Portugal está "décadas atrás" na profissionalização do futebol feminino

31-03-2023 | Daniel Vieira da Silva

A seleção nacional feminina vai estrear-se num Mundial de Futebol; a 9ª edição decorre no verão, na Austrália e Nova Zelândia

Keira Walsh saiu em 2022 por 460 mil euros do Manchester City para Barcelona, a transferência mais cara do futebol feminino

Paulo Reis Mourão é autor deste artigo que analisa as transferências de atletas e clubes portugueses

O Benfica-Sporting de 26 de março de 2023 teve o recorde de espectadores (27.221) num jogo de futebol feminino em Portugal

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Estudo da Escola de Economia e Gestão avaliou as transferências que envolvem as atletas e os clubes nacionais.




Pela primeira vez, a seleção portuguesa de futebol feminino vai estar num Campeonato do Mundo. As jogadoras lusas fizeram história em fevereiro ao vencer a seleção dos Camarões por 2-1, no play-off intercontinental. Esta é apenas mais uma evidência do desenvolvimento do futebol feminino no nosso país. Décadas depois do crescimento verificado em países como a França, Noruega ou EUA, o fenómeno chegou entre nós para ficar.

“O futebol feminino está a ter um crescimento notável em Portugal. Os sucessos internacionais que começam a despontar refletem esse nível de desenvolvimento”, começou por afirmar ao NÓS o professor Paulo Reis Mourão, do Departamento de Economia da Escola de Economia e Gestão (EEG) da UMinho. O investigador do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais (NIPE) da UMinho publicou um artigo no International Journal of Sports Science & Coaching, abordando as transferências de futebolistas femininas envolvendo clubes portugueses nas épocas 2019/20 e 2020/21.


Evolução nos últimos anos não atenua discrepância para outros campeonatos

Ainda que a discrepância para o futebol masculino seja avassaladora, "existe já uma realidade de diversos clubes com atletas com contratos profissionais”. Paulo Reis Mourão explicou que, “dada a tendência internacional e a recetividade que apresenta de um modo crescente na sociedade portuguesa, as transferências continuarão a crescer, ainda que muito longe dos valores associados ao futebol masculino”. Lembrou que no país continua a verificar-se a predominância das “transferências graciosas niveladas quase pelo relacionamento de atletas amadores e clubes eminentemente amadores”.

No seu artigo, o investigador lembrou que Portugal está “décadas atrás no nível de profissionalização do futebol feminino, apesar do desenvolvimento muito acentuado no campo desportivo, que coloca os clubes e a seleção a competir de forma muito promissora no panorama internacional”. O autor acrescentou que, desde 2017, o número de atletas com contrato em Portugal aumentou de uma forma exponencial, sendo que as jogadoras de nacionalidade estrangeira tendem a receber mais vencimento comparativamente às portuguesas.

O paralelismo pode ser feito para a realidade das transferências. Esse “atraso” coloca as transferências de jogadoras nacionais num patamar claramente inferior em comparação com o que acontece noutras latitudes. Reflexo disso é as transferências mais caras que envolveram clubes portugueses. Paulo Reis Mourão exemplificou com a chegada de Maiara Niehues ao Sporting CP, proveniente do Porto Alegre (Brasil), numa transferência em setembro de 2022 que rondou os 30 mil euros, e a saída de Mylena Freitas do Famalicão FC para o Shanghai Shenghi, em 2021, por 50 mil euros. Bem acima está, por exemplo, a transferência de Keira Walsh, que rondou os 460 mil euros quando se mudou em setembro do Manchester City para o Barcelona, a transferência mais cara no futebol feminino. Uma curiosidade: esse valor corresponde a 0,2% da mais cara transferência masculina até à data.

 

“Faro de golo”, posição em campo e idade da jogadora motivam interesse

Paulo Reis Mourão realçou que “o faro pelo golo”, ou seja, jogadoras com maior registo de golos por jogo, motivam uma maior probabilidade de transferência. No seu artigo, o investigador do NIPE deu nota que “as duas últimas temporadas viram as transferências internacionais mais impressionantes, envolvendo clubes portugueses com equipas de futebol feminino” e concluiu que os três clubes portugueses que mais exportaram talento foram o SL Benfica, o SC Braga e o Clube Futebol Benfica”.

Outro dos aspetos salientado nas transferências de jogadoras de Portugal para o estrangeiro foi a posição que estas ocupam em campo. “Na maioria dos casos, ocupam a posição do meio-campo ou de ataque, sendo que em média uma jogadora transferida tende a jogar 13.6 jogos na temporada inicial e a marcar 8.4 golos”. Segundo Paulo Reis Mourão, seis dessas atletas cumpriram pelo menos uma internacionalização, ainda que nenhuma tenha conquistado títulos pela seleção nacional.

Outro dos elementos valorizados na transferência de jogadoras portuguesas para clubes fora do país é a sua idade. Segundo a investigação de Paulo Reis Mourão, "encontra-se uma relação de 'U invertido' entre a idade da jogadora e as suas hipóteses de se mudar para um clube estrangeiro". Na verdade, disse, “o ponto de inflexão acontece aos 27.1 anos, isto é, após esta idade as chances de jogar no estrangeiro para uma jogadora da Liga Portuguesa feminina diminuem”.

No que diz respeito à chegada de atletas, o estudo evidencia que as mesmas são originárias de planteis de clubes que militam nas primeiras, segundas e terceiras divisões dos seus respetivos países. Já no que respeita às saídas, os clubes de destino estão espalhados por oito países. Três jogadoras foram para clubes de Itália e uma para cada uma destas ligas: inglesa, espanhola, húngara, brasileira, russa, holandesa e finlandesa.
 


Mote para mais estudos sobre a temática

Paulo Reis Mourão considerou estarem a faltar estudos em torno dos temas relacionados com o futebol feminino em Portugal. Por isso, deixou o desafio para uma observação "a ser feita com entusiasmo" em torno do movimento de profissionalização emergente noutras modalidades desportivas praticadas por mulheres em Portugal, como voleibol, futsal, atletismo ou ginástica. Paralelamente, considerou importante observar a evolução das assistências nos jogos femininos, de modo a perceber a resposta do público a um contexto historicamente dominado pelos atletas masculinos.

Outros desafio lançado pelo investigador foi estudar se e de que modo certas coletividades, em função do sucesso relativo das equipas femininas, tenderão a deslocar os recursos das equipas masculinas menos bem-sucedidas ou, ao invés - por questões que poderão parecer preconceito de género -, se teimarão em alocar os mesmos recursos para as equipas masculinas em prejuízo das femininas que tenham melhores resultados e aproveitamento.