“A investigação não pode recuar dez anos”

25-03-2014 | Pedro Costa

Moisés Martins na atribuição do honoris causa ao sociólogo Michel Maffesoli. O professor da UMinho acredita que o CECS teve um papel determinante na afirmação das ciências da comunicação a nível nacional e internacional.

Especialmente crítico em relação às atuais políticas de financiamento à investigação, Moisés Martins teme que se perca o trabalho de aproximação ao topo conseguido na última década.

Moisés de Lemos Martins dirige a CONFIBERCOM, a LUSOCOM, a SOPCOM e o CECS-UMinho

O II Congresso da CONFIBERCOM realiza-se de 13 a 16 de abril no campus de Gualtar

Fachada do edifício do Instituto de Ciências Sociais da UMinho, em Braga

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O professor catedrático Moisés Martins reflete sobre a conjuntura nas ciências sociais e humanas e faz a antevisão do II Congresso da CONFIBERCOM, que em abril junta 800 participantes na UMinho.





Moisés de Lemos Martins nasceu em 1953, em Vila Cova da Lixa, Felgueiras. É professor catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação e diretor do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da UMinho. É presidente da Confederação Ibero-americana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação (CONFIBERCOM), da Federação das Associações Lusófonas de Ciências da Comunicação (LUSOCOM) e da Sociedade Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM). Fez a licenciatura em Sociologia na Universidade de Ciências Humanas de Estrasburgo e aí continuou até ao doutoramento, em 1984. É autor de numerosos artigos e publicações em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente sobre Semiótica Social e da Sócio-antropologia da Comunicação, e dos seus livros destacam-se títulos como "Crise no castelo da cultura" (2011), "A linguagem, a verdade e o poder" (2002), "Para uma inversa navegação - o discurso da identidade" (1996) e "O olho de Deus no discurso salazarista" (1990). Numa fase em que prepara o II Congresso da CONFIBERCOM, que se realiza de 13 a 16 de abril em Braga, falou abertamente ao NÓS da investigação, da internacionalização e das dificuldades nas ciências sociais e humanas, bem como da comunicação e da contemporaneidade.


Qual é a sua visão acerca da comunicação e do seu papel, na vertigem dos dias contemporâneos?
A comunicação é nas ciências sociais e humanas uma atividade do pensamento crítico, que se exerce sobre a sociedade; é um olhar reflexivo sobre os modos como interagimos uns com os outros em sociedade e como fazemos comunidade. Vivemos numa sociedade de comunicação generalizada, pela circunstância de esta época ser movida pelas tecnologias da comunicação e da informação, que permitem não apenas aproximar as comunidades, ao ponto de imaginarmos uma comunidade universal, como autorizam igualmente acalentar o sonho mitológico da transmissão universal do conhecimento. Ora, sendo a nossa época de comunicação generalizada, a questão que podemos colocar é a seguinte: responde a comunicação às nossas atuais exigências? A comunicação é uma ciência da relação e da interação. Mas é habitual fazer-se uma confusão entre a comunicação e a informação. Tem-se desenvolvido muito a ciência da informação. Acontece, no entanto, que com a ciência da informação se tem desenvolvido, também, o espaço do controlo, e isso significa retirar espaço à liberdade. Apesar de que nunca acumulámos tanto conhecimento como na nossa época, damo-nos conta, todavia, de que a nossa ação é inconsequente e sentimo-nos impotentes, como nunca, para alterar o curso das coisas. Na nossa história passada, para instaurar um regime de liberdade, muitas vezes os povos foram desafiados a cortar a cabeça aos déspotas. Mas o nosso problema, hoje, já não permite semelhante solução. Agora, o poder joga-se nos interstícios de uma complexa teia global, que desarma completamente a comunidade humana. Hoje, percebemos que mesmo os agentes políticos não passam de marionetas ao serviço de interesses financeiros e económicos globais. E são estes que ditam as ordens de condução do mundo.
 
“A nova erótica interativa” é um texto seu. A relação entre a comunicação e a tecnologia ainda é saudável?
A tecnologia exprime, hoje, as condições históricas em que a comunidade humana é chamada a viver. Não podemos ter com a tecnologia a relação negativa e de recusa, que as comunidades humanas exprimiram, por exemplo, no começo da industrialização. A tecnologia exprime a nossa contemporaneidade e é no confronto com ela que hoje se decide o humano. Ela mantém o seu caráter tradicional de uma inscrição instrumental. Mas aquilo que mais a caracteriza hoje é o seu caráter produtivo: mais do que feita à nossa imagem, somos nós que somos feitos à imagem da tecnologia. A nossa ligação às máquinas tem, hoje, entretanto, um caráter interativo, numa relação que pode chegar à dependência. É que as máquinas exprimem uma erótica, uma arte gozosa das ligações, sendo nós atraídos e seduzidos por elas. Penso que é essa a razão pela qual estamos cada vez mais dependentes de jogos de computadores, de redes sociais, de trabalho on-line. O reverso da medalha é que este movimento que nos aproxima das máquinas nos tem afastado da comunidade. As máquinas não têm a pele de ninguém, a relação que estabelecem connosco é fria e estranha, por muito exaltantes que sejam, tanto o imaginário que nelas projetemos como os avatares em que nelas possamos desdobrar-nos.



Os media passaram para a órbita do poder
 
Ainda vê as ciências da comunicação com um papel estruturante na aculturação das sociedades? 
Sem dúvida. Antes de mais, não podemos esquecer o papel decisivo que os média têm na realização da democracia. As sociedades evoluídas supõem uma sociedade civil esclarecida e um alargado exercício da cidadania. Ora, não existe sociedade civil esclarecida, nem exercício da cidadania plena, sem que exista um sistema mediático livre, plural e de serviço público. E as ciências da comunicação têm um papel social decisivo, por trabalharem na constituição deste sistema, por formarem os profissionais dos media, por formarem profissionais para muitas outras atividades ligadas à comunicação, como a publicidade, a assessoria de imprensa, a produção audiovisual e multimédia, e por trabalharem no esclarecimento de muitos bloqueios sociais, que abastardam a democracia e atrofiam o exercício da cidadania. Neste contexto, devo salientar o significativo papel que o projeto de ensino e de investigação da UMinho tem desempenhado na sociedade portuguesa. Os media envolvem-nos como uma pele e tanto o seu funcionamento como o seu consumo precisam das ciências da comunicação. É fundamental percebermos o papel dos media na contemporaneidade e, de igual modo, é fundamental sabermos lê-los e termos uma atitude crítica.

Os media afunilaram o espaço público?
Sim. E blindaram-no à intervenção dos cidadãos. Os media passaram para a órbita do poder. Os atores mediáticos exprimem demasiados interesses estranhos à comunidade nacional. E, além disso, exprimem interesses do centro, em prejuízo da globalidade do periférico território nacional. É de assinalar, ainda, o grande impacto que as ciências da comunicação têm como ciências da contemporaneidade. O nosso tempo é um tempo pós-colonial, um tempo que aproxima comunidades nacionais ligadas por um passado colonial e que mantêm um destino de língua comum na diversidade de muitas nações autónomas. As ciências da comunicação têm desenvolvido, neste sentido, um importante trabalho sobre representações, narrativas e identidades lusófonas, sobre políticas de comunicação, sobre políticas da língua, sobre multiculturalidade e interculturalidade.
 

 
Que balanço faz do trabalho do CECS após 13 anos de trabalho?
A investigação em ciências da comunicação quase apenas acontece nas academias e tem estado associada, acima de tudo, a projetos de ensino pós-graduado. No CECS, a investigação começou por se desenvolver, fundamentalmente, à volta dos mestrados em Jornalismo e em Educação para os Media, criados em 1998, e do doutoramento em ciências da comunicação, criado em 2006. Nos anos mais recentes, teve um significativo desenvolvimento, com a entrada em funcionamento da primeira edição do curso de doutoramentos em Ciências da Comunicação, em 2009, com o início, em 2010, do doutoramento em Estudos Culturais, numa parceria com a Universidade de Aveiro, e ainda, com o doutoramento FCT em Estudos da Comunicação: Tecnologia, Cultura e Sociedade, já no ano em curso, numa parceria de seis unidades de investigação do Norte ao Sul do país, liderada pelo CECS. O trabalho do Departamento de Ciências da Comunicação da UMinho está associado à criação e afirmação da comunidade científica de comunicação em Portugal. Estivemos presentes em todas as decisões estratégicas desta comunidade. O professor Aníbal Alves foi o primeiro presidente da SOPCOM, em 1997. Tivemos um papel decisivo na realização dos oito Congressos desta associação. Estivemos na fundação da LUSOCOM, em 1998. Tivemos o mesmo papel fundamental na realização dos seus onze congressos. 

O CECS agrega esse percurso.
É um percurso que se confunde com o caminho feito pela comunidade portuguesa de ciências da comunicação, na constituição do seu espaço específico, no contexto das ciências sociais e humanas em Portugal, também na constituição do espaço lusófono das ciências da comunicação, e, mais recentemente, na constituição do espaço ibero-americano das ciências da comunicação. É verdade, todavia, que não nos circunscrevemos ao espaço lusófono, nem sequer às relações de cooperação científica, que também mantemos com a comunidade científica ibero-americana, porque temos relações privilegiadas em todo o mundo, nomeadamente com grupos de investigação franceses (em Paris e Montpellier), na Holanda, em Inglaterra, nos EUA, na Nova Zelândia e por aí adiante. Podemos dizer, com rigor, que o CECS é a mais reputada unidade de investigação portuguesa em várias áreas, que incluem a literacia mediática, a economia política dos media, a regulação dos media, os estudos lusófonos (políticas da língua, políticas da comunicação, representações da identidade e multiculturalismo) e estudos sobre as políticas científicas e tecnológicas em comunicação no espaço ibero-americano.
 
Como é que o CECS encara o futuro próximo, atendendo às políticas atuais de financiamento à investigação?
Toda a comunidade científica, e especificamente a de ciências sociais e humanas, apenas pode olhar com apreensão para os tempos de muita dificuldade que vivemos. Com o país em crise financeira e económica, os governantes têm feito opções meramente utilitaristas, mercantilistas e economicistas na ciência, que desconsideram as ciências sociais e humanas no seu conjunto. Não as tomam sequer como ciências, considerando-as, além disso, um luxo num país em crise. Por essa razão temos engrossado a voz daqueles que têm combatido publicamente esta política científica, mostrando à opinião pública a injustiça destas opções. As políticas atuais não pensam o conjunto das ciências em Portugal. Por opção política, as ciências socias e humanas têm sido colocadas fora do plano estratégico nacional para a ciência. Os nossos políticos entendem que as ciências sociais e humanas não são necessárias para o desenvolvimento económico do país, como se o desenvolvimento económico fosse uma finalidade em si próprio.

O desenvolvimento económico deve servir o desenvolvimento humano.
Absolutamente. E é por essa razão que falamos de desenvolvimento integrado, o qual não existe sem as ciências sociais e humanas. Seja como for, por más que sejam as políticas, temos que continuar o nosso trabalho, embora, é claro, as nossas dificuldades sejam acrescidas. Há dez anos, estávamos muito distantes dos nossos colegas europeus. E no que diz respeito às ciências sociais mais afastados estávamos, pois elas haviam sido proibidas antes do 25 de Abril, por serem ciências subversivas. Mas na última década, especificamente nas ciências da comunicação, aproximámo-nos bem dos nossos parceiros internacionais, principalmente em áreas como a literacia mediática, a regulação dos media, as políticas da comunicação, os estudos lusófonos e os estudos da política científica e tecnológica em comunicação no espaço ibero-americano. Depois do grande investimento científico feito pelo Governo português nas ciências sociais, temos hoje a liderança portuguesa de associações internacionais de investigação, como é o caso da Lusocom e da Confibercom, e também a direção de importantes grupos de investigação na International Association for Media and Communication Research (IAMCR) e na European Comunication Research and Education Association (ECREA). Em pouco mais de uma década colocamo-nos no topo da investigação internacional em ciências da comunicação.
 
Que áreas gostaria de ver mais desenvolvidas no CECS?
Não somos um grupo tão alargado quanto isso. Somos 53 doutores integrados, dos quais apenas 25 são da UMinho. Por outro lado, cerca de 130 colaboradores do CECS preparam o doutoramento. Temos algumas limitações e não nos desenvolvemos por igual em todos os domínios. Por exemplo, o grupo de investigação em publicidade não pôde desenvolver-se ao mesmo nível que o de jornalismo. Por outro lado, todos o sabemos, as exigências do presente obrigam a uma investigação em maior escala no que respeita a comunicação digital e o nosso grupo ainda é um tanto deficitário, dado que esta área de estudo é relativamente recente, tendo surgido num tempo já de retração do sistema universitário. Tivemos, então, que ser inventivos e juntar-nos a colegas da Escola de Engenharia. Estamos, inclusive, a preparar um doutoramento conjunto em Tecnologias Criativas. Mas temos que ser tão fortes na comunicação digital como o somos, por exemplo, nos estudos lusófonos e nas políticas científicas e tecnológicas. No entanto, é certo, também, que o nosso projeto lusófono carece ainda de vários desenvolvimentos. Por exemplo, apesar de muitos anos de investimento, mantém-se ainda insuficiente a cooperação que temos com Angola e Moçambique. Estes países passaram por momentos de grande convulsão interna, como guerras civiis, o que prejudicou o seu desenvolvimento académico e a própria cooperação ao nível da pesquisa.

 

Mariano Gago, Miguel Seabra e Anália Torres previstos no Congresso

Está a chegar o II Congresso da CONFIBERCOM. Qual é a matriz de reflexão?
O congresso desenvolve-se sob o lema da “Internacionalização”, pois a ciência não pode estar debaixo do alqueive; tem sim que cintilar, subir ao grande palco e irradiar. Ora, ao nível ibero-americano, precisamos de catapultar o nosso trabalho coletivo para a grande cena mundial. Porque, embora nos batamos pelas línguas, portuguesa e espanhola, não podemos esquecer que o inglês se tornou para todos os cientistas uma espécie de língua de respiração académica. O tema central é, pois, o da investigação. Abordaremos as condições atuais da pesquisa, as dificuldades do nosso trabalho, as necessidades a que temos que responder, assim como os modos de financiamento da ciência. Mas vamos reflectir, igualmente, sobre as possibilidades que temos para desenvolver trabalho em conjunto, seja ao nível de projetos em rede, seja ao nível de publicações. A ECREA e a IAMCR, que são as principais associações internacionais de comunicação, vão estar representadas no Congresso pelas suas presidentes. E, naturalmente, estarão a direção da CONFIBERCOM e da LUSOCOM, assim como a presença massiva dos seus investigadores. Será um Congresso para mais de 800 inscritos.
 
É uma boa oportunidade para refletir o momento da investigação em Portugal?
Sem dúvida. Os colegas internacionais conhecem as nossas dificuldades. Por exemplo, no Brasil chegaram a publicar na rede da Intercom textos sobre as dificuldades das ciências da comunicação em Portugal. Uma investigadora propôs mesmo que neste Congresso fosse aprovada uma moção em defesa da investigação em Portugal. Convidei em janeiro o professor Miguel Seabra, presidente da FCT, para estar presente na sessão de abertura. O debate vai alargar-se bem acima dos condicionalismos a que está sujeita a investigação em Portugal, pois estará presente, como convidada, a professora Anália Torres, que presidiu a Associação Europeia de Sociologia e é membro do European Research Council. Estarão também como convidados os professores brasileiros Muniz Sodré e Juremir Machado da Silva, assim como o professor espanhol Miquel de Moragas, entre muitos outros, que por certo nos vão ajudar a pensar sobre os temas em todo o espaço ibero-americano. E para melhor debater a política científica em Portugal, o ministro que teve esta pasta durante quase uma década, o professor Mariano Gago, garantiu-me que tudo fará para estar no Congresso. Estará igualmente o presidente do conselho científico para as Ciências Sociais e Humanidades da FCT, o professor João Costa.