A China está a reposicionar-se

29-05-2020 | Nuno Passos

Há uma guerra silenciosa entre o “America first” de Donald Trump e o nebuloso império de Xin Jiping (foto: Kevin Lamarque, dezembro de 2019)

Paulo Duarte é professor convidado do Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública da Escola de Economia e Gestão da UMinho e investigador de pós-doutoramento no seu Centro de Investigação em Ciência Política (CICP)

É autor dos livros “Metamorfoses no poder” (2014), “La nouvelle route de la soie” (2017) e “The belt and road initiative” (2019), entre outros

Falar da China é falar de blocos político-económicos: Oriente/Ocidente, democracia/ditadura, sobreprodução/ambiente (foto: Alma de Viajante)

Operários em fábrica na cidade de Wuhan, epicentro da pandemia na China, voltam a almoçar em grupo, respeitando a distância de 1.5 metros (foto: Getty Images)

A Nova Rota da Seda chinesa por mar e terra (ilustração: Xinhua/AmCham Shanghai)

O país mais populoso do mundo é muito diverso no seu vasto território

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Paulo Duarte

Ser a potência nº 1 é uma questão de tempo, pois esta civilização milenar tem sabido aguardar a sua hora, considera o professor da Escola de Economia e Gestão. Pequim está a alargar a sua influência económica e ideológica, mas "necessita de repensar o soft power".


A China precisa de “salvar a face” e “aprender a lição” devido à pandemia do novo coronavírus, que foi identificado no fim de 2019 naquele país e já infetou quase seis milhões de pessoas no mundo. Quem o diz é Paulo Duarte, docente na Escola de Economia e Gestão da UMinho e especialista na Nova Rota da Seda chinesa (Belt and Road Initiative). “Ao longo da História houve casos graves de saúde pública originados na China; só nos últimos 20 anos foi a gripe das aves, a síndrome respiratória aguda, o leite contaminado e, agora, a covid-19”, enumera. O especialista e autor do primeiro livro em português sobre a "Faixa e Rota chinesa" realça que a China não pode continuar a permitir a promiscuidade entre animais e pessoas. “A ‘fábrica do mundo’ também tem que se empenhar em matéria de direitos humanos, laborais, autorais, de igualdade comercial, de transparência, de humanidade”, destaca.
 
O Governo de Xi Jinping está assim apostado em “salvar a face, é uma questão de honra”, ou seja, ser tratado “de igual para igual”, sustenta Paulo Duarte. Os chineses nunca libertaram, como hoje, tanta informação sobre a realidade da sua saúde”, continua o colaborador do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da UMinho. Por outro lado, “a China foi a primeira a fazer hospitais em poucos dias, a ter apps e drones para rastrear infetados, robôs a entregar comida a pacientes e veio até em socorro de Itália e de países rivais do ponto de vista comercial”. O docente admite que estas ações de Xi Jiping se alicerçam internamente no seu carisma – similar ao dos antecessores Deng Xiaoping e Mao Tsé-Tung –, bem como na sociedade coletivista e no vigor do principal partido chinês, nas últimas décadas.
 
Paulo Duarte considera que o Ocidente também precisa de tirar ilações da presente pandemia e cooperar mais: “Esta ‘pausa’ obriga a repensar a nossa vida acelerada, a guerra económica, o sistema de saúde de países como os EUA, a solidariedade Norte/Sul e a filosofia do teletrabalho, da televigilância e das cibermáquinas”, nota. O investigador critica igualmente a narrativa do Presidente dos EUA, que tem acumulado posições anticientíficas, enquanto se queixa do “vírus chinês” e da Organização Mundial de Saúde (OMS) alegadamente a favor de Pequim. “É mera desculpa. Donald Trump acordou tarde, achou que o vírus só afetaria alguns, mas já matou mais de 100 mil norte-americanos”, justifica.


O vírus da liberdade
 
O professor reconhece que crises como a atual são favoráveis a Estados e líderes fortes. Em paralelo, várias “teorias da conspiração” na geopolítica resumem-se à luta para ser a potência hegemónica no planeta, como ocorreu entre EUA e União Soviética. Porém, Paulo Duarte crê que a China ainda não está preparada para superar Washington nos níveis económico, militar (é uma potência nuclear de segunda classe), político (falta-lhe capacidade de atração global) e ideológico (precisa de melhorar a capacidade de projetar ideias e valores). Aliás, nas manifestações em Hong Kong, no outono de 2019, agitaram-se bandeiras dos EUA, denotando a dificuldade de Pequim se impor ideologicamente. “O vírus da liberdade é o seu maior combate, não o coronavírus”, metaforiza Paulo Duarte. Porém, a pátria que inventou a escrita e a roda tem uma visão a longo prazo e não sofre com a impaciência democrática de mandatos curtos. O centenário da Revolução Cultural Chinesa, em 2066, é lido como marco para chegar a potência nº 1. Mas os EUA permanecem fortes e também se aproximaram de países asiáticos como a Índia.
 
Apesar dos muitos problemas internos, a China tenta “acalmar o mundo” contra a sinofobia, sublinha o investigador da UMinho. A principal estratégia é apoiar os países sobre-endividados, que abdicam, assim, de parte da sua soberania. Como? Atribuir créditos a longo prazo, comprar empresas-chave e lançar infraestruturas. São contratadas, inclusive, empresas chinesas para nesses países erguer desde estradas a estádios, levando a que o dinheiro permaneça sempre nas mãos da China. Esta ação está a atingir territórios tradicionalmente pró-EUA. “Na América do Sul, a China vai investir em mais de 150 infraestruturas, como uma central nuclear na Argentina, país que deve receber também uma centena de Institutos Confúcio e outras entidades chinesas”, ilustra Paulo Duarte. Ou seja, a par da economia, a cultura é outra porta de entrada. Para esse efeito, veicula-se a mensagem do pensador Confúcio (551-479 a.C.), que evoca a moralidade, a justiça e a sinceridade. “Se, por um lado, essa mensagem devolve aos chineses algo que já tinham dentro deles, a nível externo combate-se os resultados nefastos de uma ocidentalização; é um novo modo de estar no mundo que se tenta enraizar”, clarifica o politólogo. O país mais populoso do mundo está consciente de que o dinheiro não compra tudo, embora seja um ator tardio nestas iniciativas de soft power, declara.
 
Além disso, Xi Jiping tenta "colonizar" organizações internacionais, como é acusado pelos EUA e pela Alemanha no caso da OMS. Para Paulo Duarte, “é normal” quando uma potência cresce utilizar este tipo de mecanismos para “ganhar músculo”. No caso do Banco Mundial, a China não viu o seu poder de voto aumentado. Por isso, adianta o professor, criou o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AAIB), o qual foi alvo, curiosamente, da adesão de vários países conotados como leais a Washington. Essa “é uma ameaça” à hegemonia do dólar e das coligações ocidentais. Em paralelo, o Estado chinês propôs à União Internacional das Telecomunicações o “Novo IP”, para cada país controlar a sua Internet, em vez de serem as multinacionais. “Quer-se confinar a China a um canto, mas a História é cíclica, os impérios não duram sempre”, vinca o cientista do CICP, citando a atualidade do “choque de civilizações” profetizado pelo académico Samuel Huntington. O planeta dispõe de recursos escassos e a China é dos que mais necessita de os explorar. “Está a produzir alimentos para si noutros países e veremos se Ártico e Antártida continuam protegidos de perfurações”, sublinha.

  
A Nova Rota da Seda chinesa por mar e terra (ilustração: AmCham Shanghai)
A Nova Rota da Seda chinesa (Belt and Road Initiative) por mar e terra



Uma réplica da sociedade orwelliana
 
A China é “uma réplica em construção da sociedade orwelliana", afirma Paulo Duarte, aludindo ao conhecido livro “1984”. Por exemplo, impede a liberdade de expressão nas redes sociais, impede a entrada de repórteres estrangeiros na região de Xinjiang e noutras, ignora leis laborais internacionais, persegue académicos em Hong Kong. “Tem a pior das censuras incorporada em si: a pessoa sabe de antemão o que pode dizer ou fazer”, sintetiza. O que hoje muda é um sistema de pontuação social, que beneficia o “bom cidadão”, ao permitir-lhe ter desconto na tarifa de luz, perfil melhorado em sites de namoro (há muitos mais homens do que mulheres na China), melhor acesso à universidade e ao emprego ou ainda a hipótese de viajar.

A classe média chinesa que hoje viaja por todo o mundo já é superior, em número, à população dos EUA: “Compra ‘tudo’, contacta com ventos de liberdade, mas, paradoxalmente ao regressar ao seu país, a sua mentalidade mudou, algo que pode ser um tiro nos pés do regime”, esclarece. O docente partilha do entendimento do investigador Andrew Nathan de que as ditaduras não são derrubadas por forças exteriores, elas caem por si próprias. Por sua vez, o “milagre económico” chinês teve um impacto ambiental severo na pátria do dragão. Em vinte anos desapareceram 28 mil rios. Hoje morrem, por ano, cerca de 400 mil chineses que bebem água contaminada e apenas 7% das terras são aráveis devido à forte poluição.
 
Paulo Duarte lembra, em complemento, que os EUA também beliscam os direitos ambientais e os direitos humanos. Mas, por vezes, são “subtis”. Se analisarmos o meio online, entidades privadas estado-unidenses como Google, Amazon ou Facebook controlam o acesso, a pesquisa e a oferta e obtêm dados dos cidadãos. Mas a chinesa Huawei deve superar numa década a tecnologia ocidental e ter pacotes mais baratos para o consumidor, o que pode abalar a prazo a intelligence e economia dos EUA e da União Europeia" (UE), explica. A digitalpolitik é já uma ameaça neototalitária.
 

 
Portugal não pode agradar a “dois senhores”
 
A UE tem sido vista como um “fiel da balança” entre Washington e Pequim. Portugal é um dos 12 fundadores da NATO, a aliança militar coletiva entre países europeus e norte-americanos, fruto da antiga “divisão do mundo” entre o bloco dos EUA e o da URSS. Nos últimos anos, a administração Trump exacerbou a insatisfação europeia face aos EUA, que abandonaram iniciativas multilaterais relevantes como o acordo de Paris, a UNESCO e o acordo nuclear (para o Irão). Aliás, exigem mais contribuição europeia na NATO, não consultaram os parceiros sobre a retirada de tropas na Síria ou sobre o ataque a Qasem Soleimani no Iraque, queixaram-se de ingerência diplomática, impuseram tarifas comerciais à UE e ignoraram uma ação desta, “Coronavirus Global Response”, que visa cativar fundos para desenvolver uma vacina.
 
O investigador da UMinho assume que Portugal não pode agradar ao mesmo tempo a dois senhores” (leia-se: China versus EUA). Mais do que o porto de Sines, é a ilha Terceira, nos Açores, que tem recentrado a negociação, pelo seu peso geoestratégico entre as Américas e a faixa euroasiática. Aí está a base aérea das Lajes, que os militares dos EUA têm vindo a abandonar gradualmente, e aventa-se a construção de um porto de águas profundas na vizinha praia da Vitória. “A China tem muito interesse em consubstanciar esta ‘parceria azul’ e a sua Rota da Seda Marítima do Século XXI. Só falta à China estar no Atlântico Norte”, contextualiza Paulo Duarte. O investigador assinala que já houve três “escalas técnicas” nas Lajes com governantes portugueses e chineses e afiança que Lisboa não tomou uma postura mais pragmática devido aos compromissos com a NATO. “Pela primeira vez, vivemos confrontados com a incerteza do Ocidente”, sugere.



Nota biográfica
 
Nascido em Lisboa há 36 anos, Paulo Duarte é professor das universidades do Minho, Coimbra, Lusófona do Porto e pós-doutorando no CICP da UMinho. Fez a licenciatura em Comunicação Social e Cultural pela Universidade Católica Portuguesa e o mestrado e doutoramento em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), incluindo períodos de pesquisa de campo na Universidade da Ásia Central (Cazaquistão, Quirguistão) e no Instituto Suleimenov (Tajiquistão). Foi ainda bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e investigador-convidado na National Chengchi University (Taiwan), bem como da Universidade Normal de Pequim (China) e do Ministério do Comércio da China. Foi igualmente editor do ELA Journal e autor dos livros Metamorfoses no poder (2014, prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa), Pax sinica (2017) ou La nouvelle route de la soie chinoise et l’Asie centrale (2017). A sua obra mais recente é The belt and road initiative - international perspectives on an old archetype of a new development model (2020), em coautoria com Francisco Leandro. Além disso, é membro do Centro de Estudos Africanos, Asiáticos e Latino-Americanos, do Centro de Empreendedorismo e Inovação do ISCTE, do Observatório da China em Portugal, da Fundação Amigos da Nova Rota da Seda e da Liga de Amizade Portugal-China.