Onde anda o princípio da distinção?

31-03-2021

Assunção do Vale Pereira

Na Ucrânia, vive-se uma política de terra queimada e de completo desprezo pelas leis que procuram humanizar a guerra, ou seja, o Direito Internacional Humanitário.


O princípio da distinção é um dos princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário (ramo do Direito Internacional que regula o que são comportamentos lícitos/ilícitos no decurso de conflitos armados). Atualmente está consagrado numa norma que tem por epígrafe Regra fundamental (art. 48.º do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, de 1977), em que se lê: “De forma a assegurar o respeito e a proteção da população civil e dos bens de carácter civil, as Partes no conflito devem sempre fazer a distinção entre população civil e combatentes, assim como entre bens de carácter civil e objetivos militares, devendo, portanto, dirigir as suas operações unicamente contra objetivos militares”.

O que temos assistido na Ucrânia traduz-se em larga medida em violações graves do referido princípio, e, em larga medida, se traduzem em crimes de guerra. Efetivamente, a Rússia tem levado a cabo ataques dirigidos contra civis ou em que parece não ponderar sequer se dos mesmos resultam, ou não, vítimas civis. E isto mesmo tendo presente que nem todos os ataques dirigidos contra civis são ilícitos. Na verdade, a proteção devida aos civis, referida na norma citada (e desenvolvida noutras normas), cessa em relação a civis que estejam a participar diretamente nas hostilidades e enquanto durar essa participação, havendo disso vários exemplos com destaque para os recém chegados "mercenários" (termo não usado em sentido próprio) chechenos e possivelmente sírios (que não têm direito ao estatuto de combatentes) e cuja presença no terreno não augura nada de bom, atento o seu historial. Por outro lado, também não serão ilícitas as perdas de vidas civis decorrentes do ataque a um objetivo militar desde que não sejam excessivas em relação à vantagem militar concreta e direta esperada do ataque.

No entanto, quando assistimos a ataques a um teatro, em Mariupol, com sinalização de que lá se encontravam civis abrigados, à maternidade da mesma cidade, ou a um instituto científico em Kiev (apenas exemplos), não parece poder duvidar-se de que estamos face a ataques dirigidos contra bens que não constituem objetivos militares e nos quais se encontravam civis que acabaram, em larga medida, mortos ou feridos, independentemente das “justificações invocadas”. Aliás, em Mariupol, estamos em crer que a recusa de corredores humanitários que acedam à população que está a ficar sem víveres pode mesmo configurar o crime de guerra de “Provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, nomeadamente, o envio de socorros”, previsto no Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

Por outro lado, têm sido usados meios de guerra ilícitos, como munições de fragmentação (que libertam, a partir do ar, grandes quantidades de submunições explosivas sobre uma área ampla), armas termobáricas (que desencadeiam explosão de temperatura e pressão extremas, com efeitos devastadores para a zona envolvente) ou armas de fósforo (que provocam incêndios e queimaduras a quem se encontre por perto). O facto de não serem dirigidas a um alvo específico torna-as incompatíveis com o princípio da distinção. Na Ucrânia, vive-se uma política de terra queimada e de completo desprezo pelas leis que procuram humanizar a guerra, ou seja, o Direito Internacional Humanitário…


Professora da Escola de Direito da UMinho e investigadora do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação