Jihadismo é uma ameaça para todos os países europeus

24-01-2017 | Catarina Dias

Sandra Costa é também mestre em Política Internacional pela Universidade Livre de Bruxelas e licenciada em Estudos Europeus pela Universidade do Porto

Alguns dos últimos atentados ocorridos em cidades europeias foram reivindicados pelo Daesh. Esta foto de Frank Augstein (AP Photo) retrata uma homenagem às vítimas de um ataque que matou, há um ano, cerca de 130 pessoas em Paris

Jihad é um conceito essencial da religião islâmica e significa vontade pessoal de se buscar e conquistar a fé perfeita; o seguidor da Jihad é conhecido como mujahid (foto do portal Nation.com)

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Conversa com Sandra Costa, doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Escola de Economia e Gestão.

O NÓS esteve à conversa com a politóloga Sandra Costa, que defendeu recentemente uma tese de doutoramento sobre jihadismo na Europa. A portuense explicou como o fenómeno ganhou raízes no continente europeu e a globalização potenciou a sua internacionalização. Nenhum país está a salvo desta “ameaça”, nem Portugal, realça a especialista em questões do Médio Oriente. Aproveitou ainda para tecer críticas aos partidos da extrema-direita, que têm alimentado o medo das pessoas com discursos racistas, e à forma “simplista” dos media retratarem este tipo de acontecimentos.



Nunca se ouviu falar tanto de jihadismo, principalmente por parte dos órgãos de comunicação social. Como define este fenómeno?
O jihadismo define-se como sendo a tendência radical violenta do Islamismo. É dividida em três subcorrentes: a interna, que luta contra os inimigos internos do Islão; a irredentista, cujo principal objetivo é a recuperação de territórios muçulmanos, entretanto perdidos ou sob ocupação; e a global, que atua contra o Ocidente, mais especificamente os EUA e seus aliados. Esta guerra contra o Ocidente iniciou na década de 1990, com o propósito de diminuir a sua influência no seio do mundo muçulmano e acabar com a opressão e humilhação dos muçulmanos.
 
Como é que a jihad chegou ao continente europeu e de que forma tem vindo a evoluir?
A formação de estruturas jihadistas na Europa foi impulsionada, na década de 1990, pela chegada dos “árabes afegãos”, pelo conflito na Bósnia-Herzegovina e pelas redes argelinas de apoio à guerra civil naquele país. Entretanto, verificou-se uma alteração estratégica e ideológica no seio da tendência jihadista, que se virou mais para os inimigos externos do Islão em detrimento dos inimigos internos. A minha tese de doutoramento em Ciência Política e Relações Internacionais, intitulada “Pensamento Islamista Contemporâneo: Jihad Global na Europa”, divide o fenómeno em três fases. A primeira, que vai de 1998 a 2003, corresponde ao período de difusão ideológica, conseguida através de vários ideólogos radicais que se instalaram na Europa. A Europa tornou-se alvo do jihadismo entre 2003 e 2011, quando se assistiu a uma crescente radicalização ideológica - devido aos conflitos no Iraque e Afeganistão e à ocorrência de crises, como as caricaturas dinamarquesas - e à adesão a formas de ativismo de alto-risco, com a deslocação de jovens europeus para palcos de conflito e a decisão de iniciar a jihad no interior do continente. Observou-se a partir de 2011 uma complexificação ideológica e a diversificação do ativismo, refletindo importantes processos ideológicos e sociais. Hoje, o jihadismo na Europa assume-se como uma ameaça mais complexa, descentralizada e heterogénea. 
 
A que se deve esta intensificação do pensamento jihadista na Europa?
O papel proeminente do pensamento jihadista na Europa deve-se a vários fatores, incluindo os conflitos e a instabilidade no mundo muçulmano e as intervenções ocidentais naqueles palcos, as estratégias concertadas de organizações jihadistas transnacionais, as tensões reais ou percecionadas vividas pelos muçulmanos europeus, a difusão do salafismo e o ativismo de certos indivíduos e grupos a nível interno, que contribuem para a consolidação do meio radical europeu.
 
O jihadismo estende-se a Portugal?
A ameaça estende-se a todos os países da Europa, mesmo àqueles que tradicionalmente nunca foram alvo da atenção dos jihadistas. Uma das evoluções observadas foi a deslocação para a Síria de pessoas vindas de Portugal, Finlândia ou Noruega, países que, por norma, não são afetados por estas dinâmicas. Portugal, enquanto membro ativo da comunidade internacional, já foi referido em comunicados da Al-Qaeda e do Daesh. Acresce o facto de fazer parte do território Al-Andalus - nome dado à Península Ibérica pelos muçulmanos no século VIII e que os jihadistas consideram pertencer ainda ao domínio islâmico. Este é um desafio que Portugal não pode menosprezar, até porque, apesar de não ser um dos alvos preferenciais, poderá ser visto como sendo mais vulnerável do que outros países.    
 
Os atentados cometidos por jihadistas têm servido de âncora para discursos xenófobos anti-imigração, quer por parte da sociedade em geral, quer de alguns partidos políticos.
Existe um aproveitamento por parte dos partidos de extrema-direita em ascensão em muitos países. Extremismos alimentam extremismos! Estes partidos fomentam o medo e a desconfiança - em muitos casos pré-existentes na sociedade - para alcançarem os seus objetivos. A crescente polarização das sociedades europeias, as tensões sociopolíticas e o receio do “outro” alimentam, também, perceções negativas da Europa e conduzem ao próprio reforço da narrativa jihadista, a qual defende que os muçulmanos não podem praticar livremente a sua religião cá e que as condições existenciais destes no Ocidente decorre de uma guerra ao Islão.       
 
O Brexit, a quase vitória do Partido da Liberdade da Áustria (FPO) e os resultados da Frente Nacional nas primárias francesas estarão relacionados com o jihadismo?
A ameaça jihadista contribui para explicar o timing e o aumento da oposição à imigração, mas para compreender estes acontecimentos é importante ter em conta outras questões, nomeadamente o fracasso dos partidos mainstream em responder às expetativas das populações, o afastamento da classe política do seu eleitorado e os sentimentos antieuropeus enraizados em alguns segmentos no Reino Unido, que em 1975 levou a referendo a sua continuidade na Comunidade Económica Europeia. Em relação ao FPO, este já tinha obtido bons resultados nas legislativas de 1999, acabando por entrar num governo de coligação no ano a seguir. Estes fenómenos só podem ser explicados como o resultado de um conjunto de dinâmicas em interação ou arriscamo-nos a fazer análises redutoras.
 

“O terror não é uma tática exclusiva dos jihadistas”
 
Alguns especialistas defendem que a emergência do pensamento jihadista é uma reação à globalização. Concorda?
Em situações de crise, ao longo da história islâmica, algumas correntes defenderam o recurso ao Islão em busca de respostas para os desafios com que se deparavam e apelaram à jihad como forma de resistência contra as ameaças. A crescente interconectividade e interação decorrentes da globalização provocou uma alteração das atitudes, identidades e dinâmicas, facilitando a recriação da ummah (comunidade global de crentes) e a difusão de imagens que alimentam a narrativa do sofrimento imposto aos muçulmanos. Porém, a globalização foi sobretudo um importante fator facilitador da internacionalização do jihadismo, devido aos avanços tecnológicos que permitiram uma maior facilidade na deslocação de pessoas, produtos e ideias. 
 
Até que ponto a atual “ofensiva mundial do jihadismo” e a “propaganda” antiterrorista que a acompanha podem fazer crer que o terrorismo é uma exclusividade islamista?
O atual ativismo jihadista alimenta essa ideia e, muitas vezes, acaba por influenciar a formulação de políticas contra o terrorismo e a radicalização, conduzindo ao que alguns designam de securitização do Islão. Por exemplo, o programa contra a radicalização no Reino Unido foi acusado de focar de forma excessiva as comunidades muçulmanas, levando à sua estigmatização. Os recentes atentados, as conspirações desmanteladas e o destaque que a comunicação social dá ao assunto difunde a ideia de que vivemos na fase do terrorismo islamista. Porém, o terror não é uma tática exclusiva dos jihadistas, e nos relatórios de agências internacionais existem referências a atos cometidos por grupos de extrema-direita, extrema-esquerda e nacionalistas.
 
Como classifica a cobertura mediática portuguesa dos ataques terroristas?
Sou crítica da abordagem da comunicação social portuguesa. A maioria recorre às palavras “terrorismo” e “jihadista” antes de confirmar o que realmente aconteceu. A interpretação que fazem dos acontecimentos é simplista, aumentando o pânico nas pessoas, quando deveriam informar adequadamente sem alarmar e comprometer a gestão do medo que naturalmente se instala nestas ocasiões.       
 
Como avalia a atuação da Europa em relação ao jihadismo?
Este é um assunto complicado, pois nem todos os países são afetados da mesma maneira pelos mesmos problemas. A Europa deve continuar a aprofundar a cooperação entre os países e fortalecer as suas ações de combate à radicalização violenta, aplicando os vários pilares da sua estratégia contra o terrorismo, sem comprometer os direitos dos cidadãos.       
 
Os últimos ataques terroristas têm vindo a dificultar a entrada e o acolhimento de refugiados na Europa. Quer comentar?
A questão dos refugiados deve ser tratada primeiro como uma questão humanitária. Infelizmente, incidentes recentes contribuíram para fomentar as desconfianças relativamente a este grupo, fazendo com que as populações que chegam à Europa sejam olhadas pelo prisma securitário. São necessários mecanismos de controlo rigorosos e políticas de auxílio humanitário que minimizem o sofrimento destas pessoas.
 
Acha que o cenário pode vir a melhorar com António Guterres na liderança da ONU?
Acredito que Guterres será um líder melhor do que o seu antecessor, Ban Ki-moon. Tem carisma, vontade de fazer acontecer e experiência em questões humanitárias. Neste sentido, conhece bem os desafios e os temas que merecem destaque na agenda da organização. Enquanto secretário-geral da ONU, pode fazer propostas para enfrentar a questão dos refugiados, combater a ameaça do terrorismo e para a resolução dos vários conflitos que contribuem para alimentar estes dois fenómenos, servindo de mediador e gerador de consensos.
 
E com Donald Trump na Presidência dos EUA?
Duvido que o cenário possa melhorar com Trump. Ninguém sabe quais serão as suas políticas para o Médio Oriente e o mundo muçulmano em geral. A sua retórica sobre os muçulmanos tem sido bastante tóxica. Acredito que a sua eleição pode contribuir para aumentar o antiamericanismo, fomentando a radicalização de alguns indivíduos. Aliás, é interessante analisar as reações de júbilo de alguns jihadistas à sua vitória, vista como o início da fragmentação daquele país e como expondo a verdadeira face da América. 



O que deve saber sobre jihadismo
 
- Trata-se de um fenómeno multifacetado que alargou a sua arena de atuação ao mundo e adotou uma gama cada vez mais variada de inimigos. Tem atraído homens e mulheres de todos os níveis sociais e educacionais.
- Embora exista uma relação entre o estatuto socioeconómico e radicalização, essa não tem necessariamente uma natureza causal. As questões identitárias são fundamentais para a compreensão da questão da radicalização.   
- Apesar da ênfase concedida ao autodenominado Estado Islâmico, visto como a principal ameaça terrorista a países ocidentais e muçulmanos, a Al-Qaeda continua a organizar-se em determinados palcos, tendo variado as suas estratégias e modos de ação.    
- O atual jihadismo europeu resulta de fatores externos e dinâmicas internas, motivações ideológicas e questões sociais, bem como de estratégias de atores transnacionais e ativismo de indivíduos a nível doméstico. 
- Deve ser encarado como um desafio a médio e longo-prazo, o que obriga à formulação de políticas de contenção da ameaça mais robustas e versáteis. Estas devem conter uma componente política, social, legal e judicial, sem desconsiderar questões teológicas e sociopsicológicas que possam afetar processos de radicalização individual.