades de toda a gente e possibilita os bons resultados no que desenvolvemos. Trabalhamos quer numa forte colaboração entre os 25 elementos da equipa que coordeno, quer em colaboração nacional e internacional. E essa rede de contactos é importante, não só para aplicar técnicas que muitas vezes não dominamos, como para discutir ideias e novos caminhos a seguir, e ainda nos torna mais competitivos para captar mais financiamento internacional e europeu, envolvidos em redes científicas e consórcios.


O prazer de investigar
 
O que o motiva todos os dias?
Primeiro, a esperança de que o que estamos a desenvolver em laboratório vá ter um impacto na vida das pessoas daqui a alguns anos. Depois, o gosto pessoal que eu tenho pela investigação científica. Eu tenho o trabalho de sonho, o emprego que sempre quis, para o qual estudei e trabalhei e isso é uma motivação enorme. Faço uma coisa da qual não me consigo desligar completamente e, mesmo nos meus passatempos, tenho sempre o pensamento nisto - é certamente porque estou satisfeito e realizado com o meu trabalho. Outro fator de grande motivação é o prazer de coordenar a minha equipa. São 25 pessoas extremamente dedicadas, extremamente talentosas, que acima de tudo percebem a importância do trabalho em conjunto e que produzem os resultados que eu tenho o prazer de apresentar em palestras e congressos científicos.
 
Onde se vê daqui a dez anos?
Eu diria que vejo-me a fazer o que estou a fazer hoje, provavelmente onde estou hoje. A fazer investigação, no ICVS e na Escola de Medicina da UMinho, onde também tenho funções de gestão e de chefia que dão-me muito gosto. Quer na investigação como na gestão, são coisas que me vejo a fazer daqui a uma década.
 
Que significa para si o Prémio de Mérito Científico da sua Universidade?
Foi extremamente satisfatório quando soube. Apanhou-me completamente de surpresa! É sempre muito importante e uma honra ter o reconhecimento da instituição para a qual eu trabalho. Agradeço à UMinho, não só pela distinção, mas também por todo o apoio ao longo destes anos. É uma grande honra fazer agora parte de uma lista de premiados, onde encontramos dos melhores cientistas que a UMinho tem, inclusive dois dos meus antigos orientadores – Rui Reis e Nuno Sousa –, pelo que é uma enorme satisfação. Por outro lado, penso que é a primeira vez que o prémio é atribuído a alguém que está na carreira de investigador. O corpo de investigadores da UMinho tem vindo a crescer ao longo dos anos e considero que, se um investigador recebe este prémio, acaba por ser testemunha da qualidade do trabalho que os investigadores realizam dentro da universidade. Considero também que este prémio não é só meu, é do ICVS/Escola de Medicina e da minha equipa, que é extraordinária - e gostaria de deixar uma palavra especial ao meu colega Nuno Silva, pelo trabalho que desenvolvemos em conjunto há mais de 15 anos e sem o qual nada teria sido possível. Uma palavra final para mencionar a minha família. Os meus pais e a minha irmã sempre foram uma grande fonte de apoio. Os meus pais sempre me transmitiram valores de ética de trabalho fenomenais, que ainda hoje aplico. Claro, e a minha esposa, porque viver com um cientista não é fácil [risos] e em todos os contextos contei sempre com o seu apoio e se cheguei até aqui muito o devo a ela.



  Lista de premiados

  Os Prémios de Mérito Científico são entregues na sessão do Dia da UMinho a cientistas ímpares desta academia.

  2009 – Nuno Peres (Escola de Ciências)
  2010 – Rui L. Reis (Escola de Engenharia, hoje no Instituto 3Bs)
  2011 – Carlos Mendes de Sousa (Instituto de Letras e Ciências Humanas)
  2012 – Odd Rune Straume (Escola de Economia e Gestão)
  2013 – Nuno Sousa (Escola de Medicina)
  2014 – Armando Machado (Escola de Psicologia)
  2015 – José António Teixeira (Escola de Engenharia)
  2016 – Moisés de Lemos Martins (Instituto de Ciências Sociais)
  2017 – Paulo Lourenço (Escola de Engenharia)
  2018 – José González Méijome (Escola de Ciências)
  2019 – Leandro Almeida (Instituto de Educação)
  2020 – Patrícia Jerónimo (Escola de Direito)
  2021 – António Vicente (Escola de Engenharia)
  2022 – Helena Machado (Instituto de Ciências Sociais) e Fernando Alexandre (Escola de Economia e Gestão)
  2023 – António Salgado (Escola de Medicina)