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Mais do que nunca, precisamos de falar de igualdade de género
28-03-2024
Ana Maria Brandão
Perguntar quem tem medo do género é perguntar quem tem medo de perder poder e privilégios e porquê.
Judith Butler acaba de publicar um novo livro onde retoma um tema que deixou para trás há anos: o género. Parece-me apropriadamente intitulado “Quem tem medo do género?”. Este texto não é, no entanto, sobre a obra, que ainda não li, nem uma resposta à questão levantada, mas um apelo ao/à leitor/a para que procure essa resposta.
O inexorável processo de globalização haveria de trazer-nos, mais tarde ou mais cedo, a discussão mais ou menos esdrúxula acerca da chamada “ideologia de género” atrelada a invocações apocalípticas de um fim dos tempos resultante da defesa intransigente da igualdade de género e que assume o adjetivo “feminista” como derradeiro insulto. Os argumentos esgrimidos levantam a questão de saber se quem assim fala alguma vez se deu ao trabalho de ler alguma coisa – e por “alguma coisa” entenda-se o somatório ou parte do somatório da investigação e da reflexão sistemática já produzidas – sobre o assunto.
Poderíamos resumir aqui a resposta a algumas dessas ideias: não, a educação sexual precoce não faz com que crianças e adolescentes se dediquem a bacanais precoces – mas permite prevenir, por exemplo, gravidezes indesejadas – ou se transformem em pessoas LGBT+ – mas melhora a saúde mental e incentiva o respeito por/ (d)estas; não, as pessoas cis não correm maior risco de ser agredidas por pessoas trans se estas usarem a mesma casa de banho – na verdade, a vitimização de pessoas trans é proporcionalmente mais elevada do que a vitimização de pessoas cis e as casas de banho não são o espaço ou o contexto privilegiado de agressão destas últimas, nem as pessoas trans se encontram entre os/as seus/suas principais agressores/as; não, falar sobre género não implica ignorar o contributo da biologia, do corpo, do sexo para aquilo que somos e para a forma como nos vemos; e não, a defesa da igualdade de género não é sinónimo de anulação das diferenças de género porque o antónimo perfeito da igualdade não é a diferença – é a desigualdade. A desigualdade de direitos e de oportunidades que decorre não das diferenças entre pessoas, mas de fatores estruturais que as limitam e impedem de se realizar como seres humanos integrais e igualmente dignos de respeito.
Nas vésperas da comemoração dos cinquenta anos do 25 de Abril, importa, por isso, perguntar se queremos ver novamente inscrita na Constituição e nas leis a real subordinação de cerca de metade da população à outra metade; se queremos ver novamente vedado/a o acesso a certas profissões, o recebimento do salário pelo trabalho realizado ou a oportunidade de viajar para fora do país em função do género; se pretendemos reinstaurar o encarceramento compulsivo de quem – por determinação natural ou por livre escolha – se afasta do ideal normativo; se pretendemos voltar a um tempo em que o nosso corpo não era, verdadeiramente, nosso.
O acesso à educação, ao voto, ao exercício de uma profissão, à autodeterminação sexual, a ser ouvido/a no que à própria vida diz respeito não é acidental, nem fatal, e não diz respeito apenas às mulheres ou às pessoas LGBT+. É o resultado de décadas de uma luta que continua a ser travada todos os dias e cujos ganhos têm revertido a favor da humanidade e de toda a Humanidade. Perguntar quem tem medo do género é, por isso, perguntar quem tem medo de perder poder e privilégios e porquê.
Professora do
Departamento de Sociologia
do
Instituto de Ciências Sociais
da UMinho
Investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (
CICS.NOVA.UMinho
)
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