“O sistema judicial precisa de acompanhar a evolução tecnológica”

31-03-2023 | Pedro Costa

A receber do professor Mário Monte o Prémio de Melhor Tese Doutoral defendida em 2022 na Escola de Direito da UMinho

Momento da defesa do doutoramento, em julho de 2022, na Escola de Direito da UMinho, em Braga

Capa dos livros "A Prova Digital no Processo Judicial" e "O Regime Jurídico do Subarrendamento"

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Ana Isa Meireles, da Escola de Direito, aborda a tecnologia na justiça e vai ter agora a sua tese doutoral premiada em livro.




Ana Isa Meireles, do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) da UMinho, defende que a prova digital é de urgente trato e regulação. Com o incremento tecnológico e a integração na sociedade da informação, o Direito e o processo judicial sofreram influências, desafiando e questionando as suas limitações e imposições legislativas. Debate-se hoje a sua legalidade e fiabilidade, tornando a prova digital um novo desafio no Direito, onde muitas vezes o ilícito é produzido, o ilegal propagado e o indevido escondido. “A prova digital no processo judicial” é o título da tese de doutoramento da autora, que foi defendida em julho e teve a menção máxima, sendo depois premiada em dezembro como a melhor do ano dEscola de Direito da UMinho. Este trabalho chega em abril às livrarias. O NÓS falou com a investigadora sobre as implicações práticas destas matérias e os procedimentos judiciais atuais.
 
 
Como surgiu no seu horizonte esta linha de investigação?
Tenho que agradecer o interesse pela minha tese de doutoramento, que aliada a toda esta “procura” pelo mundo digital, vai ter a sua versão em livro, com algumas adaptações, a partir de 6 de abril e já em pré-venda na Almedina. É sempre positivo quando escrevemos, mas mais quando há interesse em ler aquilo que escrevemos. Claro que esta linha de investigação pode parecer fácil de se ter, porque “é moderna”, mas surgiu-me de um, digamos, “contentamento descontente” de me deparar, na vida prática, com tantas questões digitais e todas tratadas com uma simplicidade que me fazia alguma confusão.

Como assim?
Juntava-se um print screen para dizer que aquela é a realidade do nosso facto e, se ninguém o impugnasse, ou em bom português, ninguém viesse dizer nada em sentido contrário, seria livremente apreciado por um juiz que, com todo o devido respeito, não tem conhecimentos de informática para saber, a olho nu, que algo que aparenta ser muito verdadeiro é falso. Esta foi uma das minhas inquietações. Depois, com a desburocratização, os processos civis já não se encontram (em regra) totalmente impressos (ou mesmo impressos) nas secretarias dos tribunais. Ou seja, estão numa plataforma online (o Citius), que, se ficar inacessível, como vamos ter garantias que nada foi alterado? Que aquele documento anexado não foi trocado? É tudo demasiado sensível. Agora inquirem-se pessoas, sobretudo depois da doença do coronavírus, por meios fáceis de comunicação à distância: o Zoom, o Skype, o Messenger, o WhatsApp... e não há a preocupação de poder ser um deepfake. Às vezes, pergunto-me se sabem mesmo do que se trata. Eu quis tentar levantar os problemas como quem cava a terra e traz a nu tudo o que por baixo dela se esconde, mas também fazer algo disso que se descobre.
 
Quais as principais conclusões produzidas no seu estudo?
Precisamos de traçar a mudança e mudar. Mudar a forma como tratamos os processos, com uma desproteção que deveria ser uma preocupação aos olhos de todos. Essa mudança passa, naturalmente, pela implementação da tecnologia blockchain. O problema é que, em vez de criarmos armaduras, vamos continuando a evoluir (veja-se o ChatGPT) e esquecemo-nos de que o nosso sistema judicial tem que acompanhar esta mudança para estar um passo à frente. É preciso investir nas ferramentas de trabalho judiciais, como o dito Citius. Mais do que isso, é preciso reformar a legislação e legislar sobre a prova digital em específico, percebermos que é preciso uma peneira judicial para aquilo que é falso, sem sabermos que o é, não caia em saco roto, como se diz na gíria. Além disso, não podemos esquecer que há atos notariais feitos através de meios de transmissão à distância e tem-se vindo a falar dos perigos, que existem na esfera do judicial, onde, parece-me, a preocupação tem ficado em segundo plano. A prova digital é sobretudo de urgente trato e regulação.
 
À luz do seu trabalho, a tecnologia – que tudo influencia – pode ser vista mais como aliado, ou como obstáculo nos processos judiciais?
Para mim, é um obstáculo. Mas pode muito bem ser convertida numa aliada. Isto pode soar estranho, porque toda a gente quer o simplex – simplificar ao máximo as deslocações, as inquirições, a morosidade do processo –, mas esquecemo-nos que essa simplificação tem que ser acompanhada por segurança, autenticidade e credibilidade. Acho que é nestes três vértices que estamos a padecer. Na altura da doença do coronavírus, a experiência para alguns foi muito positiva. E eu acredito que, de facto, esta questão de evitar deslocações em vão, de simplificar as diligências, é de enorme relevo prático. Mas... e garantir que quem está “do lado de lá” é a pessoa real? Uma coisa é fisicamente, outra coisa é por detrás de um aparelho tecnológico, que, com uso de tecnologia, tudo pode ser falso...
 
Quais são as principais limitações à produção de prova com base nas tecnologias?
Lá está, eu não acho que exista, pelo menos ao olho do utilizador. Existe, antes, uma vantagem. “Fizemos o print screen e juntamos”; “É um e-mail”; “É um powerpoint”... E tratamos tudo como se isto fosse tão simples que bastasse. A maior limitação é esquecermo-nos que, com a tramitação eletrónica (digital mesmo) dos processos, a nossa prova documental passa toda por ser digital, porque fica armazenada num sistema. E é esta a grande limitação: a da segurança de prova. Depois, no que tange com a sua produção, se pensarmos na inquirição de testemunhas, peritos, partes, no próprio tribunal, mas à distância, vamos ter a limitação da veracidade e fidedignidade: a inteligência artificial é uma realidade. E já que se fala tanto nela, também esquecemos que nos traz outros desafios. As limitações são verdadeiras, porque, ao produzir prova, nós temos que levar, ou tentar levar, o julgador a encontrar a realidade que queremos demonstrar. E este julgador, que nós conhecemos, não conhece a realidade informática como um técnico, como um perito... A olho nu, não pode ser atestada a autenticidade e fidedignidade.
 
As provas de natureza digital sofrem de problemas de fidedignidade?
Para mim, totalmente, além de outros problemas. São três vértices neste estudo: idoneidade, fidedignidade e autenticidade. Por isso, tenho vindo a defender o recurso à blockchain como meio de auxílio à garantia de fidedignidade e produção probatória, bem como a necessidade de adaptação do regime do processo civil atual para acomodar tal solução. Escrevi sobre isso e volto a realçar: a blockchain surge com uma especial contribuição para a fidedignidade da prova. Claro, existem riscos. Sempre existirão. Mas, fazendo jus a Chico Buarque, “[as] pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem”.
 
Na sua perspetiva, o facto de a tecnologia ser de evolução “galopante” dificulta a sua introdução na produção de prova?
Percebo a sua pergunta, mas se não galoparmos e nos mantivermos como estamos, vai ser ainda mais difícil de introduzir qualquer alteração. Hoje falamos, socialmente, de inteligência artificial – quer em carros, quer em redações de trabalhos, quer na simples marcação de consultas. Falamos socialmente de emojis, memojis, gifs, etc.... E esquecemo-nos que a nossa vida social influencia a justiça. Porque os problemas atuais vão ser, exatamente, estes, por detrás de um computador, de um telemóvel, numa distância que nada do que parece o é; numa realidade impercetível. Há quem viva no metaverso. A nossa evolução legislativa nesta dogmática tem sido escassa, a meu ver. Tão escassa que a evolução galopante, como lhe chama, nos vai assustar, porque parece que não vamos conseguir acompanhar. Temos que acompanhar agora e a evolução amanhã implicará outras reformas. Mas é a evolução normal da vida! Os sapatos que nos ofereceram para o nosso nascimento não nos servem agora. Acho que esta reflexão, simples, terá que dizer muito daquilo que é, também, a justiça. Precisamos de continuar a trilhar caminhos e soluções concretas, não à espera que o pior possa acontecer.
 


Sobre a autora
 
Ana Isa Meireles fez a licenciatura em Direito, o mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa e o doutoramento em Direito - Ciências Jurídicas Privatísticas pela UMinho. É investigadora do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov) e do Centro de Estudos Avançados em Direito (CEAD), além de advogada e professora convidada na UMinho e na Universidade Lusófona. Publicou diversos artigos e livros, como “A Prova Digital no Processo Judicial - A Blockchain e Outros Caminhos para os Tribunais”. O seu site é www.isameireles.pt.