“As questões sociais estão em mim desde criança”

17-02-2024 | Pedro Costa | Imagem vídeo: Adriana Monteiro | Fotos: Nuno Gonçalves

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Isabel Soares, professora catedrática e investigadora da Escola de Psicologia e presidente do laboratório colaborativo ProChild, recebe hoje o Prémio de Mérito Científico da UMinho 2024.




Isabel Soares nasceu no Porto e leciona há 30 anos na Universidade do Minho, onde é membro do Conselho Geral, professora catedrática da Escola de Psicologia - que já presidiu - e investigadora do Centro de Investigação em Psicologia (CIPsi). É desde tenra idade uma cidadã consciente de uma sociedade desigual, pelo que contribuir para a mudança social sempre fez parte das suas inquietações. Centra a sua pesquisa na psicopatologia do desenvolvimento e na psicologia clínica, coordenando estudos sobre crianças e famílias em situação de elevada vulnerabilidade e risco psicossocial.

Membro do Conselho Nacional de Psicólogos da Ordem dos Psicólogos Portugueses, em 2023 foi-lhe atribuído o Prémio Ibérico de Psicologia pela Ordem dos Psicólogos Portugueses e pelo Consejo General de Psicologia de Espanha. Tem mais de 150 publicações em livros e revistas científicas e orientou dezenas de teses. Foi responsável pelo lançamento do laboratório colaborativo ProChild CoLAB, que recebeu o Prémio Direitos Humanos 2023 atribuído pela Assembleia da República e pretende ser a referência nacional no desenvolvimento de soluções contra a pobreza e promoção dos direitos das crianças.
 
No momento em que recebe, na cerimónia dos 50 Anos da UMinho, uma das mais importantes distinções da sua universidade, Isabel Soares partilha em entrevista ao NÓS um pouco mais das suas raízes, dos desafios sociais que lhe alimentam o caminho, bem como do conhecimento novo que deseja explorar no seu futuro.





 
“A dimensão familiar foi e é estruturante para mim”
 
Quem é a cidadã Isabel Soares?
Em primeiro lugar, diria que sou uma pessoa que valoriza extraordinariamente a família. Tive uma família muito próxima. Os meus pais acompanharam-me muito e tive a felicidade de ter um pai e uma mãe muito dedicados aos filhos. Foram verdadeiros modelos como pessoas e como pais. Fui muito amada e apreciada enquanto pessoa e isso foi fundamental para o meu crescimento e bem-estar. Aos 18 anos conheci o meu marido e tive oportunidade de entrar numa nova família. Uma família muito grande, acolhedora e altamente estimulante do ponto de vista intelectual, cívico e político. Uma família onde encontrei uma outra mãe, a minha sogra, que era uma mulher absolutamente extraordinária e que continua a ser para mim um modelo. Mais tarde, tive o privilégio de ser mãe e ter dois filhos fantásticos. Hoje eles são adultos, já casados e tenho três netos muito queridos. Sou uma mãe, uma sogra e uma avó muito feliz.
 
Também se alimenta nas relações de amizade...
Sem dúvida. Ao longo da vida, fui contruindo relações de amizade em contextos diferentes, muitas das quais se estendem desde a infância e adolescência. No seu conjunto, tenho amigos e amigas que são pessoas muito diferentes, cada uma é única e especial para mim, e permanecem na minha vida, ao longo do tempo. A estabilidade e a profundidade das relações de amizade é algo muito importante para mim, que procuro cuidar e preservar.
 
Onde entra o olhar para o social?
A importância das questões sociais, a preocupação com as desigualdades, com a exclusão e pobreza e a necessidade de agir, de procurar contribuir para a mudança social, é algo que aprendi muito cedo. Os meus pais foram pessoas que me deram a oportunidade de conhecer um mundo bem diferente daquele em que eu estava a crescer. Entre os 7 anos e os 9, 10 anos, com os meus pais, tive a oportunidade de participar num movimento cívico, o Movimento Juvenil de Ajuda Fraterna. Aos fins de semana, juntávamo-nos a um grupo de pessoas com formações e profissões muito diversas, que, em conjunto, trabalhavam para construir casas para pessoas que não tinham habitação. Num tempo de elevada repressão, de opressão e censura ativas, este grupo empenhado em causas sociais conseguiu construir e equipar 11 casas, trazendo luz para as condições de vida de pobreza extrema e para as desigualdades sociais, que o poder político procurava esconder. Depois tive também a oportunidade de viver intensamente o 25 de Abril e todo esse período revolucionário. Em janeiro de 1975, com 18 anos, fui estudar Psicologia para Lisboa e durante dois anos pude experienciar as múltiplas transformações sociais e políticas que estavam em curso e que contribuíram, decisivamente, para a minha abertura ao mundo, à diversidade e, para a minha consciência social, ajudando-me a construir um sentido de cidadania ativa.
 
E o lazer? 
É uma área muito importante da minha vida, fundamental para o meu equilíbrio pessoal e bem-estar. Gosto muito de experimentar coisas novas e diferentes, de conhecer novos lugares e culturas. Viajar é uma paixão, descobrindo novos lugares e regressando a sítios que gostei muito, para os conhecer melhor. Aprecio o silêncio e estar só, quando estou cansada. Gosto de caminhar e do exercício físico, que é muito importante para o meu bem-estar. A literatura e o cinema são outras das minhas paixões.  
 
Conceitos como “estabilidade” e “equilíbrio” parecem ser caros para si...
Sim! Sem dúvida. Claro que vivi infortúnios, dificuldades, problemas e não tenho uma visão romântica da minha vida, mas o balanço é claramente positivo. Eu sou uma pessoa feliz e acho que a minha vida me proporcionou, ao longo do tempo, um nível elevado de bem-estar e de realização pessoal nas várias áreas. E isso, em grande parte, decorre da estabilidade. A estabilidade que me proporcionaram e a estabilidade que procuro criar e valorizar nas várias áreas da minha vida. Ao nível profissional, por exemplo, é muito gratificante manter relações de trabalho ao longo de mais de 30 anos, atravessando gerações de estudantes, muitos dos quais foram estudantes de mestrado ou doutoramento e hoje são colegas. É mesmo emocionante para mim acompanhar de perto o seu crescimento profissional, as suas careiras, ter o privilégio de aprender com eles e com elas, criar novos projetos nos quais vão sendo formados novos alunos e novas alunas. Penso que a minha carreira sempre assentou na “colaboração”, com colegas (inter)nacionais e de áreas afins, permitindo novas sinergias e um sentido de complementaridade nos nossos projetos co-construídos. E tudo isso foi e é muito importante para a minha produtividade e para o meu bem-estar.
 
Como olha para um mundo tão instável?
Estou muitíssimo preocupada com o que se passa no atual contexto sociopolítico em Portugal e no mundo. Procuro manter-me informada, acompanho com muita atenção o que está a acontecer em Portugal, na Europa e nos EUA, e a guerra e os acontecimentos terríveis, absolutamente inaceitáveis na Ucrânia e na Palestina, para alem de outros territórios que, infelizmente, não recebem a atenção necessária. Na nossa família acompanhamos e debatemos muito as questões e os desafios que se colocam hoje no plano político, mas também ao nível social e económico, em Portugal e no mundo.
 
Foi uma criança com sonhos? 
Confesso que a minha infância não foi muito preenchida com sonhos e projetos para o futuro. Olhando para trás, os meus sonhos do ponto de vista de atividade profissional ou social emergiram já numa fase mais avançada da adolescência e juventude. Acho que vivi muito o presente na infância. Quando era pequenina, o que eu gostava mesmo era de brincar e também de estar na escola, que foi um contexto muito positivo para mim. Mas, acima de tudo, o que eu adorava era poder ir brincar com as minhas amigas quando acabava a escola.
 
Via-se a fazer outra coisa se não fosse investigadora?
Acho que sim. Adoro o que faço. Mas acho que podia ter feito outra coisa, seguido outra carreira e, provavelmente, estar tão feliz e satisfeita como agora. Tenho uma visão aberta relativamente àquilo que as pessoas podem fazer. São processos evolutivos e construtivos, mais abertos do que determinados previamente, mas, obviamente, há constrangimentos e que têm que ver com a história de vida de cada pessoa, com as suas caraterísticas pessoais e os contextos de vida. No meu caso, um aspeto chave é trabalhar com pessoas. Tenho dificuldade em imaginar-me a trabalhar com máquinas ou em contextos solitários. Do modo que me organizei enquanto pessoa, eu preciso das relações, de um contexto relacional que dá sentido ao que eu vou fazendo. A colaboração é uma dimensão chave, estruturante da minha careira académica e do modo como eu vejo a produção do conhecimento científico. É um trabalho multivocal, a “várias mãos” diferentes e complementares, que se organizam e se fortalecem em torno da realização de um projeto partilhado. Portanto, se esses ingredientes estivessem presentes, com certeza poderia também ser feliz e estar bem em outros contextos.
  
É uma pessoa positiva ou tem sido mesmo feliz?
Eu acho que as duas coisas. Porque a felicidade é também aquilo que construímos internamente e que percecionamos. Em geral, sou uma pessoa positiva, mas reconheço que, em algumas situações, tenho uma visão cautelosa e posso até sofrer por antecipação. Felizmente, fui aprendendo a regular isso, tenho um marido otimista e que me ajuda a contrabalançar nesses momentos mais complicados para mim. 





O 25 de Abril foi um laboratório social vivo brutal!”
 
Este mundo do comportamento foi algo que lhe surgiu muito jovem?
Estive desde cedo envolvida em projetos em contextos de pobreza e exclusão. Nesse sentido, fui ganhando consciência social das desigualdades e a área social foi tendo mais importância para mim. Quando cheguei ao sexto ano do liceu – atual 10º ano – tive a disciplina de Psicologia, que me despertou um enorme interesse. Nesse tempo havia apenas um curso de Psicologia no ISPA, em Lisboa. para onde fui e onde estive dois anos, num período extraordinariamente importante em Portugal, logo após o 25 de Abril...
 
Um dos momentos mais marcantes do século XX em Portugal.
Sem dúvida! Fui viver para Lisboa, estudar no “melhor laboratório urbano”, durante 1975 e 1976. Uma experiência absolutamente única e inesquecível, numa escola em que as paredes eram cartazes anunciando a revolução em vários formatos, estilos e cores e onde o debate era o sumário de todas as aulas sobre o comportamento humano. A revolução incorporava as relações de amizade e de amor, vividas em plenitude, intensas e experimentais. Estes tempos mudaram-me/nos e moldaram-me/nos de diferentes formas. Nem sempre fomos ou temos sido capazes de fazer o melhor com o melhor que vivemos nestes tempos, com a liberdade que conquistámos e com a democracia que construímos. No tempo presente, em que a democracia e a liberdade podem ser ameaçadas, a memória coletiva do 25 de Abril tem que estar acordada e vigilante. As memórias da minha geração são um bem a preservar e a partilhar com aqueles que nasceram quando os cravos já tinham florido em Portugal. O 25 de Abril trouxe inúmeras oportunidades, entre as quais a entrada da Psicologia no ensino superior público, através da criação de cursos de Psicologia nas universidades do Porto, Coimbra e Lisboa. Como sou do Porto, tive a oportunidade de ingressar aí no curso de Psicologia, em 1976. A partir dessa altura, a Psicologia passou a ter relevo, a ser uma prioridade e um projeto de vida para mim.
 
Depois a academia...
Quando terminei a licenciatura em 1980, continuar na academia era o meu projeto. Concorri e fiquei como assistente estagiária na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. Integrei o primeiro contingente de licenciados, formado nas recém-criadas faculdades de Psicologia, tendo tido a oportunidade de começar a desbravar o território emergente da Psicologia em Portugal. Tive o privilégio de participar no início de quase tudo nesta área, no lançamento de múltiplos projetos de intervenção psicológica em contextos de saúde, de educação, em centros comunitários, em estreita articulação com o início da minha carreira académica como assistente estagiária. Esta transversalidade de experiências e de saberes, esta ligação estreita entre ciência e profissão formatou a minha identidade como docente-investigadora-psicóloga. 
 
As problemáticas relacionadas com a criança e com pessoas em situação de pobreza começam a surgir aí.
A problemática da pobreza ganha relevo após o meu doutoramento, quando a minha investigação, na sequência de estudos prévios, passa a estar centrada nas relações de vinculação em contextos de elevada adversidade, examinando o seu impacto no desenvolvimento das crianças nos primeiros anos de vida e no estabelecimento e desenvolvimento de um vínculo afetivo. Coordenei vários estudos com crianças em acolhimento institucional, que evidenciaram os efeitos nefastos do acolhimento residencial e da institucionalização no desenvolvimento das crianças e na vinculação. Penso que a nossa investigação veio dar luz sobre um grupo de algum modo “invisível”, os bebés e as crianças pequeninas em instituições com privação de cuidados familiares. Os resultados dos nossos estudos mostraram que a resposta (social) não deveria ser a institucionalização, mas uma família capaz de promover efetivamente o seu bem-estar e desenvolvimento. Em 2015, uma lei veio enunciar como medida preferencial o acolhimento familiar, em detrimento do acolhimento residencial, o qual põe em causa o direito da criança a uma família. Abriu-se aqui um novo caminho para estes bebés e crianças, o acolhimento familiar, que precisa de ser muito bem “cuidado”, de modo a ser verdadeiramente capaz de promover o seu desenvolvimento e o bem-estar.
 
Estando ainda tão entusiasmada com a investigação, pergunto-lhe: lecionar ou investigar?
Ambas, sem dúvida. Na nossa Escola de Psicologia, do ponto de vista organizacional e pedagógico, ensino e investigação estão ligados desde o 1º ciclo, permitindo que a aprendizagem esteja bem suportada na ciência e no processo de construção do conhecimento científico. Sendo duas áreas diferentes, com regras e configurações distintas, têm em comum o processo de desenvolvimento: de pessoas e de ideias/projetos... Na docência, uma das coisas mais gratificantes para mim é poder observar e participar no crescimento dos/das estudantes, enquanto pessoas e futuros/futuras profissionais. Se isso já é notório ao longo do ano, ainda é mais evidente quando os/as acompanhamos desde o primeiro ciclo, durante o mestrado e doutoramento. Vamos assistindo a esta evolução, a uma progressão na construção do seu conhecimento e que se configura numa pessoa que se vai autonomizando para vir a ser profissional. Na investigação, o processo é algo semelhante. Porque nós partimos de uma ideia ou pergunta, fundamentada no trabalho prévio, nosso ou de outros, avançamos na recolha e tratamento de dados e o projeto começa a ganhar corpo, permitindo chegar à comunidade académica e à sociedade. E todo este processo evolutivo é muito gratificante. São anos ao longo dos quais vamos consolidando o conhecimento e vendo materializado algo que começou com uma questão ou um desafio, a examinar, a operacionalizar e a procurar responder em conjunto, numa rede colaborativa, num processo de desenvolvimento de pessoas, de ideias e de conhecimento.
 
E quanto aos cargos de gestão que tem desempenhado, vê-os como missão ou já estão em si na perspetiva da liderança?
Nesta fase avançada da minha vida, a gestão e a liderança já “estão em mim”. Vejo a gestão como uma missão e uma responsabilidade que temos na nossa carreira académica, é uma forma de contribuirmos para a organização em que estamos a trabalhar. No meu caso pessoal, desde cedo fui sendo desafiada a assumir funções de responsabilidade do ponto de vista da gestão. Primeiro ao nível pedagógico e depois, progressivamente, em diferentes órgãos da universidade. Isso foi profundamente enriquecedor na minha forma de compreender e de estar na universidade e na escola.



 
 
“O ProChild enfrenta o desafio da autosustentabilidade”
 
Pode dizer-se que o ProChild é o seu grande projeto académico?
Neste momento, sem dúvida. Até diria mais: é também um projeto de vida. É um privilégio. Porque este laboratório colaborativo é uma oportunidade que tenho, numa fase avançada da minha vida profissional, de contribuir para uma causa que foi sempre muito importante para mim, que é o combate à pobreza e à exclusão social na infância. A esse nível, junto duas coisas importantes: a minha visão do mundo e a missão enquanto cidadã, com a minha área profissional, a Psicologia, enquanto ciência e profissão com responsabilidades na transformação social, procurando contribuir efetivamente para o bem-estar das pessoas e das comunidades, em particular daquelas em situações de desvantagem, de exclusão e de adversidade. Foi, de facto, um privilégio trabalhar durante 2017 e 2018 como coordenadora de uma candidatura a laboratório colaborativo pela nossa Universidade, com o apoio inexcedível do CIPsi, de colegas da Escola de Psicologia e de outras escolas e da Reitoria, aos quais se juntaram entidades académicas e não-académicas do país. Desde o primeiro momento, o ProChild ergueu-se numa matriz colaborativa, em que a academia se liga a entidades não académicas, públicas e privadas, em torno de um conjunto de projetos que visam quebrar o ciclo intergeracional de pobreza e desigualdade, e prevenir as consequências negativas de crescer em contextos de elevado risco e adversidade bio-psico-social, tendo como desígnio o cumprimento efetivo da Convenção sobre os Direitos da Criança.

A pobreza e a exclusão social constituem violações dos direitos das crianças. 
Que têm de ser denunciadas, mas também combatidas através de ações efetivas e eficazes. Para tal, é necessária uma colaboração efetiva. O ProChild CoLAB integra 16 associados e colabora com mais de 100 entidades parceiras, incluindo instituições académicas, centros de I&D, organizações sociais, municípios e empresas públicas e privadas. No seio desta rede colaborativa são desenvolvidos, implementados e avaliados projetos transdisciplinares de investigação, desenvolvimento e inovação, concebidos quer como alicerces, quer como alavancas para a mudança social, tecida numa aliança estreita entre a equipa ProChild, académicos e profissionais no terreno. Sabemos que o combate à pobreza e a todas as formas de discriminação e violência constituem problemáticas multidimensionais de grande complexidade. Neste sentido, defendemos que é imprescindível o alinhamento e articulação das políticas, com monitorização e avaliação do seu impacto, eficiência e eficácia. Para ganharmos este combate, é crucial e urgente colocar a criança no centro da agenda política. Mas esta centralidade só será efetiva e eficaz através de medidas ativas de política pública, de ações concretas que contribuam de forma decisiva para o desenvolvimento e bem-estar das crianças e suas famílias.
 
Imaginou, no ponto de partida, todos os caminhos que foram percorridos pelo projeto ao longo deste tempo?
Não, confesso. Isto partiu da academia, e, desde logo, numa ligação muito estreita com o Município de Guimarães, a quem estou e estarei sempre muito grata, e logo a seguir outras entidades, expandindo-se pela região e pelo país. O ProChild CoLAB integra um conjunto vasto de universidades com centros de investigação de áreas distintas que o tornam verdadeiramente transdisciplinar. Os problemas aos quais queremos dar resposta têm aqui uma comunidade diversificada do ponto de vista de saberes e experiência, que torna a nossa capacidade de resposta muito mais eficiente. Estes membros da academia trabalham de forma verdadeiramente colaborativa com a própria equipa do ProChild, atualmente com 29 colaboradores muito qualificados e de várias áreas científicas.
 
Que desafios imediatos tem o projeto?
Existem vários desafios pela frente, exacerbados pelo atual contexto de instabilidade política e económica. Destacaria dois desafios principais: a sustentabilidade a longo prazo e a internacionalização, que acredito serem comuns a todos os Laboratórios Colaborativos (CoLABs) e dois desafios mais específicos do ProChild. Quanto à sustentabilidade, é esperado que os CoLABs dependam de um modelo triangular de financiamento, incluindo financiamento estatal de base, financiamento de projetos competitivos e financiamento autogerado. A estrutura de receitas dos CoLABs deverá atingir um modelo conceptual de financiamento (1/3, 1/3, 1/3). Este é, obviamente, um caminho de maior exigência para o ProChild, um laboratório com uma agenda social centrada na pobreza. O segundo desafio é a internacionalização: prevê-se que os CoLABs se tornem participantes ativos no mercado internacional de inovação. Muitos CoLABs já iniciaram a sua presença internacional, principalmente através do meio académico, envolvendo-se em colaborações e parcerias para o desenvolvimento de projetos e concursos competitivos. No entanto, é necessário reforçar a colaboração internacional, especialmente no que diz respeito a produtos e serviços. Para o ProChild, este caminho vai ainda no início, estamos a começar a estabelecer parceiras com o Brasil e Espanha, querendo alargar para África. Além destes dois desafios, há outro que decorre da nossa agenda de I&D&I.

Qual é?
O ProChild desenvolve programas de intervenção modelo e outras ações adaptadas às necessidades das instituições, profissionais e equipas, mas também famílias e crianças. A escalabilidade de projetos e soluções à medida é altamente dependente de recursos humanos e isso implica um crescimento gradual e não um crescimento exponencial. O nosso trabalho tem que ser muito bem equilibrado, porque temos uma equipa que tem que responder aos projetos em curso e, ao mesmo tempo, antecipar desafios e projetos para o futuro, para garantir a nossa sustentabilidade. Além disso, os nossos projetos exigem uma equipa altamente qualificada, o que acarreta elevados custos, podendo também dificultar a expansão dos projetos. Por fim, há a preocupação com o reconhecimento de âmbito nacional do ProChild e que é necessário para a sua consolidação e expansão. Fizemos bons progressos neste caminho e o Prémio Direitos Humanos 2023 que nos foi atribuído pela Assembleia da República é uma prova disso. Precisamos de continuar a fortalecer as nossas atividades de advocacia e de ação na arena sociopolítica em torno da defesa dos direitos das crianças e do combate à pobreza e exclusão social.
 
Que significado tem para si o Prémio de Mérito Científico 2024?
É uma grande honra receber este prémio. É uma alegria ter este reconhecimento da minha carreira construída nesta casa ao longo de 30 anos. Fiquei emocionada quando soube da atribuição e estou muto feliz. Mas este é, para mim, um prémio coletivo. A minha carreira e o trabalho que tenho vindo a desenvolver ao longo de muitos anos só foi possível graças ao privilégio de ter encontrado pessoas verdadeiramente únicas e que me inspiraram. Em primeiro lugar, a minha família que me proporcionou todas as condições para poder avançar na carreira e realizar os meus sonhos. Este prémio só é possível pelo apoio e incentivo que sempre tive dos meus pais, do meu marido, dos meus filhos e da minha família alargada, que foram um modelo e um estímulo para mim. Tive ainda a oportunidade de ter sido acompanhada por outro grupo de pessoas muito importante para o meu crescimento profissional e pessoal: estudantes e colegas na academia, pacientes na minha atividade clínica, crianças e famílias em situação de vulnerabilidade na minha atividade de investigação. Estas pessoas especiais foram pilares fundamentais da minha aprendizagem e do meu desenvolvimento pessoal e profissional. Eles e elas são protagonistas deste prémio. A todos e a todas, que deixaram em mim o seu legado, fica aqui a expressão pública da minha gratidão.
 
Onde gostaria de estar daqui a 10 anos?
Gostaria de estar a viver mais próximo dos meus filhos, noras e netos, que neste momento não vivem em Portugal. A nível profissional espero que, daqui a 10 anos, o ProChild seja a entidade nacional de referência no combate à pobreza e à exclusão social na infância, com resultados consolidados, decorrentes de projetos implementados de modo eficiente e com impacto significativo. Espero continuar a colaborar com o ProChild e outras organizações com agendas semelhantes. Acredito que o combate à pobreza no sentido da sua erradicação tem de ser sustentado em projetos articulados e com escala e densidade. Gostaria muito de continuar a estudar. Há algumas áreas para as quais espero ter tempo para me dedicar, como é o caso da literatura e da história, em particular da cultura árabe. Há um território novo, para o qual não posso esperar 10 anos, que é a inteligência artificial. Continuar, também, a desbravar o conhecimento no domínio das neurociências e da epigenética, que me fascinam, e que tenho o privilégio de ter vindo a aprender com colegas especialistas nestas áreas, no seio da minha equipa. Estudar é algo que quero continuar a fazer e espero ter saúde para o fazer. Portanto, vejo o meu futuro como um tempo para novas experiências a vários níveis e oportunidades de aprendizagem.