O entrelaçamento quântico, o grafeno e os superlativos

27-05-2024

Mikhail Vasilevskiy

Acredito na segunda revolução quântica, que pode ter o potencial de resolver muitos problemas importantes no mundo, esperançosamente num futuro observável.


A Universidade do Minho conferiu hoje o grau de Doutor Honoris Causa ao Professor Alain Aspect, físico mundialmente reconhecido pelos seus trabalhos fundamentais nas áreas de Ótica Quântica e Física Atómica. São da sua autoria as experiências que permitiram resolver um dilema fulcral e de longa data na Mecânica Quântica, conhecido como o paradoxo EPR.

A sigla do paradoxo EPR vem das iniciais dos físicos que formularam em 1935 esta experiência mental relacionada com o entrelaçamento quântico, nomeadamente Albert Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen. Este fenómeno traduz as fortes correlações intrínsecas entre duas (ou mais) partículas quando o estado quântico de cada uma delas não pode ser descrito independentemente do estado da outra. Uma medição feita numa partícula do par entrelaçado afeta o estado da partícula parceira. De acordo com a Mecânica Quântica, isto deve acontecer de forma instantânea mesmo que as partículas estejam distantes uma da outra. Eis a essência do paradoxo EPR: como pode uma partícula “saber” imediatamente o que aconteceu com a partícula parceira, se elas estão separadas por uma grande distância? Nenhum sinal pode viajar a uma velocidade infinita!

Na opinião de Einstein, a Mecânica Quântica era uma teoria incompleta. Conjuntamente com Podolsky e Rosen, ele formulou o princípio do realismo local, que inclui a suposição de que uma partícula deve ter um valor pré-definido para qualquer medição possível, ou seja, um valor existente antes da medição ser feita. Este princípio diz que, quando uma partícula se separa da sua parceira e se afasta, transporta algumas “variáveis locais” ocultas. Estes fatores internos não observáveis explicam assim os resultados probabilísticos de quaisquer medições quânticas que possam ser feitas nessa partícula. O paradoxo EPR representava assim um dilema: entralaçamento (ou seja, correlação que persiste a qualquer distância e se revela imediatamente após medição na partícula parceira) OU a teoria (apoiada por Einstein) do realismo local com as variáveis ocultas?

Tornou-se muito difícil obter evidências experimentais para resolver este dilema. Em 1964 o físico teórico John Bell conseguiu expressá-lo na forma de uma desigualdade que poderia ser verificada experimentalmente. A desigualdade de Bell nunca poderia ser violada no contexto do realismo local, mas a Mecânica Quântica aponta situações em que a violação pode acontecer. As experiências de verificação da desigualdade de Bell começaram nos anos 70, até que em 1982 Alain Aspect publicou um artigo em que demonstrava experimentalmente a sua violação, de acordo com as previsões da Mecânica Quântica. Foi assim provado o conceito de entrelaçamento quântico, inexplicável no contexto do realismo local, ao qual estamos tão habituados na nossa vida, governada em grande parte pelas leis da física clássica. Em 2022, o Prémio Nobel da Física foi atribuído a Alain Aspect, conjuntamente com John Clauser e Anton Zeilinger, “pelo seu trabalho de descoberta de caminhos na Mecânica Quântica e Ciência da Informação Quântica, (...) demonstrando (...) o entrelaçamento quântico”.


Segunda revolução quântica

Não seria um exagero dizer que a demonstração da realidade do fenómeno de entrelaçamento quântico, além da capacidade de criar e usar a mesma, abriu novos horizontes tecnológicos, dando origem à chamada “segunda revolução quântica”. A primeira revolução permitiu invenções como o laser e o transístor, o elemento básico dos computadores e outros aparelhos que já fazem parte da nossa vida quotidiana. A segunda revolução quântica procura aproveitar os fenómenos específicos que desaparecem no “limite clássico”, como o confinamento quântico para criar materiais artificiais com novas propriedades, ou o entrlaçamento de qubits individuais para transmitir informação na forma quântica. Esta última área, a Ciência da Informação Quântica, diretamente relacionada com a obra de Alain Aspect, ganhou grande importância e atraiu a atenção de cientistas de diversas áreas nos últimos anos.

Um computador quântico opera com qubits, entidades quânticas que podem estar nos estados 0 e 1 ao mesmo tempo (“estados de sobreposição”). Teoricamente, isto permite processar todos os estados possíveis em simultâneo, alcançando uma vantagem significativa (“superioridade quântica”) sobre os computadores convencionais em vários algoritmos, sendo os mais famosos o de Schor (decomposição de números naturais em fatores primos) e o de Grover (pesquisa numa base de dados não ordenada). Um computador quântico pode ser a única oportunidade para solucionar problemas que nenhum computador convencional consegue resolver, como por exemplo modelar o funcionamento de grandes sistemas abertos, do género daquilo que a natureza criou para a fotossíntese em plantas ou bactérias (acompanho esta área graças a um estudante de doutoramento que oriento). A computação e simulação quântica é atualmente uma das áreas “quentes” da ciência e da tecnologia, atraindo investigadores e grandes empresas como a IBM e a Google. Perspetivas de tirar o fôlego são apresentadas ao leigo por cientistas entusiasmados e jornalistas.

No entanto, os desafios tecnológicos também são grandes. A implementação de um processador quântico que possa resolver problemas de interesse prático requer controlo completo sobre muitos (>1000) qubits, inclusive a possibilidade de controlar o entrelaçamento entre os mesmos. Outro problema é o ruído (processos naturais que induzem alterações não desejáveis num estado quântico). Computadores quânticos, especialmente no seu estado atual, designado por Noisy Intermediate-Scale Quantum (NISQ), enfrentam desafios relacionados com a ausência de tolerância a falhas. Correção de erros requer recursos adicionais, cujo volume cresce de forma exponencial, pondo em perigo a referida superioridade quântica. Será que o computador quântico universal poderá um dia substituir um computador convencional? Será que o meu filho um dia vai usar um computador portátil baseado num processador quântico? Pode ser que sim, mas parece-me mais plausível que as aplicações de processadores quânticos sejam limitadas a determinados tipos de problemas e algoritmos.

Eu vejo alguma similaridade com outra área em que trabalhei nos últimos 15 anos, a física do grafeno e (mais recentemente) de outros materiais bidimensionais. A propósito, são chamados “materiais quânticos” e também pertencem à segunda revolução quântica. As propriedades extraordinárias do grafeno foram demonstradas na primeira década do século XXI, provocando um enorme interesse de cientistas e engenheiros, o que culminou no Prémio Nobel da Física atribuído a André Geim e Konstantin Novoselov em 2010. O grafeno, uma folha monoatómica da grafite, mereceu tantas caraterísticas entusiasmadas e superlativos como provavelmente nenhum outro material recebeu.

De facto, possui excelentes propriedades eletrónicas e mecânicas em combinação com a flexibilidade e baixo peso, hidrofobicidade, etc. Alguns entusiastas diziam que o grafeno iria substituir o silício em toda a eletrónica. Hoje em dia sabemos que isto não vai acontecer, nem vai o grafeno substituir o aço na construção civil. Todavia, a plasmónica do grafeno é uma área em desenvolvimento rápido e com resultados já demonstrados. Elétrodos transparentes de grafeno são usados em dispositivos optoeletrónicos e a mais recente descoberta das propriedades interessantíssimas de bicamadas distorcidas do grafeno representam a atualidade, tecnológica e científica, deste material.

Gostaria de terminar por expressar a minha profunda gratidão a Alain Aspect e outros grandes cientistas cujos trabalhos têm contribuído para o progresso da humanidade. Acredito na segunda revolução quântica, que tem o potencial de resolver muitos problemas importantes no mundo, esperançosamente num futuro observável. Devemos, porém, ser cautelosos no uso dos superlativos e não prometer o impossível, para não fazer corar os verdadeiros cientistas e não ceder aos ilusionistas científicos.
 

Professor catedrático da Escola de Ciências da Universidade do Minho
Investigador do Centro de Física das Universidades do Minho e do Porto