Espírito livre, consciência desperta. Álvaro Laborinho Lúcio, o novo honoris causa

18-02-2019 | Daniel Vieira da Silva | Fotos: Nuno Gonçalves

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Nasceu na Nazaré há 77 anos. Foi jurista, professor, ministro da Justiça, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e presidente do Conselho Geral da UMinho. É escritor e passou pelo teatro.




Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio nasceu em 1941. É licenciado em Direito e mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, tendo iniciado a sua carreira profissional como delegado do procurador-geral da República, função que exerceu nas comarcas de Seia, Fundão e Santarém. Foi, mais tarde, juiz em Oliveira do Hospital e Tábua, procurador da República junto do Tribunal da Relação de Coimbra, inspetor do Ministério Público, procurador-geral adjunto da República, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e diretor da Escola da Polícia Judiciária e do Centro de Estudos Judiciários.

Foi também ministro da Justiça, secretário de Estado da Administração Judiciária, ministro da República para a Região Autónoma dos Açores e presidente da Assembleia Municipal da Nazaré. Foi professor convidado na Universidade Autónoma de Lisboa e presidente do Conselho Geral da UMinho. Cofundou a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e preside à assembleia-geral da Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família. Agraciado pelo Rei de Espanha com a Grã-Cruz da Ordem de São Raimundo de Peñaforte e pelo Presidente da República Portuguesa com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, Laborinho Lúcio é autor de diversas publicações, incluindo "A Justiça e os justos", "O julgamento - uma narrativa crítica da Justiça", "Educação, arte e cidadania", além dos romances "O chamador" e "O homem que escrevia azulejos".


 


O que significa para si este doutoramento honoris causa?
É uma imensa honra receber o título de doutor honoris causa em Ciências da Educação atribuído por esta universidade que, apesar de não ser a minha universidade de nascimento biológico, é a minha universidade de adoção. Esta adoção fica agora mais consolidada, sobretudo por ser na área das Ciências da Educação, até porque valoriza a minha intervenção cívica num espaço onde costumo afirmar-me como profano, por não ser um perito na área da educação. As questões da educação e escola são questões do espaço público e cidadania e é nessa medida que tenho desenvolvido uma intervenção quantitativamente significativa. A UMinho entendeu que, qualitativamente, a mesma intervenção também teria significado. O que tenho de fazer é, simultaneamente, ligar a humildade com que aceito o título e a profunda honra que o mesmo representa para mim.
 
Procurou ter sempre uma participação cívica ativa com uma ação pública intensa. De onde vem este seu espírito de inquietação e de incitação ao pensamento?
Julgo que faz parte da minha própria natureza. À medida que acumulamos experiência vamos legitimando essa inquietação e vamo-nos sentindo mais tranquilos ao sermos inquietos. Aprendi, ao longo da vida, na minha experiência profissional de magistrado, que é mais importante fixarmo-nos nas perguntas, querermos saber cada vez mais, interrogarmo-nos e partir de uma “ignorância culta” para podermos apurar o sentido das coisas, das pessoas e das gentes. Essa inquietação vem do meu desejo de fazer perguntas, de interrogar, de pôr em causa e de desenvolver uma consciência crítica e, a partir daí, desenvolver um pensamento crítico. Por outro lado, quem exerce funções como as que exerci mantém sempre o dever cívico de intervir. Portanto, hoje não me tranquilizaria numa posição de aposentado e entendo que, enquanto tiver saúde e energia, tenho o dever de, modestamente, participar no debate público e convidar os que querem ouvir-me e ler-me a seguirem criticamente o meu pensamento e desenvolverem o seu próprio pensamento tão criticamente em relação a mim como eu me sinto capaz de fazer relativamente ao espaço que me serve.
 
Afirmou ser agora menos otimista que no passado. Mantém uma descrença no presente ou consegue manter uma palavra de esperança na humanidade, num tempo em que muito se desespera e onde algumas injustiças estão a “vir à tona”?
Sou um otimista, sempre fui e continuo a ser um otimista. Costumo dizer que era um otimista de curto prazo e passei a ser um otimista de longo prazo. Tenho a ideia de que as coisas não estão bem e, nessa medida, tenho esperança que as mesmas venham a recuperar alguma dimensão. Penso que estamos a perder muito rapidamente o verdadeiro sentido da condição humana. Julgo também que precisávamos de aí nos deter por forma a podermos criar um discurso que tenha exatamente a mesma validação externa do discurso das tecnociências, mais virado para aquilo que será o desenvolvimento a partir de uma área fundamental e importante, mas que vai desprezando o que as humanidades e universalidades devem ser chamadas a manter. É nessa medida que estou menos otimista. As condições foram criadas, uma implantação de um pensamento único instalou-se rapidamente, o caminho que o mundo e a vida vão seguindo assenta num pensamento a partir de uma consciência da inevitabilidade das coisas. Significa que abdicamos do nosso poder para definirmos caminhos e passamos a ser a escravos daquilo que outros decidem por nós... Isso deixa-me menos otimista, mas não me deixa perder a esperança, porque tenho a noção que a condição humana é suficientemente forte para se impor. Tenho pena que estejamos a perder esse tempo, tenhamos que esperar por um novo tempo para que isso volte a acontecer, mas não tenho dúvidas que isso acontecerá. Daí o meu otimismo, mas de longo prazo, e não tão afoito como era, de curto prazo.
 
Antoine Garapon considera que teatro e justiça são semelhantes. Recordo-me de palavras suas a dar conta que o teatro e justiça são essenciais a caminhar lado a lado. Considera que falta mais teatro à justiça ou justiça à forma como se valoriza o teatro?
Não creio que se possa dizer que falta teatro à justiça nem que falta justiça ao teatro. A justiça nasceu do teatro. Daí a relação substantiva entre o teatro e justiça, que dá ao teatro uma dimensão de fundo. Quando falamos na implicação que o teatro tem a partir da justiça estamos a pensar em aspetos meramente formais, mas ao longo do tempo podemos encontrar paralelismos, muitas vezes de coincidência, onde muitas das discussões teóricas no teatro tinham o seu equivalente na justiça. Estamos a falar de dois conceitos culturais, onde se repercute muito daquilo que foi a evolução do pensamento ao longo da história e que vai encontrar convergências entre um e o outro. Nessa medida, esse pensamento deve continuar a ser desenvolvido, ainda que haja diferenças.



"Há modelos educativos magníficos, mas o que os põe em causa são as crianças"

Foi-lhe atribuído o grau de honoris causa na área das Ciências da Educação. Apesar de ser um homem da justiça, tem posições vincadas sobre esta área de saber. Deixar de ter as crianças como cerne na definição daquilo que queremos na escola é um perigo que estamos a potenciar?
É o que me preocupa e é aquilo que legitima a minha intervenção. Os direitos das crianças têm sido tratados apenas na relação entre as crianças e a família ou entre as crianças e a comunidade no seu todo. Entendi ser importante entender a sua relação com a escola, porque ao falarmos de educação esquecemo-nos dessa realidade concreta que é a escola, ali onde as coisas acontecem. Trabalhamos pouco esse habitat onde as crianças crescem. Devemos “pegar” nas crianças e nos seus direitos, olhar a inversão desses direitos quando eles não são respeitados - que normalmente nos levam aos domínios dos maus tratos, da negligência, do abandono - e reconfigurar isso, invertendo a situação. Quis tentar perceber até que ponto não temos cometido um erro, diria, de estratégia, que é o de concebermos, abstratamente, a educação a partir dos modelos de ensino e partir daí para refletirmos intelectual e teoricamente, criando modelos que, vindo de cima para baixo, não tomem em conta essa realidade antropológica que é a criança, que se transforma no conjunto dos alunos. Teremos modelos magníficos, mas o que os atrapalha e que os põe em causa são as crianças.
 
Estamos realmente a incluir as crianças?
É dessa realidade antropológica que eu faço questões que me parecem essenciais, como sejam as da inclusão universal numa escola que é de frequência obrigatória e o que é preciso fazer para garantir esta inclusão. E a inclusão universal não se basta na retórica que nos leva a afirmar a inclusão de todos. Convoca-nos também à responsabilidade de compreender que o “todos” pressupõe cada um e que a inclusão de todos não significa grande coisa. O que significa é a inclusão de cada um. Saber até que ponto é que as estratégias que usamos são elas próprias beneficiadoras de uma inclusão universal a este nível. Até que ponto nós temos que trabalhar mais a heterogeneidade e a diversidade no interior das escolas? Até que ponto temos que garantir, simultaneamente pedindo exigência, modelos de avaliação que sejam suscetíveis de ser respondidos positivamente pelo todo? Até que ponto não devemos fazer coincidir com um desejo de sucesso, também, o desejo de não insucesso, que é uma outra forma de sucesso, diferente desta forma estereotipada que leva o mundo a ter o sucesso como o produto final de uma competição? Termos a noção que, para mim, é absolutamente de evitar ou, pelo menos, de combater, que uma verdadeira escola de exigência é uma escola de competição. Uma escola de competição é uma escola com vencedores e vencidos - e se é uma escola com vencedores e vencidos, não é uma escola de inclusão universal. Vermos até que ponto temos aqui uma margem enorme de reflexão, de progressão, de pensamento, que nos permita, partindo da criança, ou das crianças, para a escola, encontrar outras soluções alternativas àquelas que têm sido seguidas até agora, sublinhando sempre, todavia, que a escola pública tem tido resultados que nos permitem qualificá-la como uma das instituições, se não mesmo a instituição pública, de maior sucesso em Portugal nos anos da democracia. Isto não significa que não haja muito a refletir, a pensar, a questionar. E é aí que eu me situo, mais uma vez colocando perguntas, desenvolvendo pensamento crítico e pretendendo que isso possa ser feito com o conjunto das pessoas interessadas em debater este tipo de matérias, sempre em nome de uma ideia de cidadania e de uma cidadania ativa, de uma cidadania material e de uma cidadania responsável.