Victor de Sá, um resistente incansável

08-04-2014 | Nuno Passos

Victor de Sá numa sessão na Reitoria da Universidade do Minho

O reitor António M. Cunha a entregar o Prémio Victor de Sá de História Contemporânea 2013 a Maria Isabel Carvalho Corrêa da Silva, pela sua obra "Espelho Fraterno. O Brasil e o republicanismo português na transição para o século XX"

João Paulo Avelãs Nunes, da Universidade de Coimbra, com Miguel Cardina, vencedor do 20º Prémio Victor de Sá de História Contemporânea, junto à exposição dos 20 anos do Prémio, na Reitoria (Diário do Minho, 15 de dezembro de 2011)

Apresentação de "Victor de Sá em livro aberto", de Joaquim da Silva Gomes (a discursar), com Oswaldo Sá e Victor Louro de Sá, filhos do homenageado (à esquerda), e o vice-presidente da autarquia de Barcelos, Domingos Pereira (à direita)

Homenagem a Victor de Sá na sua terra natal - Couto de Cambeses, Barcelos - em dezembro de 2013

Apoiou as candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Humberto Delgado e subscreveu a carta "Vai-te embora, António [Salazar]!". A rádio TSF definiu-o como “lutador pela liberdade no tempo da ditadura" no seu adeus a 31 de dezembro de 2003.

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Lecionou no primeiro dia de aulas na UMinho. Doou boa parte do arquivo e os meios para criar o maior prémio nacional de história contemporânea para jovens. Faleceu há dez anos e merece a vénia.




“O que representa o meu pai? É daquelas memórias que vale a pena manter viva, pelo exemplo de verticalidade e honradez que hoje infelizmente não abunda, bem como de ativa e corajosa resistência ao fascismo e de luta pela liberdade. Gostava que também representasse algo para a juventude atual.” Victor Louro de Sá, de 68 anos, ainda acorda com pesadelos do fascismo. Aos 14 anos, um PIDE apontou-lhe a pistola no domicílio. O mais velho dos três filhos teve que crescer rápido como “homem da casa”. O seu pai foi dos que mais vezes visitou a cadeia no Estado Novo por discordar da repressão: “Das suas nove detenções, entre 1947 e 1969, só duas foram a tribunal. E na última delas até foi absolvido, mas ninguém lhe tirou os sete meses de cadeia já sofridos”.

A PIDE encerrou em 1962 a sua “Livraria Victor”, em Braga. “Era o ganha-pão da nossa família e das famílias dos empregados. Mas sucedeu um exemplo único de solidariedade: os gerentes de livrarias da cidade, politicamente de direita, perceberam que a perseguição foi tão longe que passaram a atender os nossos clientes e, mais tarde, acertámos as contas”, nota Victor Louro de Sá, que já no período democrático foi secretário de Estado, subdiretor-geral das Florestas e deputado em várias legislaturas. Curiosamente, Victor, o pai, só correu o risco de ser abatido após a revolução, no “verão quente” de 1975. Ainda se vê marcas de tiros na fachada da livraria, hoje gerida pelo filho Oswaldo. “Braga foi um baluarte da resistência, com muitos atos (uns isolados, outros organizados e coletivos) de coragem, como Humberto Soeiro. Esta história da cidade está por fazer, por simbolizar”, devolve Victor Louro de Sá. E conclui com uma reflexão sobre o país: “Se o meu pai fosse vivo, teria o desgosto de ver que regressámos ao estado lastimoso pré-25 de Abril, o que julgámos jamais ser possível acontecer”.

Foi impedido de lecionar até à revolução
 
Henrique Barreto Nunes, vice-presidente do Conselho Cultural da UMinho, considera Victor de Sá "o combatente pela liberdade, o cidadão ativo e indomável, o intelectual probo, o professor universitário inovador e estimado, o investigador operoso". As opiniões ouvidas são unânimes. “Se estamos aqui a falar em liberdade muito devemos a Victor de Sá. Foi um puro lutador, sofreu muito e nem pôde dar aulas até ao 25 de Abril”, sintetiza Joaquim da Silva Gomes. Este investigador formado em História e Ciências Sociais na UMinho lançou recentemente o livro “Victor de Sá em Livro Aberto”, em Cambeses, Barcelos, sua terra natal e do homenageado. “Na sessão faltou o Presidente da República para honrar um dos grandes opositores do fascismo, equiparado a Álvaro Cunhal e Mário Soares”. Victor de Sá deve ter em breve uma rua “sua” em Cambeses e outra na cidade de Barcelos, que os autarcas consideram “uma questão de justiça a um filho ilustre”.
 
O professor catedrático José Viriato Capela, do Departamento de História da UMinho, preside há quase duas décadas o júri do Prémio Victor de Sá de História Contemporânea. Conheceu aquele humanista na década de 70, quando ambos eram professores da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. “O dr. Victor inovou na aprendizagem, apostando na participação dos alunos com trabalhos práticos, avaliação contínua e debates”, lembra. “Os estudos de História contemporânea ultrapassaram com ele a época do liberalismo e abordaram certas temáticas já dos séculos XIX e XX; criou, por exemplo, uma disciplina sobre colonialismo e descolonização”, assinala Viriato Capela, que é também diretor da Casa Museu de Monção/UMinho.
 


Biografia de um humanista lutador
 
Joaquim Victor Baptista Gomes de Sá (1921-2003), filho de uma professora primária e um militar, nasceu em Cambeses e veio na infância para Braga. Presidiu a associação de alunos do Liceu Sá de Miranda e desde cedo mostrou interesse pela dinâmica cultural e política. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em Coimbra, em 1959, e foi nomeado professor da Escola Comercial de Braga, mas impedido de ensinar por não ser “do regime”. A Fundação Calouste Gulbenkian concedeu-lhe uma bolsa em 1963 para o doutoramento na Sorbonne (França), que concluiu em 1969, com a tese "A Crise do Liberalismo e as primeiras manifestações das ideias socialistas em Portugal (1820-1852)".
 
 Só após a revolução, aos 53 anos, reconheceram-lhe o grau e pôde lecionar na Universidade do Porto. Ainda assim, viveu certas hostilidades, como a reprovação nas provas académicas de agregação (sobre o Movimento Operário Português), por motivos que lhe custou a aceitar. Também lecionou no primeiro dia de aulas da UMinho, a 17 de dezembro de 1975, e regeu algumas cadeiras durante dois anos. Mais tarde esteve na Lusófona, que hoje mantém uma biblioteca com o seu nome. Victor de Sá tornou-se em 1979 o primeiro comunista eleito do Norte (Porto excluído) à Assembleia da República. Foi ainda diretor do jornal “Correio do Minho”. Ao longo do tempo, aliou os estudos e a intervenção com a cultura, promovendo atividades e escrevendo livros como “Bibliografia Queirosiana", “As bibliotecas, o público e a cultura” e ”Roteiro da imprensa operária e sindical”. Foi condecorado em 1990 com a Ordem da Liberdade, pelo então Presidente da República Mário Soares.
 
No ano seguinte, num gesto de “grande generosidade e ineditismo”, Victor de Sá doou uma verba e boa parte do seu espólio à Biblioteca Pública de Braga (BPB)/UMinho, incluindo documentos de natureza histórica, política e literária, textos memorialísticos inéditos e ainda os direitos de autor da sua ampla bibliografia. Rentabilizando aquele acervo, a BPB e o Conselho Cultural da UMinho lançaram os livros “Estudos de História contemporânea de Portugal” (1991), “Testemunho de um tempo de mudança” (1999), “Legendas para uma memória” (2001) – a par do colóquio “Uma cidadania para a História” e da revista "Forum nº32” – e ainda “O Mundo continuará a girar (2011)”, sobre os 20 anos do Prémio Victor de Sá de História Contemporânea e a par de uma mostra fotobibliográfica alusiva.