Da origem ao fim do mundo. Uma viagem pelos textos antigos à boleia de António de Freitas

28-01-2020 | Daniel Vieira da Silva

Além de investigador da UMinho, é consultor do Museu Calouste Gulbenkian e integra a equipa do projeto de escavação arqueológica de Tel Burna (Israel)

No "Workshop de Escrita Cuneiforme e Arte da Mesopotâmia", no Museu Gulbenkian, em Lisboa

Ao longo do seu percurso, António de Freitas continua a aprender, mas também a ensinar

Participou na iniciativa "O Melhor Estudante" do ensino secundário na UMinho, em dezembro, explicando as escritas hieroglíficas e cuneiforme e como escrever números babilónicos numa tabuinha de argila

O seu livro "Os Deuses e a Origem do Mundo" foi editado em 2015 pela Quetzal

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Investigador do CEHUM tem um percurso académico transversal e viaja no tempo através de leituras e análises de textos antigos.




António de Freitas, investigador do Centro de Estudos Humanísticos da UMinho (CEHUM), é sinónimo de pluralidade. De conhecimento, de investigação, de transversalidade e sede por encontrar a origem do que estuda. Vamos para trás” na história – até porque a expressão encaixa no seu perfil –, recuando até 1986 e à Venezuela, donde é natural e se licenciou em Matemática, na Universidade Simón Bolivar. Daí passou aos estudos de pós-graduação em Lógica Medieval no Instituto Warburg da Universidade de Londres, no Reino Unido. Estudar a lógica é um aprofundar da matemática”, diz em entrevista ao NÓS. Nesse período escreveu a sua tese de doutoramento sobre a origem do pensamento filosófico grego e a sua relação com o Oriente Próximo, especialmente com os hititas. Fez estudos avançados de línguas e culturas na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres e de grego clássico na Universidade de Cambridge.

Podemos apelidar António de Freitas de especialista em línguas do Oriente Próximo, acádico, outras línguas semitas, sumério e em escrita cuneiforme, além de reconhecermos o seu vasto conhecimento em línguas indo-europeias como o hitita, sânscrito e grego. Aos 55 anos, tem sido professor de matemática, lógica, filosofia e linguística indo-europeia em diversas universidades portuguesas e estrangeiras. E se a isto acrescentarmos projetos de escavação em Israel e o cargo de consultor científico do Museu Calouste Gulbenkian encontramos um perfil único, bastante transdisciplinar e que reflete aquilo que é na sua essência: um arqueólogo do pensamento. Já tem um livro editado em Portugal e vai a caminho do segundo. Primeiro falou-nos de "Os Deuses e a Origem do Mundo” e agora propõe-se a analisar relatos do fim do mundo em textos antigos.


 
No seu próximo trabalho propõe-se a analisar textos antigos, compilados após o seu primeiro livro, e que serão analisados sob a perspetiva das várias áreas do conhecimento que foi agregando ao longo do seu percurso.
Sim. O livro já publicado em 2015 pela Quetzal finaliza uma primeira etapa da minha investigação, que se originou durante o doutoramento. Este trabalho é uma espécie de spin-off da tese de doutoramento, dedicada à origem do pensamento filosófico grego. Esse tema levou ao estudo das cosmogonias sobre a origem do universo nos gregos. Foi aí que comecei a estudar textos antigos, do Oriente Próximo, a cultura hitita, a Mesopotâmia em geral, incluindo, claro está, a Suméria, a Assíria e a Babilónia.  Por uma questão linguística tive de aprender a maior parte dessas línguas e também o sânscrito e o védico, que são línguas indo-europeias. Tudo isto foi dando uma coleção de textos que achei interessante de publicar como uma antologia, somando-lhe os meus comentários. Fiz uma proposta à editora, que aceitou. Já nessa altura comecei a pensar num livro semelhante, mas com textos antigos sobre o fim do mundo.
 
Esse trabalho de recolha já está feito ou propõe-se a fazer análise de outros?
Já tenho praticamente definido o corpo de textos a analisar. Digo praticamente porque alguns textos escolhidos podem encaminhar-me para outros. Irei analisar os livros de Enoch, relatos mesopotâmicos do dilúvio, incluindo a recente tabuinha publicada pelo British Museum, textos hurrita-hititas sobre o fim do mundo e um apêndice sobre o dilúvio em textos pré-colombianos e, obviamente, o texto da nossa cultura sobre o fim do mundo, que é o Apocalipse de São João”. Esse é um texto tão representativo que a palavra apocalipse, que significa revelação, praticamente passa a significar fim do mundo” e grande desastre”.
 
Considera que a forma como a História foi contada e tal como qual a conhecemos acaba por influenciar a forma como vivemos?
Todas estas teorias e textos sobre o fim do mundo comportam uma filosofia da História. Em geral, tal como a entendemos no Ocidente, é uma filosofia linear, isto é, tem um começo e um fim. A linearidade da História é uma novidade bíblica, da cultura judaico-cristã. Nesse sentido, obviamente que influencia a forma de ver e interpretar a História. Nos povos do Oriente, por exemplo na Índia, a ideia é que a História é cíclica, ou seja, repete-se como padrão. São filosofias que diferem de cultura para cultura.
 
Nas mais variadas áreas em que estudou, houve momentos em que se surpreendeu com o que foi descobrindo nos textos?
Há muitas coisas que me surpreendem e, por exemplo, a cultura e os mitos hititas têm textos que direcionam para o fim do mundo”. Mas depois, por intervenção de algum Deus ou cerimónia, a situação reverte-se e a história continua. Esse é um dos exemplos que me tem surpreendido. Parece que o fim do mundo está a chegar, mas, na verdade, não acaba. No Apocalipse de São João” também parece que a grande desgraça vai acontecer no fim e, na verdade, tudo acaba bem, com uma nova criação da Terra e do céu, onde todos vão viver felizes. Parece que há uma resistência do Homem em aceitar que a história vai acabar.
 


  “Sinto-me confortável com a interdisciplinaridade do CEHUM”
 
  Como tem sido a sua ligação à UMinho e com o CEHUM?
  Fiz o pós-doutoramento no CEHUM e, no ano passado, ganhei um lugar de investigador. O CEHUM não se dedica
  apenas a uma área e, por isso, sinto-me bem e confortável. Tem várias áreas de conhecimento e muitas pessoas a
  trabalhar, logo acabam por ser interdisciplinares e transdisciplinares. É precisamente isso que me faz sentir muito
  confortável, no CEHUM tenho sido apoiado no meu trabalho.
  


Arqueólogo do pensamento

Foi fácil chegar aos textos antigos que tem analisado?
Normalmente, os que estão escritos em cuneiforme são tabuinhas de argila, que estão copiadas, e tenho acesso a edições que já estão feitas ou mesmo à cópia da tabuinha. A partir daí faço a tradução, diretamente do origem, para evitar traduzir de uma tradução. É aí que encaixa a minha busca incansável pelas línguas. A única forma de a pessoa entender o que está escrito num texto é conhecer bem a língua. Na altura em fiz a tese de doutoramento já sabia grego e latim, mas depois dediquei-me durante três anos a estudar a língua hitita e acádia. Há formas verbais e estruturas que nem existem atualmente, por isso só estudando o texto diretamente conseguimos aproximar-nos do significado original do mesmo.

Vou para trás” é uma expressão que utiliza de forma recorrente nos seus trabalhos. É uma sede em descobrir a origem do que estuda?
Se há uma frase que pode definir o meu percurso académico, é essa. Licenciei-me em Matemática, que me levou à Lógica, os fundamentos da Matemática, e isso levou-me à Lógica Medieval. Daí, fui parar a Aristóteles, andando para trás no tempo e aprofundando, cada vez mais, qual a origem de certos textos e certo tipo de pensamento. Há quem diga que eu faço arqueologia do pensamento, uma frase usada por Michel Foucault e com a qual me identifico…
 
…Mas como nasce e cresce este seu interesse por diversas áreas de conhecimento?
Há uma necessidade dentro de mim de aprofundar o conhecimento e ir às suas origens. Porque a cultura não é algo que possamos dividir em bocados. Se eu quero saber porque uma cultura desenvolve uma ideia em detrimento de outra, tenho de conhecer essa mesma cultura, a sua filosofia, a sua língua e a sua história. Para mim é uma necessidade imposta… é estudar estas áreas diversas que acabam por estar ligadas entre si.
 
Existe alguma área onde veja ser necessário intensificar o seu conhecimento?
[risos] Essa é uma boa questão! Neste momento, para escrever o próximo livro, já tenho praticamente todas as ferramentas necessárias. Isso não significa que não possam aparecer outras coisas que me obriguem a estudar outros campos. Para mim, o conhecimento, o estudar, o investigar são uma espécie de desafio que me poderá exigir mais. E se me exigir, a única forma de dar resposta é continuar a trabalhar e a aprender coisas novas.
 
E para o futuro, qual será o seu próximo passo?
Sou membro de uma equipa de escavação arqueológica em Tel Burna (Israel) que está a produzir um trabalho interessante. Estou a fazer a leitura dos artefactos encontrados e o estudo de selos cilíndricos, inscrições e interpretação dos achados. Esse trabalho continuará por muitos anos, uma vez que encontramos sempre mais informação nas escavações que fazemos. Tenho também a ideia de adicionar textos, assim como de expandir os já recolhidos para Os Deuses e a origem do Mundo”. E tenho ainda um projeto sobre a conceção do tempo nas culturas antigas; ainda assim, apenas começarei a estudar este tema depois de terminar os que tenho agora em mãos.