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Cidades quentes
30-11-2023
Fernando Bessa Ribeiro
Temos que avançar rapidamente e com determinação com um programa de revegetalização e de mobilidade suave, sem descurarmos os caminhos para uma reorganização laboral e do lazer, enfim, um outro modo de viver a cidade, mais convivial e desacelerando o trabalho, a mobilidade e o consumo.
As cidades são lugares cruciais na história, nelas se geraram algumas das revoluções que mudaram o mundo, incluindo esculpir nele, como uma das suas marcas fundamentais, a urbanização. Assim, se as cidades são lugares “quentes” do ponto de vista sociopolítico, lugares de produção, confluência e expressão das mais diversas lutas sociais, elas são também quentes, já não no sentido figurado, devido aos efeitos produzidos pelo aquecimento global.
Mesmo que tal possa ressoar estranho num mês de novembro que conheceu dias particularmente frios, os dados conhecidos não deixam dúvidas: o aquecimento climático impacta de forma mais severa nas cidades, tornando-as particularmente vulneráveis aos efeitos decorrentes de fenómenos extremos como ondas de calor, inundações, secas e tempestades. Podendo as questões urbanas ser analisadas a partir de diferentes perspetivas teóricas e disciplinares, não suscitará grande controvérsia entre quem investiga no campo do urbanismo se escrever que hoje nos confrontamos com cidades mais quentes do que nunca.
Acolhendo as cidades hoje largamente mais de metade da população mundial, estima-se que nelas viverão quase ? da população mundial em meados do século. Sendo os seus edifícios, praças e ruas recetores e acumuladores excecionais de energia solar, esta propriedade termogénica é especialmente dramática para as zonas urbanas mais desfavorecidas onde pobres e excluídos vivem amontoados em habitações precárias e insalubres. Trata-se de um número de uma grandeza que nos interpela e que nos devia inquietar: mil milhões de pessoas vivem em favelas, a esmagadora maioria em países quentes, fazendo com que a vida de cada uma delas se torne ainda mais extenuante, penosa e frágil.
Aos velhos problemas e lutas pela habitação, transporte e serviços públicos, que davam expressão à rebeldia de quem vive na cidade, convocando um dos conhecidos textos de David Harvey, junta-se com imperiosa urgência a questão ambiental. Constituindo-se como parte fundamental da contestação à “economia que mata”, citando o Papa Francisco, a luta nas cidades por um outro tipo de urbanismo que permita viver melhor, necessariamente de outro modo, compatibilizando-as com os limites ecológicos do planeta, coloca-se no centro da agenda política e social. Sendo as cidades muito heterogéneas, expressando as profundas desigualdades sociais, económicas e tecnocientíficas que definem (e sobretudo desfiguram) o mundo, coloca-se sempre a questão: o que se pode fazer, aqui e agora, nos lugares onde se habita e trabalha?
Arrefecendo os eventuais entusiasmos dos que acreditam que a mudança se faz pela acumulação de milhões de ações individuais, nada de realmente significativo ocorrerá se não formos capazes de uma transformação sistémica que asfixie a economia que mata. E ela mata muito, destruindo vidas humanas, produzindo a maior extinção de vida da história do planeta, com o desaparecimento em massa de espécies e de biodiversidade, a que se alia a destruição de
habitats
, a poluição, o aquecimento global e a recorrência e força crescentemente devastadora dos fenómenos climáticas extremos, tendo por pano de fundo a superação de seis dos nove limites planetários. Neste sentido, é vivamente recomendável evitar as fantasias: no monitor do radar do futuro não se descortina qualquer “terra prometida”, antes está cada vez mais nítido o abismo do colapso ambiental, como repetidamente nos tem avisado António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas.
Mesmo que nada mais façamos do que atrasar a chegada do colapso, permanece por responder a questão acima formulada: o que podemos fazer nas cidades que habitamos? O que se pode fazer nas cidades onde a Universidade do Minho tem instalações, ou seja, onde trabalham estudantes, professores, investigadores, gestores, técnicos e outros trabalhadores? Isto é, como responder à emergência climática na cidade? Sem qualquer pretensão de originalidade, temos de avançar rapidamente e com determinação com um programa realmente sério de revegetalização e de mobilidade suave, sem descurar os caminhos para um outro modo de organizarmos o trabalho e o lazer, enfim, um outro modo de viver a cidade, necessariamente mais convivial e lento, reduzindo e desacelerando o trabalho, a mobilidade e o consumo.
Tomando como exemplo o programa já em curso em Paris, trata-se de colocar árvores nos espaços até agora asfaltados e impermeabilizados, multiplicando os parques e jardins em lugar de se persistir com a expansão e densificação urbana. Reduzindo e até suprimindo as avenidas e as ruas para a circulação automóvel, tal implicará a promoção da mobilidade suave, seja em bicicleta, seja a pé, ao mesmo tempo que se alarga e intensifica a disponibilidade de transporte urbano coletivo. Sendo os
campi
da Universidade do Minho alguns dos principais emissores de tráfego automóvel nas nossas cidades, nenhuma mudança será bem-sucedida sem a envolver. Se colocarmos como objetivo a reflorestação dos seus parques de estacionamento à superfície, mais as zonas nas imediações dos
campi
atulhadas todos os dias de milhares de automóveis, sabemos bem o que temos de fazer. Vamos a isso?
Professor do
Departamento de Sociologia
do
Instituto de Ciências Sociais
da Universidade do Minho
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