"Participei na criação de várias instituições de ensino superior"

29-03-2019

Homenagem no Dia do IPCA, em 2011, ladeado por figuras como Sobrinho Teixeira, Miguel Costa Gomes ou João Carvalho (foto: Pedro Granja/Barcelos Popular)

O reitor Barbosa Romero a discursar na sessão do Dia da UMinho em 1981, na qual se entregaram as primeiras cartas de curso

Foi vice-reitor da UMinho de 1987 a 1994, na equipa de Sérgio Machado dos Santos (foto: arquivo do Correio do Minho)

Numa intervenção no auditório municipal de Barcelos, nos anos 1990 (foto: arquivo do Correio do Minho)

Nos 20 anos da Escola Superior de Gestão do IPCA, em outubro de 2016, em Barcelos (à direita) (foto: portal do IPCA)

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José Eduardo Lopes Nunes

Entrevista com o professor catedrático jubilado da Escola de Ciências, inserida no ciclo de conversas com membros da comissão instaladora da UMinho e aquando dos 45 anos desta academia.


Nasceu a 27 de dezembro de 1929, em Nova Lisboa (atual Huambo), no centro de Angola. Formou-se e iniciou a carreira docente no Departamento de Geologia e Mineralogia da Universidade de Coimbra (UC). Fez depois parte da equipa que lançou a Universidade de Lourenço Marques (ULM), em Moçambique, onde esteve 12 anos, e doutorou-se na Universidade de Nancy, no nordeste de França. Após o 25 de Abril veio para a UMinho, onde foi membro da comissão instaladora, vice-reitor, presidente da Escola de Ciências, diretor do Departamento de Ciências da Terra e coordenador do Centro de Ciências e Tecnologia do Ambiente. O responsável foi ainda, de 1995 a 2003, o primeiro presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico do Cávado e Ave (IPCA) e, até se jubilar, docente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
 
 
Como surgiu a oportunidade de integrar a ULM?
Eu estava a iniciar a carreira no Departamento de Mineralogia e Geologia da UC; sendo bolseiro da Comissão de Estudos de Energia Nuclear, acompanhei o professor José Marques Correia Neves, que a convite de José Veiga Simão, também professor da UC, foi desafiado a instalar em Lourenço Marques [atual Maputo] os Estudos Gerais Universitários de Moçambique, mais tarde ULM. Para isso, convidou vários docentes da UC, nos quais eu me integrava, o que encarei como um desafio novo e aliciante. A UC foi “a” que mais contribuiu com docentes para a ULM.
 
Que outras hipóteses profissionais ponderou?
Ao aceitar, abria-se – para mim e para todos os que faziam parte do novo projeto – uma promissora carreira académica e de investigação, que em Portugal (a metrópole) era muito difícil de alcançar nessa altura. Fiz parte do Departamento de Mineralogia e Geologia da ULM, que teve como primeiro diretor José Marques Correia Neves, também vindo da UC.
 
Como era o ambiente científico e académico na ULM?
A ULM atingiu um nível científico e pedagógico que se igualava às universidades que havia em Portugal (Coimbra, Lisboa, Porto, Católica) e de África do Sul. Os professores assistentes doutoraram-se e colaboraram sempre na consolidação pedagógico-científica e profissional. Éramos visitados e procurados com frequência por professores estrangeiros, alguns deles colaboradores científicos. Na verdade, havia um grande empenho de todos os agentes envolvidos para que a ULM se tornasse numa universidade de referência no meio português e em toda a África. As condições de trabalho e os meios eram os melhores. As relações entre todos eram abertas e havia um sentimento de partilha muito grande. Não queria usar o termo “família”, porque estávamos numa missão, digamos assim, e tínhamos deixado as raízes cá… Mas ao nível dos departamentos o convívio era direto, havia vivências próximas… enfim, quase familiares! Trabalhei também muito com Júlio Barreiros Martins, da Engenharia Civil, como na barragem do Limpopo, e que depois viria igualmente para a UMinho. Estive 12 anos na ULM, quatro deles como bolseiro na Universidade de Nancy, em França. Voltei em definitivo a Portugal a 24 de dezembro de 1975, aterrei às 6 da manhã em Lisboa. Em janeiro de 1976, integrei o corpo docente da UMinho.
 
O que implicou o 25 de Abril e o processo de independência para a ULM?
Com a instabilidade política que se gerou, muitos docentes regressaram à metrópole, deu-se uma debandada grande, com a procura de bilhetes de avião, o arrumar e encaixotar tudo... Contudo, a ULM tinha pernas para andar e o seu futuro estava garantido, embora a um ritmo mais lento. Depois do 25 de Abril, as minhas ligações com a ULM foram diminuindo, tendo ainda orientado alguns alunos, que não podiam ficar prejudicados no seu percurso.
 
Qual foi a primeira impressão que teve de Braga?
A minha viagem de núpcias tinha sido conhecer o Norte de Portugal, por isso eu tinha uma opinião favorável sobre o Minho. Braga era uma cidade pequena da província, facilitando as relações sociais. Claro que a UMinho criou impacto, queria-se conhecer quem dela fazia parte, a cidade centrou-se na universidade. Mas a adaptação foi boa. Até a minha raiz coimbrã me ajudou. Por exemplo, reencontrei Jorge Carlos Lorga Marta, já docente no liceu Sá de Miranda. Ele tinha estudado comigo na UC e jogou a defesa direito da Académica, quando eu fui diretor da secção de futebol da Associação Académica de Coimbra (AAC). Também o dr. Bernardo Reis, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Braga, foi colega de curso da minha esposa. E, já agora, nos tempos da UC eu não sabia cantar o fado, mas acompanhei muitas serenatas do Zeca Afonso e até fiz algumas! [risos] Bem, as vivências perduram e levaram-me a aderir à Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Braga, ligada à AAC. Lorga Marta foi-me desafiando: “Podias ir para o Lions Club de Braga…!”. Foram surgindo outros enquadramentos.
 
Mas como surgiu a oportunidade de integrar a UMinho?
O primeiro reitor desta universidade, Carlos Lloyd Braga, foi professor e reitor da ULM e convidou muitos dos docentes que na altura estavam a regressar a Portugal. Um deles era [Joaquim José] Barbosa Romero, professor de Fisco-Química, com quem eu tinha uma relação direta, a sua esposa trabalhou connosco no laboratório analítico da ULM. Eu estava no meu gabinete, que ficava ao lado do da Amália Sequeira Braga, a primeira assistente do departamento e que foi minha aluna, tal como o foi Graciete Dias, depois o outro foi Carlos Alberto Alves... Barbosa Romero apareceu e convidou-me para fazer parte da Unidade Cientifico-Pedagógica de Ciências Exactas e da Natureza [atual Escola de Ciências]. Aceitei com muita honra. Fui nomeado diretor do Departamento de Ciências da Terra e, simultaneamente, presidente do Centro de Ciências e Tecnologia do Ambiente.
 
Onde eram as aulas?
Havia algumas aulas no Largo do Paço e preparámos o edifício da rua D. Pedro V [atual sede da Associação Académica da UMinho] como um centro [de investigação], que foi evoluindo aos poucos. Lloyd Braga e a comissão instaladora nomearam-me para primeiro presidente das CEN (Ciências Exatas e da Natureza), que englobava o que é hoje a Química, a Física, a Matemática, a Biologia e a Geologia. O meu primeiro gabinete foi a despensa da cozinha na D. Pedro V. [sorriso] Lembro-me que disse à d. Telma, primeira chefe da secretaria da Escola de Ciências: “Olhe, aqui é a cozinha, vai ser o nosso ambiente de trabalho… faça a relação dos equipamentos que precisa para montar o gabinete”. A nossa equipa, tal como em muitos departamentos, veio sobretudo da universidade em Moçambique e em Angola. O esforço para afirmar essas duas instituições e as vivências do Ultramar deram corpo e unidade para as pessoas valorizarem a proximidade nas relações e para abraçarem o novo projeto da UMinho.
 
Ou seja, nas primeiras aulas havia pouco material.
Foi necessário comprar equipamento, montar instalações, preparar o ensino…Houve, no nosso caso, uma ligação grande com a Biologia e a Geologia da Universidade do Porto (UP), cujo diretor, Miguel Montenegro de Andrade, foi meu professor na UC e tínhamos uma boa relação profissional e humana. Deu-nos também amostras e fósseis para Paleontologia… que hoje aí estão!
 
Entretanto, foram surgindo os bacharelatos.
Sim. Por exemplo, na Biologia estava Cecília Leão, uma das primeiras assistentes e que está hoje na Escola de Medicina. João Evangelista Simão, da Química, também veio de Lourenço Marques. Licínio Chainho Pereira era da Física. Na área da Zoologia pedimos colaboração da UP e a um professor da UC, que vinha a cada semana e assumiu a direção do Departamento de Biologia e Zoologia, colaborou até aos seus 82, 83 anos.
 

Pressões na bipolarização, na criação dos campi e nos novos cursos

Em outubro de 1981, integrou como vogal a comissão instaladora da UMinho, a par do professor Chainho Pereira. O que levou à sua nomeação?
Desconheço a razão da minha nomeação. Estive na comissão até 31 de dezembro desse ano, quando terminou o regime de instalação da UMinho.
 
Como a comissão instaladora encarava a bipolarização da universidade?
O arranque da instituição foi feito por pessoas com experiência de terem construído outras universidades. Importava afirmar o conhecimento e, para tal, era preciso equipamentos, criar campus com unidades próprias, enfim, porque isto não era o ensino secundário. Por isso houve uma fricção regional inicial: se Braga tinha, Guimarães também tinha que ter. Íamos crescendo ainda sem espaço definido. Houve a tentativa de criar o polo nas Caldas das Taipas e, depois, a necessidade de haver pessoas de referência político-científica na comissão instaladora.
 
E sobre o modelo de organização adotado?
Deu-se um encontro entre os que se formaram em Inglaterra, muitos deles foram assistentes, e os “franceses”, como eu, que me doutorei em Nancy, com o professor Marcel Roubault, uma referência mundial. Bem, houve alguma fricção académica, mas não deu faísca! [risos] Vigorou o modelo matricial “de” Barbosa Romero, que se formou em Inglaterra, tal como Lloyd Braga e muita gente da Química e da Física.
 
Que relação tinha com Lloyd Braga?
Conheci-o em Lourenço Marques, era professor de Física e tinha uma grande capacidade de trabalho e de organização, qualidades que colocaria ao serviço da UMinho. Em junho de 1980, foi nomeado presidente da comissão instaladora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, pelo então ministro da Educação, Victor Crespo, meu amigo pessoal e com quem trabalhei na ULM, que me nomeou então reitor da UMinho e isso saiu mesmo em Diário da República. Mas recusei o cargo por razões meramente pessoais, pois coincidiu com doenças graves do meu sogro, da minha mãe e do meu filho mais novo. Na altura tive muitas pressões, inclusive insistiram para eu voltar à UC. Barbosa Romero ficou como reitor da UMinho em exercício. Lúcio Craveiro da Silva surgiu como candidato natural a reitor e indiquei o seu nome ao ministro da Educação, que o contactou. Craveiro da Silva aceitou, na condição de haver eleição direta, com consulta a todos os corpos da academia. Tornou-se assim o primeiro reitor por eleição direta numa universidade portuguesa. Isso não significa que houve “abandono do sistema”, porque o “sistema” era a nomeação pelo ministro.
 
A UMinho preparava-se para a “universidade completa”, com quase todas as áreas.
Sim. As Ciências cresciam, as Letras ainda não estavam… Craveiro da Silva conseguiu convencer o professor Victor Aguiar e Silva, uma referência no estudo de Camões, a vir da UC. Coimbra estava em tumultos e ameaçada pela lógica do enquadramento no regime. Da “minha” faculdade da UC terão sido “corridos” uns vinte professores catedráticos. Com grande luta, por minha influência e de João Evangelista Simão, também trouxemos para o Minho outros docentes.

A UMinho foi a terceira universidade pública com licenciatura em Direito, após Coimbra e Lisboa.
Coimbra teve muita força para a formação da mentalidade política e o desenvolvimento político e socioeconómico do país. Não foi fácil ter a aceitação da Faculdade de Direito de Coimbra, um ambiente aparentemente fechado e reduzido, para desenvolvermos o Direito em Braga. Enfim, havia a ideia de que uma universidade só o é se tiver Escola de DireitoEscola de Medicina...
 
A UMinho também teve Senado Universitário relativamente cedo, do qual fez parte.
Sim. Havia grandes discussões. Neste órgão começou a emergir alguma força por parte das próprias regiões. Considerou-se importante a universidade afirmar-se nas tecnologias e no conhecimento científico, em vez de ser só no ensino. A universidade procurou licenciaturas que dessem resposta a isso, sem descurar o ensino, como a formação de professores.
 
Em 1986-87 o Senado decidiu transferir parte dos cursos de Engenharia para Guimarães. Até aí, um curso na área decorria três anos em Braga e dois anos em Guimarães.
O meu filho mais velho sofreu com isso na licenciatura. A Engenharia tinha também licenciatura de Polímeros ramo não-sei-quê, de Mecânica ramo não-sei-quantos, o que gerava dificuldades.  A verdade é que se criou áreas que outras universidades não tinham, mas foi uma mais-valia. O impacto industrial da região, com os têxteis ou a metalomecânica a crescer, criou a pressão de, trabalhando com o numerus clausus, permitir cativar mais alunos, logo mais professores e mais doutores. A UMinho teria que começar a preparar os seus próprios doutoramentos.
 
Olhando para a história da UMinho, que momentos destaca?
Na luta pela sua instalação, implementação e desenvolvimento, todos os momentos foram determinantes, para o bem ou para o mal. Destaco a decisão da bipolaridade e a inauguração das primeiras instalações nos campi de Gualtar e Azurém.
 
Em que aspetos esta academia se diferenciou e foi pioneira?
No modelo [matricial] de gestão dos recursos humanos, científicos e pedagógicos. Na escolha de áreas cientificas inovadoras. A UMinho foi, e continua a ser, um motor de desenvolvimento cultural, social e económico, não só de Braga e Guimarães, mas da toda a região Norte e, em vários aspetos, a nível internacional.



"Não me encanto tanto pelo que fiz, mas pelo que fomos construindo"

Depois da dedicação à UMinho, decidiu lançar o IPCA.
O parto também foi muito difícil. No início não havia nada! Andei à espera que um empreiteiro construísse os edifícios [residenciais em Arcozelo, Barcelos], para depois alugar-nos espaços do rés-do-chão e aí montarmos salas de aula e gabinetes. Foi uma luta grande que tive para aceitar esse lugar, muito antes da haver o campus [em Vila Frescainha S. Martinho]. Felizmente, tive apoio da UMinho, até porque foi uma condição que coloquei, após tanto dar à instituição. Encontrei grande apoio sobretudo das Escolas de Economia e Gestão e de Direito. O IPCA é hoje uma instituição de mérito científico e pedagógico. Muitos dos seus professores passaram pela UMinho e ainda conservo amizades. Também mantive uma relação com o Instituto Politécnico de Vila Real, colaborando com o ex-reitor de Luanda, que viria a fundar a UTAD, onde lecionei até 2000, quando me jubilei. Para aí vieram também alunos e colegas de Lourenço Marques, em convivência aberta.
 
Como avalia as mudanças e impacto social do ensino superior numa região onde havia muito pouca formação?
Existia, sobretudo, uma massa fundamental: a juventude. Muitas famílias nunca pensaram que poderiam ter filhos no ensino superior e isso foi talvez um enriquecimento inicial das próprias instituições académicas. Gente a querer tirar a licenciatura, a criação de cursos para responder além das necessidades regionais…. Apesar de trabalharmos com numerus clausus baixo, todos os cursos tinham procura! No caso da área tecnológica da UMinho, afirmou-se porque havia colocação e até disputa dos recém-diplomados pelas empresas.
 
Que balanço faz da sua ligação de tantos anos ao ensino superior? 
Sinto-me honrado por ter podido fazer parte da UC, da ULM, da UMinho, do IPCA e da UTAD. E por ter estado ligado à criação de escolas de ensino superior em diversas circunstâncias e locais. Foram anos de muita dedicação. Estive rodeado de pessoas extraordinárias que deram sempre o seu melhor e tornaram o trabalho mais fácil. Na verdade, não me encanto tanto pelo que fiz, mas pelo que fomos construindo.
 
 

Conteúdo adaptado das entrevistas a José Eduardo Lopes Nunes, feitas por Márcia Oliveira, no âmbito dos 40 anos da UMinho