A proximidade do divino

20-12-2019

Albertino Gonçalves

O Natal ocorre oito semanas após o Dia dos Fiéis Defuntos e dois meses antes do Carnaval. Ora celebramos a morte, ora festejamos o nascimento, ora nos prometemos a regeneração. Em menos de quatro meses.


O Natal é a festa do nascimento e do menino, mas também de José e Maria, a família. As crianças são o cerne do Natal. Mas em família. O essencial dos rituais de Natal passa-se em casa. As festas consolidam-se no tempo. Nas sociedades agrárias, no inverno, tudo parecia encolher, incluindo as pessoas e os grupos. A atividade e o convívio confinavam-se ao espaço doméstico. A natureza como que hibernava. Colheitas só nos celeiros. O afrouxamento dos laços coletivos combina-se com a carência económica e alimentar. É vocação das festas de inverno atenuar estas dificuldades. Festas pautadas pela partilha, o São Martinho, as Nicolinas, os Reis ou o São Sebastião constituem momentos de solidariedade. O Natal é um expoente deste sobressalto de generosidade. Caracteriza-se pela dádiva, que o Pai Natal simboliza.

O nascimento, a família, as crianças, a dádiva, o pinheiro e o presépio são símbolos da vida. Mas a morte não é ignorada. A ideia de que somos uma comunidade de vivos e de morte é peregrina. A missa do galo, à meia-noite, apresenta alguns indícios de associação à morte. O galo é um psicopompo que anuncia a morte e ajuda a travessia. Em Toledo, matam galos para os distribuir aos pobres. Há quem, na ceia do Natal, não levante a mesa para as alminhas virem comer.

Quando os laços dentro dos grupos se apertam, as pessoas isoladas ficam mais vulneráveis. Atente-se nos refugiados ou nos emigrantes... A solidão agudiza-se. Em tempos de magia, uma insignificância pode produzir um efeito subjetivo prodigioso. Quem esteve emigrado, longe dos abraços, conhece o valor espiritual de uma chouriça portuguesa em noite de consoada. Os contos de Natal focam este alheamento: Charles Dickens, a menina dos fósforos, Miguel Torga.

Na noite de Natal, o velho pedinte Garrinchas volta à terra, mas o nevão e a distância concorrem para que não chegue ao destino. Procura abrigo numa capela. “Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe (...) E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira. Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de São José” (Miguel Torga, Natal, Novos Contos da Montanha, 1944). No Natal, o divino aproxima-se do humano.


Professor do Dept. Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da UMinho
Investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS)