Alteridade: "e se o outro não estivesse aí"?

23-03-2018

Maria José Casa-Nova

Esse “outro”, que me inquieta, me assusta, me fascina e me deixa perplexa, completa a minha incompletude.


Ainda não há muitos anos, escrevia que ao longo da minha carreira académica sempre me dediquei ao estudo do que poderia designar como objectos científicos marginais dentro das Ciências Sociais, nomeadamente os estudos de género (feminino) e de minorias étnico-culturais, numa tentativa de tornar central problemáticas marginais dentro das Ciências Sociais e que sempre me interpelaram como cientista social e como ser humano profundamente comprometido com o esbatimento das desigualdades nas diversas esferas do social.

Os objectos de investigação que construo e o conhecimento que produzo têm sido discutidos com os meus alunos e as minhas alunas ao longo dos anos, procurando desenvolver um pensamento reflectido e reflexivo, sensibilizando e consciencializando para um conjunto de problemáticas que atravessam os nossos quotidianos. Deixo aqui algumas dessas reflexões.
 
a) as sociedades estão construídas de forma estruturalmente hierarquizada, com grupos de seres humanos vivendo em situação de subalternidade estrutural e outros de dominação estrutural;
b) a pobreza, a desigualdade (de género, de fenótipo, de classe, de cultura, geracional, regional, etc.) e a percepção hierarquizada da diferença são socialmente construídas e, consequentemente, historicamente transformáveis;
c) ter voz não significa a possibilidade de falar, mas a capacidade de ser escutado. Daí a importância do desenvolvimento de uma consciência crítica e do exercício de uma cidadania activa emancipatória e humanista;
d) a apropriação do conhecimento científico que é produzido nas diferentes ciências e vertido nos programas académicos (a educação escolar) é fundamental para a construção de sociedades de classe média, que, na minha perspectiva, seriam as sociedades mais igualitárias que o ser humano poderia construir;
e) o conhecimento é uma propriedade imaterial, extraordinariamente valiosa, que pode ser transportada para qualquer lugar (está na nossa mente), não pode ser roubada ou perdida e tem um efeito multiplicador (a partir de um determinado conhecimento pode aceder-se ou construir outros tipos de conhecimento). Por isso, conhecimento (científico e académico) é poder;
f) a interpretação das culturas é fundamental e exige a tentativa contínua, sistemática, de se colocar no lugar do outro;
g) importa que a estruturação mental e os padrões de conduta dentro de uma determinada cultura não sejam impositivos comportamentais nem impeditivos da tentativa de construção de diálogos;
h) é fundamental a desconstrução da ideia de senso comum sobre o que significa “anormalidade”. Do ponto de vista semântico, “anormalidade” significa apenas o que difere da norma. No entanto, a conotação é terrível e a “anormalidade” é entendida como o que fere a norma e não como o que difere da norma e, logo, a necessidade de “banir” essa anormalidade da sociedade surge como uma premência, frequentemente não consciencializada;
i) as palavras são meramente descritivas e a tendência do ser humano é para “enchê-las” de conotação negativa (ex.: cigano como sinónimo de ladrão, mentiroso, sujo, violento; preto como sinónimo de preguiçoso, lento, ausência de elaboração cognitiva) e atirá-las como “projecteis” que atingem efectivamente o “alvo” porque são percepcionadas como uma forma de inferiorização;
j) todas as culturas constroem categorias para conhecer classificar e pensar o outro. Não é aqui que reside o problema. O problema reside na construção de categorias para inferiorizar esse outro. Quando o outro interioriza a norma que o inferioriza, acaba por se percepcionar como inferior o que leva a que viva efectivamente como insulto o que o outro, que se pensa como superior, usa como forma de o inferiorizar;
k) é fundamental olhar para todos os outros (incluindo cada um de nós nesses outros) com um olhar de estranheza-curiosidade e não de estranheza-censura, já que este último tende a estranhar para segregar e o primeiro tenderá a estranhar para entranhar, tornando todos os outros como parte de nós e vice-versa;
l) não interagimos com culturas no abstracto, mas com pessoas portadoras de cultura, o que significa que as culturas não são homogéneas, mas internamente heterogéneas, sendo importante não construir a prioris sobre aquele ou aquela que não se conhece;
m) as desigualdades não são uma inevitabilidade, mas uma construção social e a acção dos seres humanos é fundamental para contrariar essas desigualdades;
n) toda a produção científica dever ter como fim último a humanização das sociedades, construindo cada um/a de nós como mais humanos.
 
Se o outro não estivesse aí (subtítulo de um entranhável livro de Carlos Skliar), os desafios colocados a nós próprios enquanto seres humanos seriam infinitamente menos enriquecedores. Esse “outro”, que me inquieta, me assusta, me fascina e me deixa perplexa, completa a minha incompletude. Como disse, um dia, Miguel Torga, “a normalidade causou-me sempre um grande pavor, exactamente porque é destruidora”. Destruidora da diferença e da riqueza que ela comporta.
 
 
Professora do Instituto de Educação da Universidade do Minho e coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas


(foto de Adriano Miranda/Público)