Quem precisa de heróis?

31-03-2021

Márcia Oliveira

Heroínas temos muitas. Temos sido todas. Filhas, mães, avós, netas, escritoras e agricultoras, doutoras e analfabetas, artistas e artesãs, ricas e pobres, boas e más. Mulheres.


Há qualquer coisa de etéreo na experiência sensível, sobretudo aquela que nos faz reconhecer um lugar comum no mundo. Ora, sendo a arte, nas suas múltiplas manifestações (verbivocovisual), o espaço por excelência onde as experiências sensíveis mais fortemente se expressam, certo é que é longevo o espaço temporal no qual o lugar comum das mulheres no mundo não fez parte dessa mesma experiência. Seja pelo trauma velado e ainda tão pouco compreendido de habitar um espaço geográfico, simbólico, social, económico e cultural fortemente patriarcal (logo, autoritário e violento ou, no mínimo, abusivo e insensível a todas as outras que têm vindo a ser arredadas das estruturas de poder), seja pela interdição mais ou menos explícita a muitas das dimensões da vida, o facto é que está na arte o traçado das nossas linhas de fuga.

Surgem de todo o lado as mulheres que nos inspiram, que nos guiam e nos transformam. Numa nota mais pessoal, devo dizer que não me parece despiciendo o facto de recordar tão fortemente a voz de uma dessas mulheres na minha vida, Maria Teresa Horta, mulher de palavra escrita, de coragem, de luz. É a sua voz que há muitos anos atrás ouvi transpirar pelo éter da rádio a revelar (e cito de cor) que fala constantemente com as suas mulheres mortas. Jamais me esqueci da candura do timbre e da profundidade da mensagem. Jamais me esqueci do espaço de empatia que Maria Teresa Horta criou para mim naquele instante que se revelou eterno e que sempre me acompanha na minha luta diária enquanto mulher que busca ainda a liberdade e a sua própria voz: porque é em cima nos ombros de tantas que vieram antes de nós que nos erguemos e que nos construímos, tergiversando por entre avanços e recuos.

E se ‘a liberdade é uma luta constante’ como nos lembra Angela Davis, constatação, aliás, absolutamente actual e global, não é menos verdade que a liberdade se joga sobretudo no campo da expressão e da sensibilidade, elemento seminal na construção do ser e da sua identidade. Sem possibilidade de exprimir ou de viver o sensível, vemo-nos também arredadas do campo da coragem. E é esse campo que reivindicamos através do espaço sensível da cultura, vivendo-o e usando de pleno direito. Não é cultura woke, não é politicamente correcto; são outras a ocupar o lugar de fala, são outras a mostrar que sentem e que brilham no escuro como todas essas ‘estrelas’ que vieram antes de nós e ainda hoje nos inspiram. É essa constelação de estrelas maiores que forma o céu que nos protege. Por isso, quem precisa de heróis quando temos tantas heroínas? Heroínas temos muitas. Heroínas temos sido todas. Filhas, mães, avós, netas, escritoras e agricultoras, doutoras e analfabetas, artistas e artesãs, ricas e pobres, boas e más. Mulheres.


Investigadora do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho