A popularização do discurso de ódio "é um sério ataque" às nossas sociedades

30-04-2023 | Pedro Costa

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O historiador Bruno Madeira aponta sete motivos que têm catalisado os movimentos pós-fascistas pelo mundo.




Bruno Madeira é professor no Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da UMinho. Ao NÓS, traça uma perspetiva global dos acontecimentos históricos, das ideologias e da tecnologia como elementos ativos nos fenómenos políticos atuais. A sua investigação centra-se na direita radical e no fascismo e neo/pós-fascismo. Entre outros temas, foca também o neoliberalismo e a austeridade como formas de governo político, económico, cultural e moral. O seu trabalho baseia-se na transdisciplinaridade, mobilizando contribuições, conceitos e métodos da história, sociologia, filosofia, economia, comunicação e ciência política. Bruno Madeira é membro do Centro de Investigação Transdisciplinar "Cultura, Espaço e Memória" (CITCEM) e a sua tese doutoral mereceu uma menção honrosa no Prémio Victor de Sá de História Contemporânea.
 


Porque é que estudar os riscos dos extremismos, nomeadamente da direita radical e do neofascismo, suscita reflexões à escala global?
O fenómeno pós-fascista – designação proposta por Enzo Traverso em The New Faces of Fascism (2019) – suscita reflexões à escala global porque é no século XXI o campo político que mais tem crescido e que mais desafios tem colocado às democracias liberais ocidentais. Por outro lado, o fenómeno pós-fascista ultrapassa largamente as fronteiras do mundo euro-americano.

Pode dar exemplos?
Foi poder no Brasil e é poder na Rússia, na Índia, nas Filipinas... A popularização do discurso de ódio em relação aos refugiados, aos muçulmanos e a outras minorias étnicas e raciais, a vulgarização de um discurso misógino e sexista, a voz que é dada a sentimentos homofóbicos e transfóbicos, a difusão de teorias da conspiração e anticientíficas são ataques deliberados às nossas sociedades e representam um risco para as próprias democracias. Quando vemos Donald Trump ou Jair Bolsonaro tentarem virar metade dos seus países contra outra metade, compreendemos que a violência poderá ser a evolução do recrudescimento do discurso de ódio e da política do ressentimento.
 
Que especialidades científicas debatem estes fenómenos?
Estes fenómenos devem ser estudados a partir de uma perspetiva transdisciplinar. Para compreender movimentos tão complexos, com bases sociais de apoio tão diversas, com tradições e histórias tão plurais, com agendas político-mediáticas que, comungando um conjunto de valores, de princípios e de objetivos comuns, apresentam variações significativas entre si, temos que mobilizar a história, a filosofia, a sociologia, a antropologia, a ciência política, as relações internacionais, a economia, as ciências da comunicação. Se nos limitarmos aos recursos de uma disciplina, teremos certamente uma visão incompleta do fenómeno em análise.  
 

Efeitos da globalização neoliberal

A reflexão entre europeus e americanos significa que, no ocidente, os fenómenos neofascistas têm fatores em comum?
As causas do crescimento eleitoral dos partidos pós-fascistas, não deixando de registar particularidades nacionais, assentam sobre um conjunto de fatores que são comuns à Europa e aos EUA. A globalização neoliberal provocou um conjunto de consequências que afetam estes dois espaços – e são muito mais gravosas nos países da periferia e da semiperiferia do sistema capitalista. Em primeiro lugar, a desindustrialização dos EUA e da Europa e a deslocalização das unidades de produção para o sudeste asiático e para outras paragens do globo deixou atrás de si um exército de desempregados ou de subempregados que se ressentem dos decisores políticos e económicos que os deixaram nessa situação. Em segundo lugar, a hegemonização da doutrina neoliberal nos anos 1990 tem-se traduzido na perda de poder de compra das classes trabalhadoras nos últimos 30 anos, na sucessão de crises económicas que penalizam, sobretudo, os mais pobres e na perspetiva de que não existe alternativa política ao status quo.

Em terceiro lugar...
...a implosão da URSS e a dissolução ou descaracterização dos partidos comunistas da Europa Ocidental e do sindicalismo de classe eliminaram a alternativa ao capitalismo e ao estado de coisas existente, que, durante muito tempo, não só forneceu um horizonte de alternativa como ofereceu uma plataforma de representação eficaz às classes subalternas. Em quarto lugar, a emergência da Terceira Via nos partidos trabalhistas e social-democratas alienou da sua base social de apoio muitos trabalhadores. Em quinto lugar, o distanciamento crescente entre eleitos e eleitores, a sensação de que os eleitos não falam para grupos significativos da população ou que chegam mesmo a desprezá-los e a generalização – artificialmente empolada – da ideia que se vive num mundo cada vez mais corrupto e inseguro. Em sexto lugar, a precariedade laboral e existencial, a concentração de cada vez mais riqueza nas mãos de uma percentagem cada vez mais reduzida da população mundial. Em sétimo lugar, as guerras culturais que são amplamente promovidas pela direita pós-fascista, que inculcam em parte significativa da população o sentimento de que o seu modo de vida está a ser atacado e que está a perder direitos e capital simbólico para grupos minoritários.

São sete causas principais.
Não esgotando aqui as causas do recrudescimento e do crescimento dos partidos e movimentos pós-fascistas, estes sete pontos são fundamentais para criar a procura de uma oferta política – de um empreendedor político – que modele o seu discurso em termos antielitistas, antis-sistémicos e antiliberais. Os pós-fascismos não rejeitam falar para os ressentidos do tempo presente, mais propõe-se dar-lhes voz e representar os seus interesses. A isto poderíamos acrescentar que – apesar das evoluções legislativas e sociais em termos dos direitos das minorias étnicas, raciais, religiosas e sexuais – os sentimentos xenófobos, racistas, anti-islâmicos, anti-imigração, homofóbicos e antifeministas eram e continuam a ser estruturais nas sociedades euro-americanas e, nesse sentido, procuravam um partido ou um líder político que os expressasse publicamente.



Ilustração do portal Democracyandme.org


Ligações com o passado?

Que contributos a História nos dá na leitura da realidade atual?
Não deve servir apenas para comparar os movimentos e partidos pós-fascistas com os do período do fascismo histórico. A História permite-nos situar na diacronia a evolução, as transformações, as adaptações e as reconfigurações identitárias e discursivas deste campo político. A História não se repete e não devemos procurar nela o reflexo da realidade que nos é dada viver. Muita da análise que é feita acerca dos fenómenos pós-fascistas do século XXI tem-se centrado na comparação entre estes e os do fascismo histórico com o propósito de afirmar que não existe qualquer ligação entre eles.

Não existe?
De facto, se olharmos para o fascismo que triunfou em Itália em 1922 e para o pós-fascismo que triunfou nesse mesmo país cem anos depois, somos obrigados a reconhecer que se tratam de programas políticos, económicos, sociais e culturais distintos, que as estratégias de liderança e de comunicação mudaram substancialmente e que as principais causas do fascismo do século XX não surgem nas palavras de Giorgia Meloni.

O pós-fascismo.
Essa designação é, justamente, um contributo que a História pode oferecer para compreender tais fenómenos. O conceito de pós-fascismo parte da ideia que a História e as soluções político-institucionais, em cada momento, são dominantes, são transitórias. Daí, oferece-nos uma leitura que, reconhecendo as diferenças substanciais entre o fascismo histórico e os fenómenos do século XXI, olha para os mesmos compreendendo que estes estão ainda em evolução e em transformação, podendo vir a adquirir contornos mais vincadamente fascistas na aceção histórica do termo ou a evoluir num sentido de moderação e de acomodação aos valores dominantes.
 
Os discursos nacionalistas são o meio para afirmar ideologias que colocam as democracias em risco?
O nacionalismo é, desde o final do século XIX, um instrumento antidemocrático. Trata-se de uma rápida e contraditória transformação de uma ideologia que, em 1848 e em 1870, serviu a causa da democratização e que a extrema-direita realista, integralista, antissemita transformou num veículo de mobilização das massas para um projeto restauracionista e de repopularização do privilégio. O nacionalismo foi, desde então, a principal arma de arregimentação de apoiantes de que as várias famílias da extrema-direita dispuseram e utilizaram. Vemos como hoje os partidos pós-fascistas fazem amplo uso do discurso e da mobilização nacionalista para estimular o ressentimento e o ódio em relação aos imigrantes, aos refugiados e às minorias étnicas, raciais e religiosas.

O privilégio dos nacionais sobre os não-nacionais.
É exatamente nisso que assenta parte da capacidade de atração do discurso pós-fascista. Discurso que é estruturado em torno da política do “nós” contra o “eles”, do “nós” contra o “outro”. Entre o português ou norte-americano de bem que trabalha, paga os seus impostos, obedece aos valores e às tradições religiosas, morais e sociais da civilização judaico-cristã e o outro que é representado como uma ameaça vital a este modo de vida. O outro surge sempre como vivendo às custas dos impostos dos que trabalham e como estando apenas interessado na destruição do modo de vida dos nacionais.



Os palcos tecnológicos

Que papéis desempenham as tecnologias no renascer dos fenómenos radicais?
Uma das linhas de continuidade que observamos nos movimentos do fascismo históricos e no dos pós-fascistas é, justamente, a intuição e a capacidade de utilização dos mais modernos meios de comunicação e de propaganda. O nazi-fascismo foi particularmente eficiente em explorar os comícios de massas, as ondas de rádio e as telas dos cinemas. O pós-fascismo, num mundo cada vez mais desmaterializado, atomizado e individualizado, compreendeu que as redes sociais eram o novo auditório para o qual deveriam falar e especializaram-se rapidamente nas estratégias de comunicação mais eficazes em cada uma das diferentes redes sociais.

A comunicação tende para os meios online.
As redes sociais permitem a disseminação muito rápida de informação (muitas vezes falsa), de vídeos virais e de propaganda – veja-se, por exemplo, a entrada do Chega e de André Ventura no TikTok. A lógica dos algoritmos favorece também o recrudescimento dos sentimentos de ódio em relação ao outro e de reforço da noção de pertença ao grupo que detém o "monopólio da verdade". As redes sociais tendem a apresentar-nos pessoas que pensam como nós, que se parecem fisicamente connosco, que se comportam como nós. Essa constante auto-legitimação e reforço das convicções políticas do grupo faz com que a tolerância à diferença e à pluralidade de opiniões seja cada vez menor e que a alteridade esteja em acelerada extinção. 
 
Falar de populismos é falar de um fenómeno de atualidade ou a redescoberta da propaganda na sua pior face?
 O pós-fascismo é um fenómeno do século XXI, disso não temos dúvidas. Ele continuará a evoluir, embora devamos registar as dificuldades de federação internacional deste complexo e diverso universo de partidos e movimentos. E irá constituir-se mais claramente como campo político, ideológico, social e cultural. Não creio que o devamos reduzir a um estilo de discurso ou a uma estratégia de comunicação política. O pós-fascismo comporta uma mundividência e uma ideologia próprias – ainda em consolidação – e é aí que reside o principal desafio das democracias liberais.