Pandemia desafia as democracias a provar que continuam a ser modelos de sucesso

29-05-2020 | Pedro Costa

João Cardoso Rosas é professor associado do Departamento de Filosofia do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho e também investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS), em Braga

A medição da temperatura em aeroportos ou na entrada de diversos edifícios tem sido questionada em termos de direitos individuais (foto: Getty Images)

As ferramentas colaborativas de teletrabalho, por vezes improvisadas por pessoas e empresas, poderão vir a generalizar-se e sem garantias de segurança online (foto: S21.com)

Parte da obra "Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo Homem" (1943), de Salvador Dali

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João Cardoso Rosas, do Instituto de Letras e Ciências Humanas, perspetiva os reflexos da situação atípica e como sociedades e Estados se devem reorganizar.




No contexto de uma crise de saúde pública, o NÓS procurou perceber de que forma as sociedades mundiais devem reagir perante o já chamado “novo normal”. A covid-19 trouxe uma postura diferenciada das nações e, à margem dos danos a contabilizar, há resultados sociológicos a avalia, assevera João Cardoso Rosas, autor, investigador, professor do ILCH e especialista em filosofia política, ideologias e teorias políticas.
 

É possível adiantar que sociedade vamos encontrar após esta crise de saúde pública?
Há mudanças sociais antecipáveis, embora apenas em termos hipotéticos e na medida em que correspondem a tendências já verificáveis. O teletrabalho vai com certeza ganhar terreno, na medida em que pode parecer vantajoso tanto para as empresas como para os trabalhadores. O comércio online vai crescer, diminuindo a importância do comércio tradicional. A substituição dos meios de pagamento em espécie por meios eletrónicos será acelerada – e tem múltiplas repercussões porque serve também para expor a informação bancária e a privacidade dos indivíduos.
 
Isso coloca-nos questões como a vigilância eletrónica...
...que tenderá a aperfeiçoar-se nas sociedades. A tendência era já clara sobretudo desde o início deste século e da "guerra ao terrorismo". Câmaras de vigilância, aplicações para acompanhar as deslocações dos cidadãos, vulgarização da colheita de dados biométricos, recurso cada vez maior ao big data... Aquilo que alguns chamam biopolítica, o controlo do corpo e da vida por parte do Estado, está em processo acelerado de aperfeiçoamento e digitalização.
 
E que dias poderemos ter para o ensino e a ciência?
Nas universidades deverá desenvolver-se a tendência para a subvalorização da experiência do campus presencial, parcialmente substituído por processos de e-learning e b-learning. Todos, desde logo docentes e alunos, ficaremos a perder. Creio que isso afetará menos o ensino pré-universitário, no qual as competências a desenvolver, nomeadamente comportamentais, não são suscetíveis de digitalização. Ainda assim, a pandemia reforçará a dependência digital e a virtualização da apreensão do mundo real por parte das novas gerações. O papel da ciência e do aconselhamento científico por parte de experts será reforçado. É certamente importante, para nós, defender a ciência face àqueles que a atacam ou subvalorizam, como é o caso de muitos líderes políticos populistas. No entanto, devemos ter cuidado com a arrogância que por vezes se nota entre os especialistas. Estes devem aconselhar, mas não decidir. Quem decide são os políticos, porque têm de sopesar diferentes considerações – não apenas científicas – e porque gozam da legitimidade democrática de que os experts carecem.
 
A pandemia pode ter relegado para segundo plano questões que estavam no topo da agenda política?
Pelo menos numa primeira fase pós-pandemia, a crise ambiental tenderá a agravar-se, na medida em que não será uma prioridade política. A crise migratória também, uma vez que o aumento dos fluxos por razões económicas será contrabalançado pela maior tendência para o fechamento de fronteiras. Note-se que o sistema internacional vive um momento de contraglobalização e do acentuar dos isolacionismos. Isso dificulta a gestão destas crises globais, tal como dificulta a gestão da própria crise pandémica.


O vírus é pouco letal, a questão é o medo que temos dele e que influencia a política

Que “novo mundo” acha que vamos ter no desconfinamento, no que concerne ao medo social?
O medo social não é novo. É de sempre. Thomas Hobbes, o fundador da filosofia política moderna, considerava que o medo é a nossa paixão fundamental. Mas este medo tem um caráter dúplice e fomenta tendências antagónicas. Por um lado, em estado de natureza gera uma luta de todos contra todos, na medida em que os recursos são escassos e cada ser humano concorre contra todos. Por outro lado, esse mesmo medo impulsiona para a aceitação do Estado político, na medida em que este permite introduzir ordem na sociedade – mitigar o medo geral, por assim dizer, ainda que à custa de algum medo latente face aos detentores do poder soberano e da força que os assiste.
 
Isto constitui em si uma mudança social substancial na relação dos cidadãos com o Estado...
No confinamento, os Estados tiveram de atuar não tanto por razões estritamente sanitárias, como se pensa em geral, mas porque havia um enorme risco de entropia social. A título de exemplo, no contexto letivo, os alunos – e também os docentes – começaram a faltar a atividades presenciais antes mesmo do encerramento das escolas. Isto é, a tendência anómica para a oposição face aos outros já se manifestava. Ao decretar o estado de emergência e com as medidas de confinamento tomadas, os Estados conseguiram, como só eles podem fazer, controlar o medo geral e assumir-se como garantes da ordem. No desconfinamento, os Estados terão que ser igualmente ou ainda mais enérgicos para convencer os cidadãos a não terem medo dos outros. Em certos casos terão mesmo de forçar um pouco o retomar das atividades, pois os cidadãos estão ainda divididos entre o medo da miséria económica e o medo da morte. Em todo o caso, a questão essencial não é o vírus. Este vírus é perigoso, mas pouco letal, como notou a cientista Maria Manuel Mota. O problema é o modo como o encaramos. A questão essencial está no plano da nossa subjetividade, onde mora o medo. 
 
Que limites e fronteiras deverão ser colocados aos Estados, para que o controlo possível se mantenha? 
Essa questão é central para o nosso futuro. Sabemos que a crise teve uma origem sanitária e que terá repercussões económicas avassaladoras. No entanto, as repercussões mais definidoras do futuro coletivo não são ao nível sanitário e nem mesmo na economia: são de natureza política. Alguns regimes autocráticos, como o chinês, mostraram que, apesar da sua falta de transparência, conseguem, mediante a supressão ou o forte condicionamento de liberdades, controlar uma pandemia. Os regimes democráticos têm que estar à altura deste desafio se quiserem continuar a ser vistos como um modelo de sucesso. Mas vários deles experimentaram dificuldades sérias, como o Reino Unido, o modelo da democracia parlamentar... O contexto político internacional é difícil. Estamos longe da euforia democrática da última década do século XX e da crença no trunfo universal dos modelos democráticos. Existe uma verdadeira concorrência entre os regimes democráticos e os regimes autocráticos. Mas a verdade é que se alguns conseguiram controlar a epidemia, outros há – como a Rússia – que a não souberam gerir. Nas democracias há também muitos bons exemplos. O problema maior é as lideranças populistas, da Hungria ao Brasil, e a nostalgia por uma ordem autocrática.
 
Estamos a falar de um desafio à manutenção dos regimes democráticos?
A concorrência entre a democracia e a autocracia cruza-se com a mudança geoestratégica, há muito prevista mas só agora confirmada, da centralidade do Atlântico para a do Pacífico. Como notou recentemente o filósofo Byung-Chul Han, os países asiáticos, incluindo os democráticos como a Coreia do Sul, mostraram estar culturalmente mais bem preparados, porque o contexto confucionista e das religiões/sabedorias orientais é mais propício a comportamentos comunitariamente valorizados e menos sujeito às tensões hiperindividualistas. O grande desafio para as democracias ocidentais como a nossa consiste em mostrar que é possível combater a pandemia canalizando o medo em sentido positivo, de modo a gerar ordem em vez de entropia, ainda que recorrendo por vezes a estados de exceção constitucionalmente previstos, mas sem prolongá-los indefinidamente e mantendo as liberdades e os direitos fundamentais, incluindo o pleno valor dos direitos políticos.