A primeira tese sobre o livro-brinquedo

31-03-2021 | Nuno Passos

Diana Martins é membro do Centro de Investigação em Estados da Criança da UMinho, em Braga

As obras literárias infantis multiplicam-se no mercado e nos mais diversos formatos (foto: Bom Bom Books)

A criança aprende e diverte-se através dos livros e por vezes de forma autónoma (foto: Clube Quindim)

A literatura para a infância é uma constante no quotidiano de Diana Martins

Num momento das provas de doutoramento, realizadas online em maio de 2020

Falou das edições da Majora em "Clássicos da Literatura Infantojuvenil em Forma(to) de Livro-Objeto" (UMinho Editora, 2020)

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Inédito no país, doutoramento de Diana Martins no Instituto de Educação revela o livro que se torna obra de arte, apela à emoção e toque, tem designer narrador e múltiplos formatos e públicos.




A literatura infantil está a viver uma fase dourada, elevando o leitor a coautor e afirmando-se por vezes como “obra de arte” entre a concorrência feroz de suportes visuais e digitais. Quem o diz é Diana Martins, do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) da UMinho e autora da primeira tese de doutoramento sobre o livro-brinquedo em Portugal. A investigadora analisou mais de 300 livros-objeto em português e comparou com a realidade internacional. “As editoras apelam à emocionalização do livro, tal como nos ecrãs”, define. “Nesta sociedade hipermoderna e acelerada, o divertimento e o conhecimento tendem para objetos com forte poder de atração, o que não é mau por si, desde que esses objetos sejam criativos, complementares e ampliem a experiência, isto é, que a forma não supere o conteúdo, que não se limite a uma espetacularização e a uma instrumentalização visual”, acentua.
 
Diana Martins verificou que a oferta mais comum do livro-objeto é em puzzle ou com uma peça destacada, “sugerindo a exploração cúmplice entre mediador/adulto e criança”. Aborda-se amiúde o faz-de-conta, a magia das horas, as profissões e o jogar com a vacina ou o martelo. Nos livros híbridos, “perfil pós-modernista que veio para ficar”, combina-se rosto, olhos e boca em figuras fictícias, por exemplo. “Essa componente lúdica, interativa e humorística é essencial numa fase precoe do crescimento, em que a criança está a aprender a saber-ser e a saber-fazer: explora o simbólico, a fantasia e o conta outra vez”, declara. Isso sucede também nos livros com sons de animais e pequenas melodias ou nos tradicionais livros poético-líricos de rimas e trava-línguas. “Há vários caminhos na leitura e os objetos visuais, sensoriamente sedutores, ajudam na mentalidade mágica dos mais novos e na sua apropriação mais palpável do ‘real’”, considera.
 
A mediação latente, o apelo ao toque, o recetor além da criança, o designer narrador e o sem-fim de formatos formativos e lúdicos mostram como o livro infantil se reinventa. O segredo está sobretudo na parte física do livro e no design, que arrisca áreas como embalagens, teatro ou materiais para idades específicas, como relevos e janelinhas para um uso autónomo. “Perante a sociedade com imensa oferta cultural e imperativos de renovação, criatividade e experiência, estes artefactos procuram ser provocadores”, diz Diana Martins. O livro-brinquedo atrai grandes criadores e a sua sobrevivência - a do livro para a infância em geral, como alguns estudiosos e criadores têm afirmado - passa por ser considerado objeto de culto ou obra de arte, anui. O cariz comercial acentuado daquele produto capta o adulto (o verdadeiro comprador) e ativa no leitor uma exploração material e gráfica única, contínua. Essa simbiose testa ambiguidades e limites entre realidade e ficção. Ou seja, não há uma visão linear e age-se sobre o próprio livro, como os pré-leitores e leitores iniciais em obras para necessidades cognitivas vitais, onde por exemplo se estimula a coordenação motora, como apertar um botão ou fecho.
 
 
Álbum poético foi o ponto de partida
 
Natural de Paços de Ferreira, Diana Maria Martins é licenciada em Design de Comunicação pela Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, mestre em Ilustração pela Escola Superior Artística do Porto (ESAP) em Guimarães e doutorada em Estudos da Criança – ramo Literatura para a Infância pelo UMinho. A sua tese doutoral, “O lugar do livro-brinquedo na infância: arquitetura, (inter)texturas e outros desafios”, foi orientada por Sara Reis da Silva, professora do Instituto de Educação da UMinho, e avaliada com “Muito bom”. A ilustradora leciona no Instituto Politécnico do Cávado e Ave (IPCA) e dá formações na área da educação literária e da literatura para a infância. Tem diversos artigos científicos publicados e ainda trabalhos como o restyling de paragens de autocarro.
 
A autora interessou-se pelo livro-objeto após ter feito, no mestrado, um álbum completo a partir de uma reilustração do poema A Sombra, de Luísa Ducla Soares. “Preocupava-me onde ter o código de barras, que atenção dar à lombada, qual o formato, tipo e gramagem do papel para impressão normal e em serigrafia, como ter a tinta tipo raspadinha ou uma lupa sobre o olho do lobo para ver o que escondia…”, desfia. A intenção era o leitor ser parte ativa na ação.

Num ápice, Diana Martins abraçava a primeira tese sobre a componente material interativa nos estudos literários em Portugal. A sua análise valorizou a teoria de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em "Capitalismo estético na era da globalização” (2014), entre outros autores. No seu estudo concretizou várias tipologias de livros-objeto, um vasto universo editorial de definição desafiante. Em concreto, os sistemas planos (com efeitos de movimento e transformação de imagem, como discos giratórios), os sistemas tridimensionais (pop-ups, livros cenário/teatro), a encadernação atípica (livros acordeão/carrossel, com rodinhas, em boneco articulado e tiras mix & match), a adição de materiais incomuns (desde plástico, pano, pegas para praia/banho/barquinho e focando, não raras vezes, rotinas diárias), os efeitos de ótica (simular o galope, mimetizar o frenesim) e os livros híbridos (mecanismos bi e tridimensionais, cruzando várias técnicas num único volume).
 

Pormenor do livro pop-up “O homem coração de choupo”, de Marco Taylor (2018)
Pormenor do livro pop-up “O homem coração de choupo”, de Marco Taylor (2018)

 

O livro-objeto em três períodos áureos
 
As metamorfoses do livro para a infância surgiram no século XVIII e tiveram vários períodos, evoca Diana Martins. Na era pré-cinematográfica criou-se brinquedos óticos com imagens em movimento e isso chegou ao livro, incluindo rodar peças que tinham som e usar transparências para projetar luz e ver a segunda imagem. Havia ainda livros perfurados, panorâmicos e teatro, sobretudo em Inglaterra, Alemanha, França e EUA, com autores como Dean & Son, Raphaël Tuck e Lothar Meggendorfer.

A I Guerra Mundial fez rarear a produção por faltar papel e mão-de-obra, mas nas décadas de 40 a 70 vingaram livros pop-up e a baixo custo, além de artistas como Louis Giraud, Julian Wehr, Vojtech Kubašta, Bruno Munari e Jan Pienkowski. A partir dos anos 80 passou-se do livro-brinquedo para o livro-artista, visando inovar, embelezar e distrair, tendo elementos gráficos com objetivo interativo. O novo mercado trouxe obras experimentais e enigmáticas, mas também pensou esta literatura num todo, com maior peso da semântica (como o tamanho crescente da folha) e do pendor formativo no jogo de procura e descoberta.
 
 Em Portugal, a editora Majora foi pioneira nas décadas de 40 a 70 do século XX, com relógios na capa manipuláveis para aprender rotinas e os livros-puzzles, associando o prazer da leitura a baixo custo, embora a nível literário fosse por vezes parca. Segundo Diana Martins, ressaíram também a Electroliber, com o disco de vinil na capa, e a Agência Portuguesa de Revistas, com os autores Laura Costa, Gabriel Ferrão ou César Abbott. O uso de rodinhas no livro, as perfurações, a silhueta-recorte, a dobra e o pano foram chegando. Por exemplo, em 1949 veio a coleção “Livro-brinquedo”, que inclui o volume “Pedrito no mundo da fantasia”, composto por um boneco/protagonista de membros manipuláveis, pensado para alterar as suas vestes a cada virar de página.

Outros conteúdos revisitaram contos de fadas e tradicionais, como Hansel e Gretel, com folhas da tradução portuguesa coladas sobre o original checo, como sucede em muitas obras de Vojtech Kubašta então disponibilizadas pela Electroliber. Daí, o país dividiu-se entre o conservadorismo e as novas obras de qualidade de Leonor Praça, Manuela Bacelar e Maria Keil, entre outros. No século XXI aposta-se em originais de jovens talentos nacionais, mas as edições importadas predominam, reeditadas nomeadamente pela Edicare, Caminho, Presença, Orfeu Negro, Bruaá e Kalandraka, como “A largartinha muito comilona” ou “E tu, vês o que eu vejo?”, por exemplo.