Código de barras da vida faz 20 anos

30-06-2023 | Fotos: CBMA

A raia-de-quatro-olhos e o código de barras de ADN que a identifica

Recolha de amostras numa marina para deteção de espécies não nativas

Pormenor de amostras recolhidas no mar

Mapa das áreas marinhas biologicamente significantes

Filipe Costa é investigador e coordenador do grupo ME-Barcode do Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA), além de professor associado do Departamento de Biologia da Escola de Ciências da UMinho

Alguns membros da equipa ME-Barcode da UMinho, junto à entrada do IB-S, no campus de Gualtar, em Braga

O II Encontro do Consórcio Europeu para o Código de Barras da Vida (ECBOL2) foi em 2010 na UMinho, em Braga

Filipe Costa com a equipa de Paul Hebert na Universidade de Guelph, no Canadá, em 2018

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Biólogo Filipe Costa representa o país no consórcio que revolucionou a investigação da biodiversidade.




Sabia que há um código de barras com apenas quatro “letras” (ACGT) que permite identificar as espécies do nosso planeta? Esse código está inscrito em segmentos curtos do ADN de cada espécie e foi designado como DNA barcode em 2003 pela equipa do canadiano Paul Hebert. Os DNA barcodes já permitiram descobrir milhares de novas espécies, que são catalogadas numa biblioteca digital do consórcio International Barcode of Life (iBOL). O consórcio é representado em Portugal pelo Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) da Escola de Ciências da UMinho (ECUM), através da equipa de Filipe Costa, que já sinalizou mais de uma centena de novas espécies marinhas, incluindo anelídeos, crustáceos, moluscos, peixes e algas. Esta técnica de rastreio de espécies baseada no seu ADN tem revolucionado o estudo da biodiversidade no planeta, contribuindo para conter o seu declínio, melhorar a gestão e conservação dos ecossistemas, detetar espécies invasoras, parasitas e até etiquetagem fraudulenta nos mercados de peixe e de outros produtos alimentares.

“Há 20 anos, eu estava a iniciar o pós-doutoramento, e ao efetuar uma pesquisa na internet sobre métodos genéticos para diferenciar espécies, deparei-me com o projeto do professor Paul Hebert. Na resposta ao meu email, propôs-me uma estadia no seu laboratório em Gelph e enviou o seu artigo acabado de publicar em que surgia a expressão DNA barcodes, e que hoje tem milhares de citações”, lembra Filipe Costa. “Foi empolgante integrar a equipa fundacional do novo conceito e acompanhar na primeira fila o debate científico gerado, havia críticas de que a abordagem não funcionaria”, assinala.

O iBOL tem tido vários projetos de grande escala. Na década passada, o programa Barcode 500K ajudou a construir a biblioteca de referência para 500 mil espécies. Para 2019-26, o BIOSCAN almeja catalogar 2.5 milhões de espécies e ter 2000 estações de biomonitorização através de DNA metabarcoding (uma versão avançada dos DNA barcodes que permite inventariar todas as espécies de uma comunidade). Trata-se, pois, de um dos maiores projetos de biodiversidade de sempre, abrangendo todo o tipo de organismos e à escala planetária. “Crê-se que haverá 18 milhões de espécies no mundo, temos muito trabalho pela frente”, anui Filipe Costa.

O cientista teve cargos diretivos nas redes europeias Fish Barcode of Life, DNAqua-Net e é responsável por compilar e analisar bibliotecas de referência no projeto eDNAqua-plan, recentemente aprovado no âmbito do Horizonte Europa. Em Portugal, tem estado a criar a biblioteca de DNA barcodes para a biodiversidade marinha nacional, em colaboração com centros de investigação das universidades dos Açores, Algarve, Aveiro, Coimbra, Porto, Lisboa e Nova de Lisboa, bem como com o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

 
Ilhas atlânticas têm espécies marinhas únicas
 
O grupo de Filipe Costa e parceiros internacionais estiveram numa série de estudos da Universidade de Aveiro. Num conjunto de 23 espécies de pequenos crustáceos da zona entre marés (crustáceos peracarídeos), os cientistas detetaram através dos DNA barcodes acima de 60 possíveis espécies marinhas únicas no planeta, mais de 50 das quais endémicas dos Açores, Madeira e Canárias. “Até aqui, assumia-se haver conetividade entre a fauna de crustáceos peracarídeos dos três arquipélagos e a das costas continentais africana e europeias adjacentes, mas de facto há espécies próprias daquelas ilhas, por vezes só mesmo de uma ou duas ilhas”, ilustra Filipe Costa.

“Os oceanos são abertos e assume-se que os organismos marinhos se dispersam facilmente entre ilhas próximas, e entre estas e o continente. Mas estes organismos parecem ter-se diversificado naquela região ao longo de milhões de anos, mantendo-se segregados até hoje, ao ponto de, pelo que sabemos, em muitos casos é o único local onde há espécies no planeta”.

Os investigadores não sabem ainda se este padrão se estende a outro tipo de invertebrados da zona entre marés, mas os resultados entretanto obtidos em poliquetas (anelídeos) das ilhas sugerem igualmente a existência de endemismos. Confirmando-se este padrão de elevada e única biodiversidade de invertebrados marinhos nos três arquipélagos, isso virá reforçar a pertinência de os incluir entre as “áreas marinhas ecológica ou biologicamente significantes”, conforme reconhecido pela Convenção sobre a Diversidade Biológica da ONU. Este estatuto foi atribuído em 2023 a algumas regiões destas ilhas e já é aplicado a mais de 300 locais no mundo, como as ilhas Galápagos, o canal de Moçambique e o delta do Nilo.



Alguns membros da equipa ME-Barcode da UMinho, junto à entrada do IB-S, no campus de Gualtar, em Braga


Coordenar a gestão das populações marinhas
 
O CBMA lidera um programa de monitorização de ovos, larvas e fauna de peixes no Oceano Atlântico, apoiando pescadores e autoridades na exploração e conservação de espécies. A equipa pretende obter dados sistematizados sobre locais e períodos de desova, bem como estimativas do recrutamento e do manancial reprodutor, utilizando DNA metabarcoding e DNA ambiental (eDNA). O eDNA é isolado diretamente de uma amostra ambiental, por exemplo, ao recolher alguns gramas de solo ou sedimento, ou mesmo aerossóis. No caso do oceano, recolhe-se um pequeno volume de água, que é depois filtrado, ficando retido no filtro o eDNA dos peixes, resultante da libertação de dejetos, escamas ou muco da pele.

O trabalho tem parceiros do Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Portugal. Este é um dos 287 projetos mundiais endossados pela Década dos Oceanos da ONU e integra o programa global Ocean Biomolecular Observing Network (OBON). Em termos de financiamento, agrega os subprojetos “FISH-DNA-MONITOR” (apoiado pela Fundação Aga Khan e FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia) e "A FISH-DNA-SCAN" (obteve 300 mil euros no âmbito do concurso do V Centenário da Circum-Navegação de Magalhães).



Programa nacional deteta espécies invasoras
 
Portugal tem das maiores zonas económicas exclusivas do globo e, pelo contexto geopolítico e pela atividade comercial e lúdica, os portos e marinas estão expostos a espécies não nativas (NIS). Assim, o CBMA está a desenvolver um plano nacional de monitorização dessas espécies ao longo da costa, usando DNA metabarcoding e técnicas convencionais, para detetar NIS com redes de zooplâncton e na fauna encrustada nas estruturas da marina, pneus e cabos dos barcos”, nota Flipe Costa. Alguns pontos de análise são Viana do Castelo, Leixões, Aveiro e Ponta Delgada. Já se detetaram 24 espécies não-indígenas. O projeto chama-se “NIS-DNA”, tem vários parceiros e teve um financiamento inicial da FCT de 240 mil euros.

O CBMA soma também dois projetos nacionais inseridos no Pacto para a Bioeconomia Azul, liderado pelo consórcio INNOVAMAR e financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência. No primeiro deles, coordenado pelo grupo SONAE, desenvolve um sistema de rastreio de parasitas em peixes selvagens por meio de DNA barcodes, identificando quais são e qual a sua origem e prevalência. “A ocorrência destes parasitas leva os consumidores a rejeitar o peixe parasitado, pelo que importa separar lotes de pescado que vão para consumo direto, ou para outras finalidades como farinhas ou rações”, ilustra Filipe Costa. Já o segundo projeto monitoriza invertebrados que vivem nos sedimentos costeiros, com recurso a DNA metabarcoding, para determinar o potencial de biorremediação das aquaculturas multitróficas integradas, como modelo de exploração sustentável e de minimização dos impactos nos ecossistemas.