“No rigor científico, alimento o meu espírito criativo a escrever”

17-02-2022 | Pedro Costa | Fotos: Nuno Gonçalves

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Helena Machado recebe hoje o Prémio de Mérito Científico da UMinho. É um nome ímpar na sociologia da genética.




Helena Machado nasceu em Guimarães há 51 anos. Amante do ténis e com gostos musicais e cinematográficos muito ecléticos, define-se desde criança pelo “espírito muito livre e criativo”. Doutorada em Sociologia, na área de conhecimento de Sociologia e Metodologias Fundamentais pela UMinho e agregada em Sociologia, é hoje professora catedrática e presidente do Instituto de Ciências Sociais (ICS), em BragaAdora viajar e conhecer “mundos” e poderia ter sido jornalista, mas tornou-se uma socióloga especializada em estudos sociais da ciência e tecnologia, num trabalho de investigação que é interdisciplinar, com enfoque nas relações entre genética e sociedade. Em 2015, foi-lhe atribuída uma prestigiante Consolidator Grant do Conselho Europeu de Investigação, um dos financiamentos mais competitivos do mundo. É (co)autora de mais de 200 trabalhos académicos, livros e capítulos de livros de editoras internacionais e nacionais. Tem liderado equipas que estudam as dimensões éticas, sociais e políticas de partilha transnacional de dados genéticos e as controvérsias referentes a tecnologias emergentes no domínio da identificação criminal. É cocoordenadora do Forensic Databasing Advisory Board, um comité internacional interdisciplinar que aconselha a Sociedade Internacional de Genética Forense. Tem desenvolvido atividades de peritagem científica junto de diversas agências de ciência e inovação e foi consultora em matérias de ética e regulação no Brasil, África do Sul e Austrália.
 
 
Quem é Helena Machado?
Nasci em Guimarães e só deixei de viver aqui durante seis anos, quando estive em Coimbra a fazer o meu curso e a trabalhar durante um ano. De resto, a minha vida é essencialmente entre Guimarães e o meu trabalho, no campus de Gualtar, em Braga.
 
Em criança sonhava a carreira que obteve?
A minha infância foi muito protegida e muito feliz. Sou a mais nova de sete irmãos e tive o privilegio de fazer muitas viagens desde cedo, em muitos países, incutindo em mim o gosto por conhecer o mundo e conhecer outras culturas. Isso fez com que a determinada altura quisesse ser jornalista, para conhecer outros mundos, mas quando tive que optar na universidade, decidi-me por um curso que me desse instrumentos da perceção da diversidade cultural. Acabei por ir para Sociologia. O gosto das viagens dura até hoje e, no âmbito do meu trabalho, tenho a oportunidade de o fazer. Sempre que é possível procuro estadias Erasmus de curta duração – em breve irei estar na Estónia e depois na Polónia –, pelo que as viagens têm uma importância central na minha vida.
 
Mas volta sempre a casa. É enraizada?
Sinto-me bem integrada na comunidade. Por outro lado, tenho um espírito inquieto. Gosto de interagir com outras realidades. Como estou inserida em redes internacionais de investigação, tenho essa hipótese de rejuvenescer o espírito e a inspiração, com contactos com outras comunidades.
 
Como ocupa o tempo livre?
Gosto de desporto, particularmente ténis, paddle e desportos de raquete. Procuro praticar sempre que possível e integro-me em equipas. É algo que me entusiasma muito e equilibra-me. Por outro lado, o mar esteve sempre presente na minha vida. Tínhamos [em família] umas longas férias de verão e eu passava muitos desses meses na praia. De tal modo que o meu primeiro livro foi precisamente A Construção Social da Praia, sobre como a prática balnear evoluiu desde o século XIX até agora.
 
Como se informa mais?
Praticamente não vejo televisão e vou-me informando muito pela imprensa – o jornal Público – e a nível internacional sigo muito o Twitter, em publicações como o The Guardian. Procuro sempre uma perspetiva integrada, pois a política nacional acaba por ser desinteressante só por si. Só consigo ter um olhar sobre a política nacional e sobre a evolução do sistema de saúde e do sistema económico – que são assuntos que me interessam  se tiver uma contextualização mais macro. Saber que países à escala global estão a comandar os nossos destinos, por muito que pensemos que são os nossos governos a comandar tudo.
 
E as artes fora do trabalho, como as vive?
Gosto muito de ler. Sou uma leitora ávida. Leio muitas coisas diferentes e sou eclética, pois leio desde livros de História até biografias sobre estrelas do ténis (que adoro) e sou muito abrangente. Gosto muito de música, mas sou mesmo muito eclética, pois gosto de grupos que me marcaram na adolescência e na infância, como David Bowie, The Cure, uma fase dos U2, Chameleons... O rock menos comercial e mesmo o punk-rock foram também marcantes, mas, por outro lado, tenho formação de piano e há algumas referências clássicas que também gosto muito. Não vou ao cinema. Vejo coisas disponíveis na Netflix, com gostos muito diversificados, nomeadamente os chamados filmes de autor – tenho visto trabalhos interessantes, nomeadamente coreanos, mas também dos realizadores Wim Wenders ou Woody Alen.

 
 
 
Vimaranense convicta, que o trabalho torna cidadã do mundo
 
É o sonho do jornalismo que a leva à Sociologia?
É uma escolha um pouco inesperada. Quando criança, eu queria ser escritora e o tempo foi passando, até que comecei a pensar em jornalismo. Eu admirava alguns repórteres daquela década de 80, imaginava correr o mundo, mostrar desigualdades e sempre tive esse lado mais idealista da adolescência. No entanto, também sempre fui uma aluna extraordinária a Física e também tinha apetência especial pela Matemática. Quando cheguei ao 9º ano de escolaridade, um grupo de professores juntou-se para me convencer a seguir um caminho de sucesso nas ciências. Porém, como eu queria ser escritora, ir para humanidades era o mais adequado. Comecei a pensar que a Ciência Política, ou outra deste tipo, era mais completo do que ir para Comunicação Social, para poder ser uma boa jornalista. Depois, também tive sempre tendência de fugir do Direito, devido a uma experiência de memorização no secundário. Neste contexto todo, acabei por escolher Sociologia, com cadeiras transversais como História, Economia e, também, Direito, onde confirmei que o meu lado criativo não tinha margem nessa área. A Sociologia permitia-me um lado criativo, um pensamento crítico, que me era extraordinariamente útil. Estive sempre muito dividida em várias áreas, mas a Sociologia acabou por me permitir uma versatilidade que se ajusta a mim, completamente.
 
A sua investigação vai nesse sentido transversal.
O interesse em coisas muito diferenciadas influencia a minha carreira. No doutoramento estudei tribunais (lá regressou o Direito...) e mais tarde a genética. No pós-doutoramento trabalhei com um sociólogo da Universidade de Durham, no Reino Unido, que tinha encetado trabalhos da prova ADN no âmbito da investigação criminal e eu trouxe toda essa metodologia e perspetiva para o estudo em Portugal. Tive alguns projetos FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia] que permitiram financiar esse tipo de investigação e nunca mais abandonei o tema. Mais tarde, com equipas maiores e financiamento europeu – fui agraciada em 2015 com uma Consolidator Grant do Conselho Europeu de Investigação [ERC] –, trabalhei as questões da genética na investigação criminal na UE, a partir de dados genéticos.
 
Fugiu sempre da formatação de uma ciência exata?
Sempre fui inconformada. Sempre fui criativa, sou alguém que tentou expressar a sua criatividade de diferentes formas. Por exemplo, quando no 9º ano tive que escolher uma disciplina de opção e optei por Arte e Design, estive indecisa até ao último momento entre isso e Técnicas de Química, que é algo completamente diferente. Acho que em diferentes facetas eu estava sempre acima da média  no piano, na pintura, nas ciências –, mas não suficientemente boa para me diferenciar e para crescer de forma criativa. Por um lado, sempre mantive aquele método científico que herdamos do século XVI, pois tenho mente analítica. Por outro lado, dá-me muito gozo introduzir criatividade e flexibilidade naquilo a que muitos chamam de soft science, mas eu diria que a ciência teórica também é soft science.
 
A Sociologia é um campo vasto e em transformação no qual está como “peixe na água”?
Sim, embora eu olhe mais para a permanência do que para a transformação, que pode ser acessória. Até conduzo a outro aspeto, que foi a minha apetência pela História, pois eu fiz um mestrado nessa área. O meu trabalho de licenciatura foi de arquivo histórico. A minha tese de doutoramento também começou no século XIX e foi até aos anos 2000. Eu não sou aquela socióloga do olhar macro que fala em termos gerais e abstratos sobre democracia, poder, geopolítica. Eu pego num pequeno pormenor e ramifico os níveis de análise e, no meu caso, como a identificação do ADN para investigação criminal nos diz algo sobre estruturas macro de poder, sobre o valor simbólico atribuído à genética. Portanto, eu parto de particular para o geral.
 
Lecionar no seu espírito inconformado... como acontece?
Eu tenho a felicidade de lecionar matérias que os alunos gostam muito. É muito estimulante ver jovens a explorar e estudar a partir de factos históricos. Esse contacto faz-me perceber, a partir das dúvidas deles, como posso comunicar e expressar o meu conhecimento. Por outro lado, é um trabalho inspirador para o meu trabalho de investigadora.
 
Via-se a fazer outra coisa?
Acho mesmo que poderia ter sido uma boa jornalista! [risos] Uma repórter de investigação e de grandes reportagens ter-me-ia feito feliz. Mas acho que as coisas mudaram tanto que já não há tempo para fazer aquele jornalismo de investigação que eu ambicionava. Acho que também poderia ser escritora, mas de facto gosto muito de ser investigadora. Na verdade, o meu trabalho realiza-me esse lado, porque escrevo. Tenho uma carreira de grande quantidade (e eu espero que de qualidade) de publicações, pois normalmente não estou mais do que um mês sem escrever. E isso faz-me muito feliz.


 

 
O rigor científico da genética como campo de estudo sociológico
 
Como começou a explorar essa área da Sociologia?
Acho-a uma área fascinante, pois cruza questões de cidadania, democracia, comunicação e comunicação pública de ciência. Atendendo a que a genética tem uma importância tão central na vida das pessoas, comecei por um estudo sobre a questão da "mãe solteira", um tema que evoluiu para os testes de paternidade ordenados pelos tribunais. Achei fascinante, porque convoca questões de ética, privacidade e identidade. Há até quem diga que a genética tem hoje uma centralidade, no equivalente secular à alma, do ponto de vista dos cristãos. Nos últimos anos, o meu trabalho foi estudar as bases de dados genéticos associados a registos criminais, do ponto de vista da sociedade da vigilância. Ou seja, como pode esta informação servir políticas securitárias, mas podendo criar e reforçar desigualdades sociais ou criar problemas de excesso de controlo, fomentar teorias racistas...
 
É um campo de estudo muito contemporâneo.
É verdade que tenho tentado pegar em temas que estejam no debate público. Quero criar um conhecimento sociológico que interesse para o momento contemporâneo. No entanto, atendendo sempre a que o momento que vivemos resulta da acumulação de momentos históricos.
 
A bolsa ERC  que já aqui citou  aumentou a responsabilidade no seu trabalho?
Foi uma grande felicidade. É bom para Portugal, bom para a comunidade dos cientistas das ciências sociais. Por outro lado, trouxe essa responsabilidade de servir bem os propósitos do ERC, que é produzir ciência de excelência. Responsabilidade de formar investigadores de alto nível capazes de arranjar emprego em qualquer parte do mundo. Deu-me imensas oportunidades, pois tive recursos para interagir com diferentes colegas de diversas partes do mundo. Sempre tive uma abordagem internacional no meu trabalho  voltei-me mais para fora, embora valorize a investigação sobre questões nacionais , mas efetivamente faço mais trabalho global.
 
O que trabalha esse projeto?
Começa pelo Tratado de Prum, que torna obrigatória nos membros da UE a partilha de dados genéticos das respetivas bases de dados nacionais, com o fim de combater a criminalidade e o terrorismo. Este é o ponto de partida, o aspeto empírico que serviu para desenvolver várias interrogações em torno das questões de cidadania, de democracia e do papel da ciência na governabilidade das populações. Questões que vão desde a segurança das pessoas até às questões de direitos humanos, minorias étnicas, refugiados e outras populações em extrema vulnerabilidade.
 
E os cargos de gestão?
O cargo de presidente do ICS serviu-me para ter mais conhecimento e perceber melhor a minha universidade. Os desafios que todas as universidades enfrentam também. Há a vertente com que não me identifico, para a qual não tenho perfil, que é a carga administrativa. Mas temos que contribuir em algum momento, que é essencial e passa um pouco por todos nós.
 
Como se vê daqui a 10 anos?
Eu alimento a minha criatividade na busca de temas a partir do que está a acontecer. Acredito que vou continuar a investigar e a seguir a genética nas suas múltiplas metamorfoses. No cruzamento entre a genética forense e outros campos de atuação da genética humana. Já tenho outras ideias para projetos futuros e estou a preparar trabalho e candidaturas para os próximos anos. É assim que me vejo daqui a uma década: a fazer investigação, a lecionar e a orientar alunos que queiram explorar e investigar estes temas. Sempre a escrever muito!
 
O que significa o Prémio de Mérito Científico da UMinho, após tantas conquistas?
É uma grande alegria. Sinto honra e gratidão, porque a Universidade do Minho criou-me as condições para eu ter liberdade para escolher os temas. Eu sou devedora dessa liberdade que a universidade concede aos seus investigadores. É uma alegria para mim, para o ICS e para as pessoas com quem trabalho.