As epidemias são frequentes na História, às vezes é que nos esquecemos

31-03-2020 | Nuno Passos

As epidemias ajudaram a Europa a dominar as Américas no século XVI, pois os locais não estavam a imunes a doenças do "velho mundo", mas nos barcos também veio para a Europa a pior estirpe de sífilis, por exemplo

Isabel dos Guimarães Sá

Pedro Rodrigues Costa

Antero Ferreira e Célia Oliveira

Ilustração sobre a peste negra (foto: Ukrainiawall.com)

Em muitas epidemias, as ruas ficavam pejadas de corpos (ilustração: theonion.com)

Soldados com gripe espanhola, tratados numa enfermaria de Camp Funston, Kansas, nos EUA (foto: Otis Historical Archives)

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Rápidas e fatais, testam a medicina e debilidades da higiene, alimentação, rotina, mobilidade e ambição humana. Tendem a ser mais espaçadas no tempo, mas globais, nota a historiadora Isabel Sá.




Lepra, cólera, tifo, sífilis, febre amarela, varíola, bubónica, coronavírus... A frequência das chamadas “pestes” é cíclica, embora tenha reduzido a partir do século XX, mas o seu impacto é cada vez mais mundial. “Apesar do progresso da ciência e do conhecimento acumulado, lidamos hoje com um novo vírus, mas as epidemias têm sido parte da história da humanidade e, às vezes, uma noção superficial do tempo leva-nos a pensar que acabaram ou que os seus efeitos são menos nocivos do que antes”, refere Isabel dos Guimarães Sá, professora do Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da UMinho.
 
Por exemplo, a chamada gripe espanhola de 1918 terá infetado um quarto da população mundial e dizimado 50 milhões, incluindo dezenas de milhares de portugueses, como os pintores Sousa-Cardoso e Santa-Rita ou os "pastorinhos" Jacinta e Francisco Marto. A revista "Ilustração Portuguesa" brincou de início sobre aquela gripe: "Dali a dias [a pessoa doente] levanta-se fraquíssima, mas liberta da influência de Castela". No Brasil, o escritor Nelson Rodrigues deu outro tom: “Quando se sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. Muitos caíam com a cara enfiada no ralo". Assim mesmo: uma infeção veloz e indiferente a géneros, idades e classes.
 
Os relatos de epidemias remontam pelo menos ao século V a.C., com a febre tifoide a ceifar possivelmente mais de 75 mil vidas em Atenas (Grécia). Aquando do império romano houve outras pragas na Europa, Norte de África e Ásia Ocidental. Na Idade Média, conta Isabel Sá, as autoridades portuguesas isolavam pessoas com lepra longe das cidades. Os municípios tentavam controlar o contágio colocando tapumes nas zonas onde havia infetados, como sucedeu na rua das Taipas, no Porto. “Achava-se que era eficaz, mas na verdade não servia para nada”, nota a investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UMinho.
 


Crises de pânico e violência
 
Mais mortífera foi a peste negra em 1343-53, trazida pelas caravanas da rota da seda, e cuja bactéria era transmitida pelas pulgas dos ratos. “Na altura não se percebia o que causava o contágio, e havia a ideia errada de que era causado pela má qualidade do ar. A população caiu para metade e para um terço em certas zonas, foi uma hecatombe”, situa. A expansão urbana e as rotas comerciais pararam. Quem podia, saía dos centros urbanos, que eram em geral muito sujos. “As pestes criavam pânico, descontrolo, violência e mal-estar nas pessoas, que procuravam culpados e exacerbavam boatos e o ódio pelo ‘estrangeiro interno’, como por exemplo os pobres, mendigos e minorias religiosas”, elucida a historiadora. Em abril de 1506, houve mesmo milhares de judeus e cristãos dizimados pela peste que grassava em Lisboa, estando o rei D. Manuel I e a sua corte ausentes em Tomar. Em 1899, aquando da peste na cidade do Porto, optou-se até por queimar casas das famílias infetadas como medida de desinfeção”, frisa a docente.
 
As epidemias sucederam-se com regularidade. A de 1384 teve o dom de reduzir parte do exército castelhano que cercava Lisboa, mas levou D. Fernando a medidas excecionais para repovoar algumas localidades. Já entre 1833 e 1856, dois surtos de cólera causaram 50 mil mortos e, no ano seguinte, a febre-amarela contagiou um décimo da população na capital, pouco antes de um surto de tifo. Ainda segundo Isabel Sá, algumas figuras régias foram também vitimadas pela peste, como o rei D. Duarte, que tinha providenciado alguns conselhos para as pessoas se protegerem da doença no seu livro “Leal Conselheiro”, e a própria rainha D. Leonor, viúva de D. João II, que Lisbeth Rodrigues apurou na sua tese de doutoramento ter morrido em Alenquer em consequência da peste, quando fugia de Lisboa para as suas terras em Óbidos.
 

 
Liberdade diminui após as epidemias
 
Isabel dos Guimarães Sá realça que a necessidade de proteger as pessoas nos períodos de contágio levou as autoridades a aumentar o controlo sobre elas. Sucede que, quando as epidemias passaram, os poderes dirigentes ficaram fortalecidos e as liberdades das pessoas ficaram reduzidas, não sendo recuperadas. “Hoje há países a avaliar a evolução do coronavírus pelo GPS do telemóvel de cada um. É bom para reconstituirmos cadeias de transmissão, mas convém perceber que a liberdade individual fica ameaçada se esse tipo de práticas ocorrer fora deste contexto específico”, alerta. Após esta pandemia, a investigadora admite que a população tenderá a estar mais atenta a focos epidémicos, à higienização e à vacinação.
 
O contexto atual levou ainda os cidadãos a unirem-se em vez de se afastarem. “Mudámos face ao passado. Antes evitava-se o contacto e cada um ficava à sua sorte, enquanto o covid-19 criou uma onda de solidariedade”, vinca a historiadora. No passado, a violência das epidemias podia ser de tal sorte que as pessoas morriam pelas ruas. Algumas confrarias nasceram na era medieval precisamente para recolher cadáveres nas ruas devido a pestes. Foi o caso das misericórdias na região da Toscânia (Itália), onde muitas destas instituições ainda hoje mantêm um serviço local de ambulâncias nas suas cidades e vilas, que provavelmente transporta as vítimas da presente epidemia para os hospitais, elucida Isabel Sá. Também em Portugal, já em 1581, a Misericórdia do Porto "criou um hospital provisório na antiga Porta do Olival", onde os irmãos faziam turnos para assistir os doentes.
 
Os europeus foram igualmente foco de doenças. Quando o conquistador espanhol Fernando Cortez chegou à América Central em 1519, haveria 15 a 30 milhões de índios e, no final desse século, apenas dois milhões. O sistema imunitário das populações locais não os preparou para diversas doenças do “velho mundo”. "Não sei de nação nenhuma, nem de infiéis, que tenha feito tantos males e crueldades como sofre de cristãos esta pobre gente", escreveu frei Pedro de Córdoba a Castela. Dessa América veio também nos barcos o tipo mais agressivo de sífilis para a Europa.

Em relação ao presente, Pedro Rodrigues Costa, também investigador do CECS, resume que "um minúsculo vírus foi capaz não apenas de suspender o crescimento económico, mas também de imobilizar todo o mundo social, obrigando à dura realidade da reflexão sobre a globalização, sobre a economia, sobre as utopias e sobre a precariedade humana". O sociólogo alerta igualmente para nos precavermos perante conteúdos falsos. "Neste momento histórico em que vivemos sobrexcitados, em que somos notificados e requisitados sobretudo pela via telemática e sob várias formas, as fake news condensam, numa só unidade, o exagero, o fantástico e a mentira lógica, cumprindo a ilusão de informação".
 


 A realidade em Guimarães há um século
 
Antero Ferreira e Célia Oliveira, investigadores na Casa de Sarmento, a unidade diferenciada da UMinho em Guimarães, estudaram o impacto da gripe espanhola no concelho, apoiados por jornais e documentos da época. Indiferente a géneros, idades e classes sociais, e altamente mortífera, a epidemia encheu os hospitais de doentes, habitantes da cidade, mas também das freguesias rurais, que lá chegavam transportados em carros de bois. A equipa hospitalar da Misericórdia, sob grande pressão, pediu aumentos salariais aos provedores, que temeram a rutura de serviço (internamentos, consultas, curativos, medicamentos), pedindo subsídios ao Estado. Muitos doentes foram isolados num hospital provisório criado nas escolas de Santa Luzia.

As autoridades locais, para evitar a concentração de cidadãos, obrigaram ao fecho de casas de espetáculos, escolas e igrejas, à proibição de missas, cortejos fúnebres, feiras e da peregrinação à Penha, ao transporte de cadáveres só após as 20h00, à desinfeção de prédios em contacto com esgotos, à remoção de suínos da cidade e ao envio – por via dos regedores das freguesias – de remessas de pinheiro e eucalipto para queimar nas ruas e largos da urbe. Quando se considerou debelada a epidemia, através da imprensa da época - que pode ser consultada no portal da Casa de Sarmento - avultam os relatos consternados que mostram como a fisionomia da cidade se alterou com o desaparecimento repentino e inesperado de tanta gente.