O emirado árabe veio para ficar no futebol milionário

24-11-2022 | Nuno Passos

Paulo Reis Mourão é professor associado com agregação da Escola de Economia e Gestão da UMinho, em Braga, e membro do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais (NIPE)

Marco Verratti, Kylian Mbappé, Lionel Messi, Neymar e Marquinhos são algumas estrelas do Paris Saint-Germain, que equipa com a referência à companhia aérea nacional catari

O Catar organizou e venceu em 2019 a Taça Asiática, batendo o Japão por 3-1 na sua primeira final do principal torneio de seleções masculinas daquele continente

O circuito de Yas Marina, no país vizinho dos Emirados Árabes Unidos, é o último do Mundial de Fórmula 1 e um símbolo da aposta árabe na elite do desporto

Milhares de bolas de areia do artista alemão Volker-Johannes Trieb foram expostas junto à sede da FIFA em Zurique (Suíça), representando as vidas ceifadas na edificação do Mundial no Catar

A seleção da Alemanha protesta contra o silenciamento imposto pela FIFA, momentos antes de defrontar o Japão, no Mundial do Catar'2022

A principal prova mundial de futebol masculino envolve 32 seleções e um misto de contrastes em 2022. A edição de 2026 será no Canadá, EUA e México, com 48 seleções

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O Catar cresce a influência em vários setores no mundo. Na indústria futebolística, venceu a última Taça Asiática, tem domínio no PSG, patrocina o Barcelona e é o primeiro país islâmico e do Médio Oriente a sediar um Mundial. Para o professor Paulo Reis Mourão, da Escola de Economia e Gestão (EEG) da UMinho, são passos para o estado catari se afirmar a nível internacional e num desporto-rei cada vez mais mercantilista.


Apesar dos avanços, é preciso mais sucessos no relvado, salienta Paulo Reis Mourão. “A península arábica também recebe provas de Fórmula 1 [no Bahrein, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos], mas não é por isso que desenvolve escuderias aí sediadas ou tem pilotos árabes na prova-rainha automobilística”, compara. O futebol é um desporto global e de massas, logo o “Mundial das Arábias” traz maior exposição das virtudes ou dos defeitos do Catar perante os olhos dos outros países, mas também traz um impacto económico muito importante para todos os envolvidos, frisa o académico. “Felizmente, o impacto é hoje relativizado pela consciência dos custos que criar este megaevento implica – idealmente, se fosse descentralizado por vários países evitaria os ritmos desumanos da construção de infraestruturas nos Mundiais dos últimos vinte anos”, considera.
 
Ainda assim, os impactos esperados são discutidos das mais variadas formas. Paulo Reis Mourão lembra que números na boca dos políticos focam empregos e na boca dos promotores valem pelo impacto, um conceito abstrato que, na prática, diz que naquele local circulou mais dinheiro do que habitualmente. Aliás, continua, estimativas moderadas desde o Mundial de Futebol do Japão e Coreia do Sul’2002 antecipavam impactos de 10 mil milhões de euros por cada edição seguinte da prova. A do Brasil’2014 atingiu o triplo, no discurso oficial, regressando-se a menos dos 15 mil milhões no último Rússia’2018.
 
“Já li estimativas, mesmo com a alta da inflação, que Catar’2022 atingiria impactos de 20 mil milhões de euros. Mas ter números redondos como estes é sempre algo espúrio e há dezenas de questões metodológicas...”, devolve o membro do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais (NIPE). E se considerarmos que uma vida humana não tem preço? “Aí, estes megaeventos, e em condições dificilmente sancionadas, são um produto ao pior estilo mercantilista, em que importa a imagem aparente, o entretenimento da competição e o resto fica para quem limpar o salão depois da festa”. O “salão” catari inclui o trabalho forçado de milhares de operários, acusações de esquemas fraudulentos e o risco da prova realizada contra o desempenho/timing habitual dos atletas, dimensões que mostram a fragilidade da economia global, insiste o perito.
 

Pressão internacional
 
E se o “cartão vermelho da dignidade” – agora em riste por adeptos, decisores e marcas de várias geografias – acabar esquecido após este Mundial, tal como na última década desde que foi anunciado, apesar dos alertas de ONG internacionais? “É muito provável que tal aconteça”, assegura Paulo Reis Mourão, “a maioria de nós vai acompanhar os jogos e emocionar-se, é a atitude mais ‘normal’ como espetadores de eventos desportivos, pois raramente boicotamos jogos por acusações de fraude e corrupção que envolvem agentes desportivos, confiando na justiça (dos tribunais) que, muito raramente, julga como provadas as acusações neste domínio”.
 
No entanto, o economista concede que existe uma maior predisposição para certos grupos exprimirem de modo mais ou menos visível o desagrado face a sensibilidades em redor deste Mundial. “Expressões individualizadas de seleções, de jogadores e do público são um elemento de surpresa adicional no torneio, na senda de ações diplomáticas, ambientalistas, feministas, LGBTQI+, entre outras, que o atual cenário de crescente responsabilidade social e de pós-pandemia até parece facilitar”, anui.
 
Para o docente da EEG, enquanto anfitrião, Catar’2022 tem para já um “apedrejamento” mais ecoado do que a Rússia’2018 de Vladimir Putin, o Brasil’2014 de Dilma Rousseff e a Argentina’1978 de Emilio Massera. “O problema de fundo não é o país acolhedor, que amiúde conclui em surdina que ficou a perder com o megaevento”, retoma Paulo Reis Mourão. Então? “O problema é o esquema organizacional, seja a FIFA ou o conjunto de forças invisíveis que aí gravita, continuando Mundial após Mundial a lucrar muito, sem alterações a nível de condições laborais, esquemas fraudulentos, corrupção de adjudicações e, finalmente, do próprio equilíbrio competitivo”, realça o investigador.
 
Isto é, quantas seleções fora do top 10 da FIFA foram aos quartos-de-final dos Mundiais nos últimos 50 anos? Foram menos ainda do que clubes de países fora do top 10 da UEFA terem chegado aos quartos-de-final da Liga dos Campeões. “Isso diz tudo”, define. Contudo, pondera, a beleza do desporto é deixar espaço para a probabilidade mínima de o sonho ser realidade, de jogadores desconhecidos serem memoráveis e de a nossa seleção nos fazer sofrer muito, mas ganhar no fim: “Será caso então para o famoso suspiro depois do apito final e sentir que valeu a pena”.
 




Uma realidade diferente
 
Catar é uma monarquia absoluta do Golfo Pérsico, com uma área similar ao distrito de Beja e com 2.8 milhões de habitantes, sobretudo na capital Doha, famosa pelos arranha-céus futuristas. Está no top 10 dos países mais ricos do mundo, segundo o FMI, sendo o terceiro com maior reserva de gás, que juntamente com o petróleo representa 90% das suas exportações. Na sombra, silencia-se direitos humanos, como a mulheres, homossexuais e migrantes. Para o Mundial de Futebol, o estado construiu um moderno metro com três linhas e 37 estações, além de redes paralelas, que servem oito estádios: o modernizado Khalifa (40.000 lugares) e os novos Lusail (80.000), Al Bayt (60.000), 974, Áhmad bin Ali, Al Janoub, Al Thumama e Education City (estes cinco com 40.000 lugares cada). Foram desenhados por ateliês ímpares, de Norman Foster a Zaha Hadid.
 
Muita água corre num oásis pouco pacífico. Joseph Blatter, presidente da FIFA em 1995-2012, admitiu este mês que foi um erro o Mundial ser num país “demasiado pequeno”. Segundo a imprensa, a escolha terá sido por influência de Michel Platini, líder da UEFA em 2007-2015, e a pedido de Nicholas Sarkozy, então Presidente da França, a qual vendeu depois um grande volume de aviões caças ao Catar por 14.6 mil milhões de dólares. Também muitos dígitos é o que recebe o ex-capitão da seleção inglesa David Beckham para ser a cara do Mundial. São 177 milhões de euros em dez anos. Um valor bem longe dos cerca de 200 euros mensais de migrantes que ergueram os estádios com sangue, suor e lágrimas, sendo retratados no filme "The Workers Cup", na nova série da Netflix "FIFA: Futebol, Dinheiro e Poder?" e mesmo homenageados no equipamento alternativo que a seleção da Dinamarca utiliza no torneio.
 
As manifestações públicas contra os alegados atropelos e os bastidores da prova surgem a várias escalas. Estrelas da música recusaram o convite para estar no evento, tal como diversos chefes de Estado, federações, acompanhantes de seleções, repórteres e marcas. À distância, muitas cidades não têm fan zones com ecrãs gigantes, claques alemãs pedem o boicote em tarjas e várias personalidades rejeitam ver os jogos. Por exemplo, o ex-futebolista francês Eric Cantona alegou aos media que não há paixão do futebol no Catar e o evento é uma aberração ecológica, com ar condicionado em estádios no meio do deserto, construídos à custa de milhares de operários mortos e só para entreter plateias num mês.
 



  Curiosidades

  - O 1º mundial num país islâmico e do Médio Oriente.
  - O 22º mundial de futebol masculino... e no ano 2022.
  - O Brasil é a única seleção totalista nesses mundiais.
  - E Portugal faz o 8º mundial, sendo o 6º consecutivo.
  - CR7 poderá até ser o 1º a marcar em cinco mundiais.
  - A bola chama-se al rihla (viagem), a mascote La Eeb.
  - Prevê-se 5000 milhões de espectadores pelo mundo.