Futuro do passado

18-02-2023

Acílio Estanqueiro Rocha

A Universidade não esgotou, com o fluir dos tempos, o seu sentido e as suas possibilidades, estando sempre a ponto de as reinventar. 


Tendo-me sido solicitado um testemunho – “como viu a UMinho e como a perspectiva?” –, vem-me à lembrança o momento em que transitei (por concurso) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no ano lectivo de 1979/80, para a Universidade do Minho, instituição que então se enquadrava nas designadas “universidades novas”. Se não sou muito dado a estas retrospectivas, todavia, ao revisitar o passado, perpassa-me a ilusão de algum rejuvenescimento.

Se estranhei a exiguidade das instalações, no 1º piso da Rua D. Pedro V – mudámos para instalações definitivas no campus de Gualtar, no início da década de 90 –, nesse entrementes era grande a motivação geral pelo devir institucional; mas o que mais estranhei foi a inserção numa estrutura organizativa sui generis, segundo princípios da gestão matricial, orientada mormente para a interdisciplinaridade, que incentivava a criação de projectos pioneiros. Ora, vindo eu duma Faculdade – e sentia-me aí bem –, que era o modelo vigente nas universidades nacionais, em que o docente lecciona nos cursos do departamento a que pertence, experienciei uma outra realidade em que a sua esfera de acção são os cursos da Universidade; como docente, director de departamento (1984-1990), secretário do Conselho Científico da Universidade (1984-1986) – era seu Presidente o Prof. Barreiros Martins –, tomei maior conhecimento do seu funcionamento.

E é verdade que houve projectos de Cursos novos, entre os quais a licenciatura em Relações Internacionais (dela fui Director em dois mandatos electivos), os cursos da área de Informática, as licenciaturas em ensino no âmbito das Letras e das Ciências, a licenciatura em Línguas Estrangeiras Aplicadas – só para citar alguns –, iniciados na UMinho e depressa adoptados noutras universidades. Se o modelo matricial propiciou projectos novos de diversa tipologia, foi-se esvaecendo ao longo dos anos e, no final do século, o ‘processo de Bolonha’ desferiu-lhe profundo golpe, com a opção mercantilista de redução da duração das licenciaturas (e a compressão de matérias essenciais em 3 anos), expungindo assim a interdisciplinaridade.

Anos depois, a minha experiência como partícipe em Assembleias Estatutárias, seja a estipulada pela Lei da Autonomia (1988) seja pelo RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, 2007) – em ambas se repete à exaustão o termo ‘autonomia’ – evidenciou-me como esta pôde ser prejudicada por imposição duma homogeneização organizacional; a novel Universidade do Minho foi forçada a deixar cair o modo de eleição universal do seu Reitor (participação nela de todos os membros da Instituição) – o Prof. Lúcio Craveiro da Silva foi o primeiro Reitor assim eleito –, experiência não muito longa por força da Lei da Autonomia, aplicada também aos Presidentes das Escolas e de outros órgãos; mas foi-se mais longe, desde a própria orgânica dos órgãos de governo e de gestão – iguais em toda a parte –, à restrição de representatividade de professores e investigadores, estudantes e funcionários, quase parecendo que o intuito era ‘depressa e poucos a decidir’, uniformizando a estrutura organizacional das universidades.

No entanto, foi um tempo mui profícuo, já que se tratava de erigir não só uma ‘nova Universidade’, mas uma ‘Universidade nova’, com capacidade de inovar, capaz de definir o seu plano estratégico de desenvolvimento. A UMinho foi abertura de caminhos de futuro, em que 50 anos representam uma temporalidade mui densa, quantitativa, mas qualitativamente intensa, que, como diz o escritor-filósofo Vergílio Ferreira, "[…] não há instrumento nenhum que nos meça a nossa vivência desse tempo". Nessa experiência tive ensejo de participar ainda como Vice-Presidente (1990-1994) e Presidente do Instituto de Letras e Ciências Humanas (1994-2000), e como Vice-Reitor (2002-2009) na equipa do Reitor Prof. A. Guimarães Rodrigues. Essa parece a cifra da universidade moderna, patente já na obra O Conflito das Faculdades (1798) do filósofo Immanuel Kant, aí expressa pela tensão entre autonomia e heteronomia.

Todos sabemos que a Universidade não esgotou, com o fluir dos tempos, o seu sentido e as suas possibilidades, estando sempre a ponto de as reinventar. Se lhe compete ser um lugar de excelência na interpretação do mundo e de nós próprios, onde se aprende a saber e a pensar, pode e deve outrossim, na sociedade hodierna, contrariar a corrente individualista que a percorre, e antepor à vertigem das imagens e ao imediatismo de receita, a sobredeterminação da linguagem articulada e a dimensão do tempo, pelo que compete-lhe ainda exercer alguma resistência criadora, não recuando sobre a imprescindibilidade da escrita, do texto, do esforço, do silêncio e da palavra – como na música, que se esvairia sem a reiteração de pausas.

Com esse escopo, e para que se esbata a estandardização nas universidades, que o RJIES seja suprido por nova Lei de Autonomia, breve e genérica (ao jeito dos poucos artigos da Constituição Federal dos Estados Unidos, e não do longo e pesado articulado do Tratado da União Europeia), e que cesse também a burocracia invasiva na vida quotidiana de docentes e investigadores, raramente ao serviço da autonomia, quase sempre instrumento de heteronomia.

Destarte, para mim, o verso de Fernando Pessoa, no início da Mensagem, subsume este meio século da UMinho, como “futuro do passado”.
 

Professor emérito da Universidade do Minho e membro da Academia das Ciências de Lisboa