“É essencial discutir conceitos ao falar de políticas migratórias e políticas culturais”

24-04-2024 | Pedro Costa

Rosa Cabecinhas é investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) e professora associada com agregação no Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da UMinho

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Fluxos migratórios em território nacional conheceram considerável diversificação nos últimos anos, considera a investigadora Rosa Cabecinhas.




Rosa Cabecinhas coordena o projeto MigraMediaActs – Migrações, media e ativismos em língua portuguesa, financiado pela Fundação para a Ciências e a Tecnologia (FCT). O trabalho pretende suprimir uma lacuna na investigação acerca das narrativas sobre migração nas esferas públicas em língua portuguesa, abordando as interseções entre questões raciais, étnicas, de género e classe. A investigadora participa ainda no projeto CONCILIARE - Confidently Changing Colonial Heritage, que envolve 11 instituições e fundos do Programa Horizonte 2020 da UE. Esta rede pretende estudar as mudanças no património cultural colonial na Europa nos domínios de manuais escolares, espaço público, museus, produtos e tradições culturais. No Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UMinho, a sua equipa coordena a tarefa de cocriação de narrativas decoloniais e projetos de arte pública com associações.

 
De que forma o MigraMediaActs pode contribuir para a discussão dos fenómenos migratórios?
Os média contribuem frequentemente para reforçar fronteiras entre "nós" e os "outros", retratando os migrantes ora como ameaça (económica, securitária, identitária...) ora como vítimas que precisam ser ajudadas, mas raramente são retratados como agentes ativos de transformação social. A maior parte dos estudos foca-se na forma como os migrantes são representados nas notícias e na publicidade, por exemplo, sendo escassos os trabalhos que estudam a forma como os migrantes participam na produção noticiosa e cinematográfica. O objetivo geral do projeto é analisar a participação de migrantes e pessoas racializadas nos média em língua portuguesa. Pretendemos, nomeadamente, compreender a forma como usam os média para desconstruir fronteiras simbólicas e fomentar a comunicação intercultural. Assim, o projeto visa contribuir para uma maior visibilidade das pessoas que ocupam um lugar de alteridade no contexto português, enquanto agentes ativos na transformação social e na coconstrução de futuros mais justos e inclusivos.
 
Que contributos científicos estão envolvidos?
Pretendemos contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científico nas áreas da comunicação e migrações, que beneficie diretamente as pessoas racializadas, as comunidades migrantes, as comunidades educativas e a sociedade em geral. O projeto visa, também, potenciar relações construtivas entre investigadores, professores, jornalistas, artistas e outros atores sociais, promovendo a descolonização dos estudos da comunicação. Nos últimos anos, diversas formas de ativismo ganharam visibilidade pública, nomeadamente nos média digitais, no cinema e nas associações, entre outros. A equipa está a analisar diversas formas de ativismos decoloniais, em diferentes contextos. Assim, o projeto está organizado em quatro eixos, que se interligam: mapeamento e análise dos média digitais alternativos; mapeamento e análise do cinema diaspórico; e mapeamento e análise das associações de migrantes e pessoas racializadas que estão a intervir ativamente nos chamados ativismos decoloniais; um quarto eixo, em articulação com os anteriores, visa o desenvolvimento de um quadro de análise transdisciplinar sobre migrações, média e ativismos. Os ativismos decoloniais manifestam-se de diversas formas, nomeadamente enquanto “ativismo mnemónico”, ou seja, ativismo de memória. Tais ativismos visam desocultar histórias e resgatar memórias silenciadas, apelando ao “dever de memória”, isto é, à “responsabilidade ética de nunca esquecer” determinados acontecimentos históricos e suas implicações no presente.
 
Que produtos espera deste trabalho?
Estão já disponíveis diversos artigos científicos elaborados pelos membros da equipa e outras publicações estão submetidas e a ser delineadas. Por exemplo, estão abertas duas chamadas de trabalhos, no âmbito de números temáticos em revistas científicas coordenados por membros da MigraMediaActs, nomeadamente o número sobre “Migrações, comunicação e ativismos” na Revista Lusófona de Estudos Culturais e ainda sobre “Lembrar e esquecer: Estórias plurais e o documentário contemporâneo” da Zanzalá - Revista Brasileira de Estudos sobre Gêneros Cinematográficos e Audiovisuais. Estão também disponíveis duas das bases de dados no DataRepositoriUM, uma sobre média alternativos em Portugal e outra sobre o cinema produzido com financiamento público entre 2018-2022. Estamos ainda a produzir curtas-metragens a partir das entrevistas realizadas a ativistas. Neste momento, está em processo de publicação a primeira curta sobre a Maria Gil, que estará também no DataRepositoriUM. Outras produções estão em vias de concretização antes do final do projeto. Por último, mas não menos importante, destaco o papel do projeto na formação avançada de investigadores. Recentemente foi concluída a primeira dissertação de mestrado em Comunicação, Arte e Cultura e estão em andamento dissertações no âmbito do mestrado em MediaArts, assim como dissertações de doutoramento em Ciências da Comunicação e em Estudos Culturais.
 
Quanto ao projeto CONCILIARE, cruza-se com estas linhas de investigação?
O CONCILIARE tem por objetivo geral a análise das perceções públicas sobre o património cultural e visa desenvolver estudos sobre a forma como as pessoas aderem, enfrentam ou contestam as transformações em curso. A equipa do CECS cocoordena o grupo de trabalho “Public Spaces” e coordena a tarefa "Co-creation and dissemination of inclusive decolonial narratives”. Esta tarefa visa fomentar um processo de cocriação de narrativas decoloniais em diferentes cidades europeias, nomeadamente através de projetos de arte pública desenvolvidos em articulação com diversas associações, nomeadamente de migrantes. O projeto arrancou em meados de março. Após o mapeamento de natureza comparativa nos diversos países envolvidos, iremos fazer alguns estudos de caso sobre intervenções decoloniais em curso. Depois, iremos então iniciar a fase de cocriação de intervenções públicas. Neste sentido, o nosso trabalho irá beber em diversas fontes, nomeadamente no que estamos a realizar junto das associações migrantes em Portugal no âmbito do MigraMediaActs. No entanto, iremos analisar dimensões diferentes, já que o MigraMediaActs foca-se sobretudo na agência das pessoas migrantes e racializadas na produção mediática - média digitais informativos, cinema... -, enquanto o CONCILIARE se foca nas perceções sobre o património cultural e no modo como diversos grupos estão, ou não, incluídos no espaço público - por exemplo, toponímia, monumentos, museus, festividades, circuitos culturais, entre outros. Ambos os projetos são de natureza inter e transdisciplinar, em que as ciências da comunicação e os estudos culturais são articulados com outras áreas de conhecimento. A equipa de ambos os projetos no CECS é de natureza multidisciplinar e internacional. É de referir que, além de mim, duas colegas investigam nos dois projetos - Sheila Khan e Isabel Macedo, que é coinvestigadora principal da MigraMediaActs.
 
Sendo as migrações um tema tão presente, há paralelismo de interpretação nestes projetos com a atualidade?
As migrações são uma constante na História da humanidade. Embora haja algum grau de incerteza quanto aos números exatos envolvidos, podemos dizer com segurança que os fluxos migratórios nunca foram tão numerosos e tão diversificadas quanto na atualidade. Por um lado, as tecnologias de comunicação e de transporte, por exemplo, têm permitido uma mobilidade “voluntária” sem precedentes; por outro, os conflitos armados e as alterações climáticas, entre outros fatores, têm contribuído para migrações forçadas, cujos impactos se fazem sentir tanto no país ou região de “origem” como no país de “destino”. Em alguns casos, as mudanças ocorrem a uma velocidade sem precedentes, o que coloca consideráveis desafios a todas as pessoas e instituições envolvidas. Em Portugal, as questões migratórias assumem particular complexidade, dada a longa história do país e lugar semiperiférico que ocupa no quadro das relações de poder a nível mundial. Portugal é simultaneamente um país de emigração e de imigração. Estes fluxos migratórios conheceram uma diversificação considerável nos últimos anos. Aém disso, o assunto das migrações foi mobilizado e instrumentalizado nas últimas eleições legislativas. São, por isso, muitos os desafios que se colocam nos média e no espaço público em geral. As ciências da comunicação, pela sua natureza transdisciplinar, ao mobilizarem diversos níveis de análise, são essenciais para um melhor entendimento desta complexa problemática. A partir de uma perspetiva situada e interseccional, considerando a complexidade das dinâmicas identitárias nas sociedades contemporâneas, pretendemos contribuir para interrogar modos de pensar, sentir e agir sobre nós e sobre o mundo.

Que exemplos identifica no discurso mediático?
As expressões “imigrantes”, “minorias étnicas”, “etnias”, “raças” são frequentemente associadas, remetendo para o entendimento de “imigrante” como alguém que difere da “norma” em termos raciais e culturais (religião, língua...). Quando a cor de pele não é explicitada como critério de demarcação, ela é frequente operacionalizada através de imagens (fotografia ou vídeo), reforçando implicitamente a alegada ligação entre “raça” e cultura. Frequentemente, a cultura é percebida em termos essencialistas, isto é, como fixa e imutável, sendo que qualquer influência vinda de “fora” é percebida como potencial ameaça identitária. Vinda de “fora” não é equivalente a dizer vinda do “exterior”, já que depende do estatuto social e prestígio que é atribuído a quem vem de “fora”, ou seja, nem todas as pessoas estrangeiras são vistas como “imigrantes” e nem todas as pessoas nacionais são consideradas como “cidadãs”. De facto, a xenofobia não é exclusivamente dirigida a pessoas estrangeiras de um determinado país. Por exemplo, em Portugal, as pessoas ciganas são alvo de reiterados ataques xenófobos, embora habitem o território e sejam portuguesas há mais de cinco séculos, e as pessoas negras são percebidas como “imigrantes”, independentemente do seu estatuto de cidadania. Os processos de racialização e etnicização estão profundamente ligados entre si, decorrendo de assimetrias de poder forjadas durante o colonialismo europeu para legitimar a escravatura e outros sistemas de trabalho forçado, cujos efeitos continuam a fazer-se sentir hoje em dia de forma insidiosa, quer dentro da nação – nomeadamente quem é reconhecido e em que termos nos direitos de cidadania –, quer entre nações e corporações internacionais, através de sistemas de divisão internacional do trabalho que reificam “antigas” hierarquias coloniais, determinando liberdades de mobilidade desiguais. Torna-se assim essencial discutir os conceitos que são frequentemente usados quando se fala de políticas migratórias e políticas culturais.
 




Algumas publicações
 
- Cabecinhas, R. (2023). A memória da nação na era planetária. Passados e futuros em debate. Análise Social, 58(249), 766-788.
- Cabecinhas, R. (2022). Outras histórias. Ativismos mnemónicos, género e interseccionalidades. M. Ledo-Andión, M. Pérez-Pereiro, S. Roca-Baamonde, & M.S. Barreiro-González (org.). CO(M)XÉNERO. Cadernos de Comunicación e Xénero, 2, 15-35. 
- Cabecinhas, R., & Barros, M. de. (2022). Produção de conhecimento, reparação histórica e construção de futuros alternativos. Entrevista com Miguel de Barros /. Knowledge production, historical reparation and construction of alternative futures. Interview with Miguel de Barros. Comunicação e Sociedade, 41, 243–258.
- Macedo, I., Balbé, A., & Cabecinhas, R. (2023). Cultura visual, educação e comunicação intercultural: grupos de discussão com estudantes no ensino secundário português. Educação em Foco, 26 (48).
- Macedo, I., Lins, L., da Silva, T. V., & Cabecinhas, R. (2023). Exploring images of otherness through cinema: Analysis of counter-visualities in Portuguese films. Papers on Social Representations, 32(2), 1-1.
- Posch, P., & Cabecinhas, R. (2023). Imagens e (in)visibilidades: notas sobre as visualidades da imigração brasileira em Portugal. Mediaciones, 19(30), 241–254.
- Vieira da Silva, T., & Macedo, I. (2023). The Shape of History in Portuguese Contemporary Cinema: War, Mythology, and the Memory of Struggles. Quarterly Review of Film and Video, 1-23.
- Gravato, D., & Cabecinhas, R. (2023). Rapensando África na música de Chullage. In M. Matos & J. Paisana (Eds.) Transcultural Mobilities and Memories. Mobilidades e Memórias Transculturais (pp. 217-232). Húmus.
- Correia Borges, G., Posch, P., Cerqueira, C., Lobo, P., Cabecinhas, R., & Macedo, I. (2024). Média Alternativos Digitais relacionados às Migraçõe e/ou pessoas racializadas – Mapeamento. Repositório de Dados da UMinho.
- Macedo, I., Correia Borges, G., Sá, A., Vieira da Silva, T. (2024). Base de dados filmes financiados ICA 2018-2022. Repositório de Dados da UMinho.
- Macedo, I., Pereira, A. C., Correia Borges, G., Salgado, B., Januário, M., & Sá, A. (2024). "Nós somos carne, nós somos ventre, nós somos nação": Entrevista a Maria Gil. Repositório de Dados da UMinho.
 


Nota biográfica

Rosa Cabecinhas é investigadora do CECS e professora associada com agregação do Instituto de Ciências Sociais da UMinho. Doutorou-se em Ciências da Comunicação (Psicossociologia da Comunicação) e ensina nas áreas da Psicologia Social e Comunicação Intercultural. Foi coordenadora de diversos projetos científicos financiados pela FCT e pela Comissão Europeia. Foi vice-chair da rede COST “Social psychological dynamics of historical representations in the enlarged European Union” e é investigadora principal do projeto MigraMediaActs e da equipa local do projeto europeu CONCILIARE. Desenvolve investigação de natureza interdisciplinar sobre representações sociais, comunicação intercultural, migrações, discriminação social, diversidade e mudança social. Participou na fundação da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom) e é sócia da European Communication Research and Education Association (ECREA) e de diversas associações nacionais e internacionais nas áreas da psicologia, ciências da educação e estudos culturais.