Políticas de contenção da pandemia com consequências sérias para a saúde mental

21-12-2022 | Daniel Vieira da Silva

Alice Delerue Matos é professora do Instituto de Ciências Sociais da UMinho e investigadora do CECS

A equipa nacional do projeto europeu SHARE que tem trabalhado sobre este tema

A saúde mental foi sobretudo afetada nos países que aplicaram políticas de contenção mais acentuadas

A investigação revela que as medidas tomadas afetaram gravemente a saúde mental da população estudada

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A conclusão é de uma investigação do projeto europeu SHARE, coordenado em Portugal pela professora Alice Delerue Matos, do Instituto de Ciências Sociais.


A equipa do projeto SHARE - Survey of Health, Ageing, and Retirement in Europe em Portugal desenvolveu diversos estudos que resultam em conclusões preocupantes. A atuação face à pandemia deixou marcas na saúde mental dos europeus com 50 e mais anos. E quanto mais restritivas foram as medidas adotadas, mais graves foram as suas consequências, tendo a população portuguesa reportado mais sintomas depressivos do que as populações dos restantes países analisados.



O NÓS esteve em dezembro à conversa com Alice Delerue Matos, professora auxiliar do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e coordenadora nacional do SHARE - o maior projeto europeu longitudinal na área das Ciências Sociais - e deu conta do trabalho desenvolvido pela sua equipa, que permitiu tirar algumas conclusões acerca do impacto das políticas de contenção da pandemia na saúde mental da população em idade adulta em Portugal.

A também investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) frisou que essas políticas, tais como o distanciamento físico, o encerramento de locais de trabalho, as restrições às viagens e o confinamento ao domicílio, implementadas por inúmeros países em 2020 e 2021, assim como o contacto próximo com a infeção e a doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, "afetaram a saúde mental da população europeia". Alice Matos considerou ainda que, "nos países que implementaram medidas de contenção mais rigorosas, nomeadamente, do Sul da Europa (Portugal, Espanha e Itália), houve um aumento acentuado dos sentimentos de tristeza/depressão nos indivíduos com 65 e mais anos".

Neste particular, sublinhou a docente, "Portugal destaca-se negativamente como o país com a maior proporção de pessoas com sentimentos de depressão nesses anos, no conjunto dos 27 países analisados". Partindo da amostra portuguesa um pouco superior a 2000 indivíduos, o estudo permitiu igualmente concluir que, "na primeira fase da pandemia, quem teve contacto próximo com a Covid-19, isto é, quem contraiu a doença ou conheceu alguém que testou positivo, esteve hospitalizado ou faleceu de Covid-19, reportou com maior frequência sentimentos de tristeza/depressão", revelou a docente, que se doutorou em Ciências Sociais - especialização em Demografia, pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica.


Comportamentos preventivos foram mais adotados pelas mulheres,
pelos mais escolarizados e pelos que sofrem mais stress financeiro


O resultado resulta de um dos estudos da equipa SHARE-Portugal, que constatou que, apesar de as mulheres se terem mantido mais confinadas ao domicílio, o confinamento afetou mais os homens, sendo o aumento dos sentimentos de tristeza e depressão maiores nos homens confinados do que nas mulheres confinadas. Os estudos evidenciaram ainda uma associação entre solidão e distúrbios do sono durante a pandemia. Com efeito, a probabilidade de apresentar distúrbios do sono foi maior nas pessoas de 50 e mais anos que se sentiam sós, mas também nas mulheres e nos indivíduos com pior saúde física e mental.

Num outro estudo, evidenciou-se o facto de as mulheres, os indivíduos mais escolarizados e aqueles que sofrem de maior stress financeiro terem adotado mais comportamentos preventivos do que os seus pares. Estes dados, revelou a docente, "podem explicar-se pela diferente perceção do risco entre homens e mulheres, com as mulheres a manifestarem uma maior autoconsciência do risco de contaminação". As pessoas mais escolarizadas tendem a estar mais bem informadas, o que faz com que adotem mais comportamentos preventivos. Indivíduos com maiores dificuldades financeiras podem apresentar mais dificuldades em obter assistência médica e medicação, o que os pode ter levado a adotar comportamentos de prevenção da infeção, justifica.





Contribuir para melhores políticas de prevenção

As decisões tomadas pelos diversos governos europeus para controlar a pandemia de Covid-19 tiveram consequências não intencionais que afetaram o bem-estar dos cidadãos em termos económicos, sociais e de saúde. Os estudos desenvolvidos visaram compreender este tipo de consequências para a população de 50 e mais anos e contribuir para melhores políticas de prevenção e proteção daquele grupo populacional, que revelou ser um dos mais vulneráveis no período pandémico.

Estes trabalhos foram desenvolvidos no âmbito do SHARE, um projeto multidisciplinar, comparativo e longitudinal que abrange 27 países europeus e Israel. A equipa SHARE-Portugal privilegiou a investigação sobre os comportamentos de prevenção da infeção e, por outro lado, as consequências da pandemia na saúde física e mental.

Os estudos desenvolvidos pela equipa SHARE-Portugal envolvem Alice Matos (coordenadora), duas investigadoras doutoradas, duas doutorandas e quatro investigadores com mestrado. Há ainda mais duas centenas de investigadores em Portugal, de diversas áreas científicas e universidades de Norte a Sul, que analisam os dados do projeto SHARE. A nível mundial, existem 16.000 investigadores a trabalhar sobre a informação do SHARE, que é facultada gratuitamente à comunidade científica.

 A base de dados do projeto contém informação de 530.000 entrevistas realizadas desde 2004 junto de 140.000 indivíduos de 50 e mais anos, que representam a população do mesmo grupo etário de cada um dos países participantes. A amostra portuguesa é um pouco superior a 2000 indivíduos. Durante a pandemia, em 2020 e, de novo, em 2021, foram entrevistados neste âmbito 58.000 europeus de 50 e mais anos.
 


Estudo sugere contenção nas medidas a adotar

A investigação faz ainda a comparação com outros países da Europa, conseguindo dessa forma perceber as diferenças de comportamentos adotadas. Assim, os comportamentos preventivos foram assumidos sobretudo pela população de Espanha, Itália e Portugal e menos aplicados na Dinamarca, Finlândia e Suécia. A elevada prevalência de infeção e mortalidade por Covid-19 em Espanha e Itália na primeira vaga da pandemia poderá explicar um comportamento mais cauteloso dos cidadãos mais velhos do Sul da Europa relativamente aos seus pares nos países nórdicos.

Pelo que foi possível apurar, "as políticas de contenção mais rigorosas estão associadas a pior saúde mental, mas, por outro lado, a menores distúrbios do sono". Uma explicação possível é estas políticas transmitirem sentimentos de segurança e proteção às pessoas, o que pode ter tido um efeito positivo no sono, explicou a docente. No entanto, frisou que estes sentimentos não foram vivenciados por todas as pessoas da mesma forma. "As pessoas que se sentiam sós apresentaram maiores dificuldades em dormir; a solidão contribuiu também, de forma relevante, para os problemas de saúde mental identificados", enquadrou.

Embora as medidas de contenção tenham sido necessárias para prevenir e conter a propagação do vírus, segundo os estudos da SHARE-Portugal, "é recomendável que sejam implementadas com prudência, dado o impacto negativo na saúde mental. O distanciamento físico, as restrições às viagens e o encerramento dos locais de trabalho devem ser pois compensados com políticas de promoção da saúde mental", sublinhou a equipa.

Alice Matos afirmou que "algumas medidas podem mitigar ou prevenir os efeitos negativos de um confinamento". Por exemplo, "o recurso a plataformas digitais pode ajudar a combater a solidão e a reduzir os sentimentos de depressão/tristeza numa situação de isolamento físico no domicílio". Para isso, disse a docente, a formação dos adultos mais velhos em tecnologias de comunicação é crucial, sendo que as plataformas virtuais podem ser utilizadas para incentivar a prática de exercício físico, que pode ter um efeito positivo na saúde física e mental, diminuindo o stress, os níveis de ansiedade e os sintomas de depressão. "As plataformas virtuais podem ainda ser utilizadas com outros objetivos, como debates, encontros de teor religioso, de apoio psicológico, de treino cognitivo", complementou.

A responsável vincou ainda que "a criação de linhas telefónicas de apoio e a ativação das redes familiares e de proximidade, com recurso a suportes digitais", também são medidas que podem ter um impacto importante na redução da solidão e da depressão das pessoas mais velhas, sobretudo em contextos que obriguem a confinamento no domicílio. "O contacto presencial, com rigoroso controle de riscos, deverá ser também equacionado, permitindo, por exemplo, as visitas de familiares e voluntários a pessoas que vivem sós ou se encontram institucionalizadas - é importante sublinhar que a proteção dos indivíduos mais vulneráveis não pode basear-se em critérios de idade que tendem a uniformizar pessoas com riscos de saúde e sociais muito distintos e a gerar situações de iniquidade e discriminação dos mais velhos", sublinhou a docente ao NÓS.

Alice Matos salientou que cabe ao Governo, mas também ao poder local, nomeadamente a câmaras municipais e juntas de freguesia - que foram e são atores-chave na implementação de medidas que reduzem efeitos de uma pandemia -, a aplicação de “medidas de substituição” que servem para mitigar o problema. A professora da UMinho referiu ainda que as organizações com respostas na área da terceira idade, as famílias e os próprios indivíduos mais velhos podem contribuir para minimizar as consequências da pandemia que afetam o bem-estar dos cidadãos em termos económicos, sociais e de saúde.