Descobertos vestígios de ocupação humana na região com mais de 250 mil anos

18-02-2019 | Nuno Passos

Escavações arqueológicas na jazida paleolítica das Carvalhas (Melgaço)

Exemplo de um biface, instrumento paleolitico fabricado a partir do talhe de um seixo rolado de quartzito

Pormenor de uma pedra lascada na mão de um investigador, aquando da escavação no lugar da Bemposta, em Valadares, Monção; em segundo plano vê-se o corte estatigráfico do terreno (foto: Blogue do Minho)

Principais jazidas paleolíticas conhecidas/intervencionadas no rio Minho, citadas na revista "Arqueologia em Portugal" (2017). Em Porto Maior (As Neves) surgiu a maior concentração de utensílios de Acheulean - bifaces, fendedores - registado na Europa

Em Valadares (Monção) encontrou-se um conjunto de ferramentas talhadas há cerca de 200 mil anos, sendo a maior jazida paleolítica nacional encontrada a Norte do rio Douro (foto: revista "Arqueologia em Portugal")

Inventariação de parte dos materiais recolhidos na campanha de 2016 na antiga Escola de Remoães, Melgaço (foto: revista "Arqueologia em Portugal")

O autarca de Monção, Augusto Domingues, a segurar dois bifaces, ladeado por João Cunha Ribeiro, da Universidade de Lisboa (foto: Blogue do Minho)

Gravura de capríneos, na rocha 3 da Quinta de Barca, em Vale do Côa

O Instituto de Ciências Sociais da UMinho tem licenciatura, mestrado e doutoramento em História e em Arqueologia, além de um mestrado em Património Cultural, entre diversos cursos

José Meireles é investigador da Unidade de Arqueologia da UMinho e do Laboratório de Paisagens, Património e Território (Lab2PT) e professor associado do Departamento de História e vice-presidente do Instituto de Ciências Sociais da UMinho

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José Meireles está na equipa do projeto Miño/Minho que fez o achado. O pré-historiador participou também no projeto de investigação que esteve na origem do Parque do Vale do Côa.




Uma equipa internacional, que inclui investigadores das universidades do Minho, Porto, Lisboa, Adelaide (Austrália) e do Centro Nacional de Investigación sobre la Evolución Humana (Burgos, Espanha), encontrou evidências de ocupação humana com mais de 250 mil anos junto ao rio Minho. Os vestígios, representados por diferentes categorias de instrumentos líticos, designadamente bifaces, machados de mão, triedros, núcleos, lascas e utensílios sobre lasca, fabricados a partir do talhe de seixos rolados de quartzito e de quartzo, foram descobertos em terraços fluviais estabelecidos em ambas as margens do rio.

“A descoberta é significativa, permite-nos recuar no tempo sobre a presença humana na região e compreender melhor os seus primórdios”, explica o investigador José Meireles, da Unidade de Arqueologia da UMinho (UAUM) e do Laboratório de Paisagens, Património e Território (Lab2PT). “A hipótese cronológica que propus [em 1991] a partir dos testemunhos observados no litoral minhoto, situava tal ocupação há mais de 200 mil anos, mas agora começamos a ter evidências concretas que ultrapassam esse limite”, frisa. Um outro cenário aliciante é a eventual associação destes achados ao reconhecimento do seu autor, porventura um pré-neandertaliano ou mesmo o próprio homem de Neandertal. Todavia, vinca, não se têm encontrado vestígios humanos ou restos de fauna dessa era devido à natureza ácida dos sedimentos e solos da região, já que esta não favorece a preservação da matéria orgânica. Sem evidências desta natureza, reconstituir os comportamentos e as vivências do homem pré-histórico fica dependente, sobretudo, da informação que é possível extrair a partir do estudo e interpretação dos materiais líticos talhados e, por extrapolação, do que é possível observar noutras regiões ibéricas.
 
A investigação em curso faz parte do projeto internacional transfronteiriço “Miño/Minho: Os primeiros habitantes do Baixo Minho – estudo das ocupações pleistocénicas da região”, que se iniciou em 2016 e que irá abranger os 75 quilómetros do tramo internacional do rio até à foz. Do lado português, já houve mais de uma dezena de prospeções e escavações em quatro jazidas nos concelhos de Monção e Melgaço, contando com o apoio daqueles municípios e das uniões de freguesias de Messegães, Valadares e Sá e de Prado e Remoães. Os trabalhos irão agora estender-se para o concelho de Valença, seguindo depois também para os de Cerveira e Caminha. As intervenções envolvem investigadores e alunos universitários nas duas margens, além de arqueólogos voluntários. Estas campanhas têm tido ainda o apoio da Direção-Geral do Património Cultural e da Xunta de Galicia.
 

Desvendar o nosso passado mais remoto

Os estudos em curso na margem esquerda do rio dão sequência a uma iniciativa similar que Francisco Sande Lemos, da UAUM, promoveu nos anos 80 do século passado. Na verdade, as tentativas de estudar o Paleolítico local remontam ao início do século XX, sucedendo-se referências como Joaquim Fontes, Rui Serpa Pinto, Afonso do Paço, Abel Viana, Henri Breuil, Georges Zbyszewski, Carlos Teixeira, entre outros. “Então a arqueologia baseava-se essencialmente em achados de superfície, recolhidos até por gente do campo, que depois os dava a conhecer e os entregava aos investigadores da época; havia amadorismo, achados dispersos e quadros evolutivos de referência rudimentares, próprios dos primórdios da arqueologia pré-histórica”, evoca José Meireles.
 
O cenário mudou radicalmente após o 25 de Abril, sobretudo nesta região, com a criação da UMinho: “Esta universidade tem sido protagonista neste âmbito, com atividades e impacto nacional e internacional”, vinca o arqueólogo, que chegou à instituição em 1980, inaugurando a linha de investigação em Pré-História Antiga. Os dois primeiros projetos científicos de fôlego neste domínio incidiram sobre a ocupação humana mais antiga do vale do Minho, com Sande Lemos, e no litoral entre Caminha e Aguçadoura, em Póvoa de Varzim, com José Meireles, que dirigiu várias escavações, nomeadamente em Afife e Montedor, em Marinho e na Gelfa, em Vila Praia de Âncora, em Santo Izidoro e em S. Domingos.
 
“O estudo da Pré-História é um processo lento, mais lento face a outros períodos, o que condiciona o desenvolvimento dos projetos, designadamente ao nível da obtenção de financiamentos e os próprios alunos tendem, por vezes, a valorizar e a orientar os seus interesses para épocas mais recentes, porventura por aí encontrarem, futuramente, maiores possibilidades ao nível da entrada no mercado de trabalho”, diz José Meireles. O professor associado do Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da UMinho anui que mudar esta realidade depende das políticas de investigação, mas também das apostas estratégicas das academias. “Poderei aposentar-me em 2021, por isso seria (será) desejável haver quem dê continuidade à investigação nesta área”, confessa.
 
A chamada Pré-História Antiga terá tido o seu início há cerca de 3.3 milhões de anos, na África oriental, com base na identificação dos primeiros testemunhos da capacidade humana em manipular e transformar as matérias-primas líticas, tendo-se prolongado até há aproximadamente 10.000 mil anos a.C., com o advento da agricultura e do pastoreio no Próximo Oriente. Uma mostra dos achados pré-históricos na região minhota está no Museu D. Diogo de Sousa, em Braga, havendo também evidências arqueológicas no Museu Municipal de Caminha, entre outros locais. No caso do projeto "Miño/Minho", os materiais resgatados poderão vir a ser integrados nos museus municipais, mas também há a hipótese da sua inclusão em “museus de sítio”, estabelecidos nas proximidades das próprias jazidas arqueológicas e integrados em itinerários culturais conjuntos dos municípios portugueses e galegos da raia.
 


Na génese do estudo das gravuras do Côa
 
O Parque Arqueológico do Vale do Côa, o maior complexo de arte rupestre paleolítica ao ar livre no mundo, está ligado à UMinho desde a sua criação. Após estudos no terreno e protestos da sociedade em 1994/95, o Estado suspendeu o processo da construção da barragem do Baixo Côa. A Secretaria de Estado da Cultura assumiu então a importância e o “significado” do Côa, estabelecendo a UMinho um primeiro projeto de investigação, lembra José Meireles: “Na altura, eu não estava centrado exatamente no estudo da arte paleolítica e, após cumprir com as minhas responsabilidades iniciais, o projeto prosseguiu com outros investigadores e equipas; em boa verdade, o Côa não é propriedade de nenhum investigador nem de ninguém, é do mundo”. A UNESCO classificou o local como Património Cultural da Humanidade em 1998.
 
Entretanto, quando se definiu a construção do Museu do Côa, a UMinho “voltou a ter um papel decisivo”, sobretudo com a UAUM, o Departamento de História e o Centro de Computação Gráfica, coordenando a elaboração dos conteúdos multimédia, do site e da preparação de conteúdos expositivos. “A narrativa sobre a história da Humanidade é cada vez mais uma construção interdisciplinar e multimédia, através de modelos interativos, representações 3D, interfaces… enfim, agrega muitas outras ciências e as novas tecnologias de informação para levar o conhecimento ao público em geral, de maneira apelativa e estimulante”, contextualiza José Meireles. A UMinho continua a colaborar no Côa “sempre que lhe é pedido”. Aliás, a Fundação Côa Parque tem como vice-presidente Maria Manuel Oliveira, professora da Escola de Arquitetura.
 
O Côa Parque é um dos principais sítios de arte rupestre do mundo, com cinco dezenas de núcleos de arte ao longo dos últimos 17 quilómetros do vale do rio Côa, até confluir com o Douro. As gravuras, feitas por picotagem ou abrasão, são na maioria de há mais de 10.000 anos, representando essencialmente animais, por vezes sobrepostos, mas há também pinturas e gravuras do Neolítico e Calcolítico, gravuras da Idade do Ferro e dos séculos XVII a XX, tendo os moleiros sido os últimos a abandonar o fundo do vale. Já o Museu do Côa é o segundo maior do país em área, após o de Arte Antiga de Lisboa. Procura preservar, valorizar e divulgar testemunhos da cultura material e imaterial que construíram aquela paisagem duriense.