A promessa do Natal Digital

18-12-2020

Pedro Rodrigues Costa

Os meus votos vão para uma ideia de futuro mais sensível, ajustado e equilibrado, tanto no combate às pandemias virais como nas pandemias de exclusão social. Que se cumpra primeiro o acesso alargado a bens de primeira necessidade, a igualdade de oportunidades e um maior número de ações sobre os que nada têm. Depois poderemos falar de Natal Digital.
 



Natal: nascimento, natividade, família. Celebra-se Cristo, mas também, e sobretudo, as crianças e os sonhos. Em 2020, esta época surge-nos numa contingência muito própria: ano de pandemia. É sugerido que se faça da ceia um almoço, ou então que se digitalize o Natal de modo a evitar fisicalidades, impedindo a propagação do Sars-Cov-2.

Mas a expressão “Digitalizar o Natal” é problemática. Como digitalizar uma celebração que pretende, precisamente, a reunião física da família e das crianças? Como digitalizar uma simbologia que remete para o corpo, como o abraço e a partilha física do espaço? Como fazer cumprir uma ceia de Natal, reunião de partilha física, apenas com mediação ecrãnica, sem aromas, sem olhos-nos-olhos, sem sabores partilhados, sem toques entre quem pretende celebrar, corporalmente, mais um ciclo temporal?

Além disso, digitalizar o Natal é, ainda, uma impossibilidade. Duas em cada três crianças/adolescentes entre os 3 e os 17 anos (cerca de 1,3 mil milhões de meninas e meninos) não podem, pois não possuem qualquer conexão à internet (UNICEF/União Internacional de Telecomunicações). Pelas mesmas razões, também não o podem fazer os 15,5% dos agregados familiares em Portugal (INE, 2020). E entre os 20% de portugueses com menores rendimentos, um em cada três (33,1%) também não. Para todos estes, se o Natal dependesse do digital, simplesmente não existiria.
 
Sensibilidade social foi um dos traços de Cristo. Cuidar do agir de modo a não prejudicar desfavorecidos, mas com lógica. Ora, o longo período do “fique em casa” não tem sido sensível com os desfavorecidos pelo modelo social erguido. Se os rendimentos, que são a base da estrutura socioeconómica atual, provêm maioritariamente de tarefas físicas, “fora de casa”, como se pode “ficar em casa”? Como imobilizar de repente aquilo que tanto se pediu para se acelerar? Como suspender produção-rendimentos-consumo se este é o modelo que segura as atuais democracias? Onde está a responsabilidade e a sensibilidade social dos governos que habitualmente mandam “sair de casa” e aqui exigem um recolher que sabem que vai matar rendimentos e com isso famílias inteiras? Se o Natal é a celebração da Família, este não será com certeza um Natal para todas as famílias.  
 
Entre os portugueses empregados, apenas 31,1% ficou em teletrabalho (INE, 2020). Os restantes, quase 70%, prosseguiram fisicamente. Ainda assim, foram mais de 100 mil os empregos perdidos. O problema é este: a mesma “saúde”, que depende do afastamento aos vírus, também depende dos rendimentos do trabalho. Sem esses não nos nutrimos; os sistemas imunitários tornam-se insuficientes; desenvolvem-se dívidas que se tornam problemas, sociais e mentais. Além disso, não é lógico que se use o corpo diariamente no trabalho e que, ao mesmo tempo, não se use o mesmo para celebrar, por uma vez apenas, a família, as crianças e os sonhos. Se o digital prometia maior democratização e acesso, deveria ser mais povoado pelo espírito natalício do que aquilo que se transformou.

Com o crescimento do número de ecrãs por metro quadrado – do ecrã-cinema ao ecrã-TV, do ecrã-computador ao ecrã-smartphone ligado às redes – iniciou-se um processo global de tribalização. Tribos unidas por emoções e imaginários comuns vividos num ecrã. Todavia, o que se ganhou a aceder a novos imaginários perdeu-se em criação e em comunidade. Nunca como hoje, a par deste crescendo tribal em torno de séries, filmes ou grupos de opiniões nas redes digitais, excluímos e expulsamos tanto o Outro. Nunca, como hoje, fomos tão agressivos em conversações escritas para pessoas que não conhecemos, só porque estão fora da nossa tribo emocional e opinativa. Nunca, como hoje, fomos tão pouco solidários, remetendo o que resta dessa para uma simples partilha ou uma mera assinatura digital, que pouco ou nada trazem de benéfico. O Natal que o digital prometia não se está a cumprir.
 
Assim, os meus votos neste Natal vão para uma ideia de futuro mais sensível, ajustado e equilibrado, tanto no combate às pandemias virais como nas pandemias de exclusão que continuam a compor a paisagem social. Para isso, que se cumpra primeiro o acesso alargado a bens de primeira necessidade, a igualdade de oportunidades e um maior número de ações sobre os que nada têm. Depois poderemos falar de Natal Digital.  


Sociólogo e investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UMinho