A fé religiosa pode diminuir o sofrimento em pessoas com esclerose múltipla?

29-03-2019 | Catarina Dias | Fotos: Nuno Gonçalves

Paula Encarnação é professora da Escola Superior de Enfermagem e investigadora do Centro de Investigação em Enfermagem da UMinho

Tese de doutoramento contou com a orientação de Clara Costa Oliveira, do Instituto de Educação da UMinho, e Teresa Martins, da Escola Superior de Enfermagem do Porto

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Paula Encarnação, da Escola Superior de Enfermagem, analisou a relação entre fé e sofrimento, recorrendo a uma amostra de 100 pessoas com esclerose múltipla.




Um estudo realizado a uma centena de pessoas com esclerose múltipla (EM) mostra que a fé religiosa raramente é usada como principal recurso para atenuar o sofrimento e lidar melhor com a doença. A fé cristã chega a ser comparada pelos doentes a outras atividades de lazer como fazer “parapente ao fim de semana”, “ouvir música” ou “ver televisão” em termos de benefícios para o bem-estar. E isso acontece independentemente da crença, das práticas religiosas, do estádio da doença, da idade e do sexo. Estes resultados podem ler-se nos excertos das entrevistas que constam na tese de doutoramento de Paula Encarnação, docente da Escola Superior de Enfermagem da UMinho e investigadora na área da espiritualidade e humanização dos cuidados de saúde. 
 
Orientada por Clara Costa Oliveira, do Instituto de Educação da UMinho, e Teresa Martins, da Escola Superior de Enfermagem do Porto, Paula Encarnação quis perceber se as pessoas que sofrem de doença crónica altamente incapacitante recorrem à fé no alívio dos sintomas e no enfrentamento da doença. A investigação focou-se na população com EM residente na região do Minho e na fé com orientação teológica cristã, dado o contexto cultural da sociedade portuguesa. 
 
O estudo realça que não há relação direta entre a fé e a intensidade do sofrimento, ao contrário do que é defendido em alguns estudos internacionais. “São entidades distintas, o que significa que indivíduos com muita ou pouca fé podem ter muito ou pouco sofrimento. Na maioria dos casos, a fé é usada ao mesmo nível da música, da leitura ou do cinema. Se as pessoas não tiverem consciência que a fé pode funcionar como uma força e um recurso geral de resistência ao sofrimento, então não vão usá-la”, contextualiza a investigadora, surpreendida com as conclusões.
 
Os resultados destacam ainda que apenas metade dos inquiridos compreende o sofrimento que está a viver. Os mais jovens são os que parecem ter maior consciência desse sofrimento, o que os leva a recorrer a outras práticas que não a fé religiosa (ir à missa ou rezar). “Têm acesso a mais informação, por isso racionalizam mais. Usam a internet para elucidar dúvidas, desconstruir medos, procurar redes de apoio e encontrar respostas sobre a sintomologia e os tratamentos da doença. Como têm várias áreas de interesse acabam por olhar para a vida de forma diferente”, esclarece Paula Encarnação. Apesar de os participantes se mostrarem insatisfeitos com os acontecimentos relacionados com a doença, é através da consciencialização do seu sofrimento que conseguem atribuir novos significados à sua vida e apostar nas ferramentas necessárias para superar com dignidade situações angustiantes. 
 
Concluiu-se igualmente que metade dos inquiridos encara o sofrimento como uma fonte de crescimento e aprendizagem e que sete em cada dez afirma “dar agora mais valor às coisas realmente importantes”. Por outro lado, 80% dos doentes consideram que a EM é um dos motivos pelo qual se sentem discriminados pela sociedade. Em termos interpessoais, constata-se maior proximidade com familiares e amigos em 72% dos casos e com uma entidade divina em 37% dos casos.


Instrumento para medir o sofrimento é pioneiro em Portugal
 
Desta investigação surgiu também um questionário capaz de medir o sofrimento através das dimensões ‘intrapessoal’, ‘interpessoal’, ‘consciencialização do sofrimento’ e ‘sofrimento espiritual’, que integram indicadores como a dor e a incapacidade física, a perda de autonomia, a alteração de papéis sociais no seio da família e da sociedade, o abandono de projetos pessoais, a não aceitação da sua condição, a perda de esperança e do significado da vida, entre outros. 
 
Aplicado junto de 250 pessoas com EM, fibromialgia, artrite invalidante ou em cuidados paliativos, o inquérito revelou que a consciencialização do sofrimento é a fase mais complicada, pois implica por parte do doente maior entendimento e aceitação da doença e das suas repercussões a médio e longo prazo. “A maioria encontra-se numa altura de vida ativa a nível profissional, o que é um problema porque, na realidade, a doença impede-os de trabalhar. Muitos vivem numa desilusão e frustração enorme porque não perspetivam um futuro em termos profissionais e de criação ou preservação da família, por exemplo”, reforça Paula Encarnação. 
 
Pioneiro em Portugal por avaliar várias vertentes em simultâneo, o inquérito está validado cientificamente e promete ajudar os profissionais de saúde a intervirem de forma mais eficaz nas dimensões que provocam mais sofrimento. Neste momento, o instrumento já despertou interesse a nível internacional, estando a ser traduzido para persa.
 

Sobre a esclerose múltipla
 
De acordo com a Federação Internacional de Esclerose Múltipla, estima-se que cerca de 2,5 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem daquela doença, uma das mais comuns do sistema nervoso. Na Europa afeta mais de 400 mil indivíduos e em Portugal cerca de 5 mil. Esta patologia altamente incapacitante é provocada pela desmielinização das fibras nervosas do sistema nervoso central, levando ao aparecimento de um vasto quadro de sinais e sintomas. A faixa etária para o diagnóstico situa-se entre os 20 e os 40 anos de idade.