“Os cientistas precisam de retomar o controlo das suas publicações”

31-03-2017 | Nuno Passos

Eloy Rodrigues é diretor dos Serviços de Documentação da UMinho (SDUM) e presidente da Confederação Mundial de Repositórios de Acesso Aberto (COAR). Na foto, numa conferência em Beijing, China

Pedro Príncipe e Eloy Rodrigues, ambos dos SDUM, num "webinar" do projeto europeu OpenAIREplus, em outubro de 2016

O projeto europeu FOSTER, liderado pelos SDUM, promove o conhecimento e as práticas de acesso aberto, dados abertos e ciência aberta junto de todos os participantes do Espaço Europeu de Investigação

Cartoon de Patrick Hochstenbach/CC-BY

"O custo real da revisão por pares de um artigo é de poucas centenas de euros, mas se nada mudar atingiremos 20 mil euros e o cientista aceitar pagá-los para publicar o seu artigo, se isso representar um empurrão na carreira", alerta Eloy Rodrigues

A simbologia usada no acesso digital a documentos científicos

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Em 2025, o acesso aberto às publicações científicas será perto dos 100%, mas a transição depende de academias, investigadores, financiadores da ciência e decisores políticos, diz Eloy Rodrigues.




Quais são os desafios atuais do acesso aberto?
A sua generalização, completando um processo com mais de uma década. Estima-se que quase metade das publicações científicas já está em open access. E, por outro lado, fazê-lo de forma sustentável, sem custos acrescidos para o sistema cientifico, porque alguns modelos, como o pagamento de taxa de publicação, podem criar uma pressão adicional na transição para o acesso aberto.
 
Qual é a realidade do ensino superior neste âmbito, face a alguma contenção no financiamento público ocidental?
O financiamento da investigação em termos globais é diverso. Há países que mantêm apoios em níveis elevados e outros em que isso foi diminuído, como em Portugal nos anos da crise. Por outro lado, tem havido um forte investimento da Comissão Europeia na ciência e inovação. Nesta transição para o acesso aberto, o modelo definido pela maioria das instituições tem sido o de depósitos das publicações em repositórios, com custos relativamente reduzidos. Mas o modelo que as editoras de revistas científicas tentam impor, com apoio de agentes financiadores, é o chamado “acesso aberto dourado”, que implica o pagamento de taxas de publicação. Portanto, na fase atual não é ainda possível cancelar as assinaturas ou o acesso às revistas tradicionais. O pagamento dessas taxas pode até representar custos acrescidos: em vez da expectativa de diminuirmos os custos de publicação, verifica-se, em países como o Reino Unido, que os custos totais relacionados com a publicação ou o acesso ao conhecimento gerado podem estar a aumentar, o que é um paradoxo.
 
Que modelo poderá vingar?
É o grande debate do momento. Espero que seja o modelo de fair open access (acesso aberto justo), que pressupõe o reassumir do controlo do sistema de comunicação científica pela própria comunidade científica. Ou seja, em que haja os custos efetivos da publicação e não os custos que têm sido impostos, os quais são completamente arbitrários e ligados a aspetos como o prestígio das revistas. O modelo que se pretende é baseado em novas formas de publicação, na utilização dos repositórios como veículo de disseminação do conhecimento e no pagamento justo daquilo que é o serviço essencial das revistas, isto é, a validação científica e a revisão por pares (peer review), que pode ser feito com custos muito mais reduzidos se for um processo controlado pelas universidades e pelos financiadores da ciência; ou então mais controlado, mesmo sendo feito por entidades externas/comerciais.
 
Há estudos sobre isso?
Vários. Quer os custos de assinatura das revistas, quer as taxas de publicação ou APC [sigla de article processing charge] são completamente aleatórios e baseados no mercado de prestígio, não se baseiam nos custos reais da produção das revistas. Há revistas que cobram APC de 100 euros e outras de 5000 euros. Além disso, cerca de 60% do mercado é dominado por duas grandes editoras, Elsevier e Springer Nature, que procuram ditar os custos.
 
A influência destas revistas é utilizada para os rankings que medem o impacto científico das próprias universidades no mundo.
Exatamente. É outro aspeto que terá que mudar. Essas revistas são usadas para várias formas de avaliação, desde os investigadores individuais (para contratação, financiamento de projetos e valorização da carreira, por exemplo) até às instituições em si. É um uso totalmente errado de uma métrica, o “fator de impacto” [número de citações em média por cada artigo da revista], que foi criada para outro fim. Essa métrica visava comparar revistas, saber as que publicam em média os artigos melhores ou que geram mais impacto na comunidade científica. Só que isso agora serve para avaliar o “contentor” e não o “conteúdo” da revista. Ou seja, não serve para avaliar os artigos ou os investigadores individualmente. Por exemplo, a Nature tem alguns artigos que geram milhares de citações, mas depois tem muitos artigos que mal são citados. Ora, o cientista que publica aí um artigo que nunca seja citado pode ser mais bem avaliado nas suas candidaturas do que o colega que publicou um artigo numa revista com menor fator de impacto e que gerou centenas de citações. Esta distorção ocorre dos níveis micro ao macro. Isto compreendia-se há 30 anos, quando as estatísticas eram feitas em papel. Hoje, há poder computacional suficiente para pegar, por exemplo, nos 3000 artigos publicados por ano pela UMinho e fazer análises individuais, comparar universidades, ver a evolução na última década.
 
Randy Shekman, Nobel da Medicina 2013, fez uma cruzada contra a escala de impacto. Acha o critério nocivo, ao transferir a responsabilidade da investigação para os editores, que por vezes nem são cientistas, e pode levar as revistas a incluírem artigos sensacionalistas para aumentarem a visibilidade.
Sem dúvida. Um estudo mostra que essa pressão está a levar a más práticas científicas, desde falsificar resultados a lançar artigos que não correspondem a investigação real. Isso leva a uma retração (retraction), como retirar o artigo por fraude, algo que tem subido mesmo nas revistas com maior impacto, porque a pressão para aí publicar se acentuou, apesar de supostamente haver controlo de qualidade. Há o caso célebre do coreano Hwang Woo-suk, que saiu na Science pela sua nova técnica de clonagem humana, mas veio a saber-se que era tudo falso.
 
E do japonês Yoshiki Sasai, que se suicidou após o seu método de fabrico de células estaminais, publicado na Nature, se revelar uma fraude.
O facto de se usar este método como proxy da qualidade tem muitos efeitos nocivos. Há cientistas que, em vez de investigarem, tentam colocar-se bem naquela fotografia, mas da pior forma. Mais tarde ou mais cedo, a verdade científica vem ao de cima.

 


Em que momento as editoras passaram a ter o controlo?
Até à II Guerra Mundial, estas revistas eram controladas pelas sociedades científicas e universidades, praticamente não havia edição comercial. Nos anos 1960 e 1970, com o maior volume de estudos e publicações, muitas sociedades científicas começaram a entregar a sua parte editorial a empresas. No final dos anos 80 surgiu a concentração de títulos em grupos editoriais, com magnatas dos media como Robert Maxwell e Rupert Murdoch. E, há poucos anos, a Comissão Europeia chegou a impedir aquisições de uma editora, para evitar um eventual monopólio no setor.
 



Distorção do sistema está a ter custos muito elevados

Até que ponto declarações como a DORA (San Francisco Declaration on Research Assessement), já aceite por vários cientistas e instituições, poderão ajudar no fim do uso indiscriminado dessas escalas e no acesso livre às publicações científicas?
É necessário que as instituições de investigação, os cientistas, os financiadores de ciência retomem o controlo do sistema de comunicação científica. Atualmente está entregue a grandes grupos editoriais, num controlo vertical de todo o processo, desde as ferramentas de geração de referências bibliográficas às métricas de avaliação da investigação.
 
Estamos numa fase em que – diz-se entre pares – se o investigador não publica, desaparece. E muitos acham que se não publicam em revistas pagas, ficam prejudicados. É preciso muita força de caráter?
Vai ser preciso que quem participa neste sistema despenda alguma energia. Muitos cientistas consideram que “passarem” os seus trabalhos para as revistas dá-lhes menos trabalho. Dito de outra forma, é mais fácil usar o impact factor do que desenvolver um algoritmo ou outra fórmula de avaliar as pessoas, logo “deixa-se as coisas como estão”. Só que isto tem custos elevados na distorção do sistema e mesmo económicos, de muitos milhares e milhões de euros a cada instituição e país.
 
É dinheiro público.
Exatamente.
 
Nos projetos com fundos da União Europeia, há obrigatoriedade de publicar em acesso aberto?
Na comunidade tem havido alguma confusão sobre o significado de publicar em acesso aberto ou em “acesso aberto dourado” [o cientista paga a taxa de publicação na revista e o artigo fica em consulta livre]. O Horizonte 2020 determina a obrigatoriedade de depositar os artigos em acesso aberto num repositório. Na UMinho, quem publica tem que o fazer no RepositóriUM, podendo, consoante a revista, haver, ou não, embargo, que vai de 6 a 12 meses. Isso cumpre o requisito da Comissão Europeia e, também, a política nacional da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia], que requer uma cópia da publicação na rede do RCAAP [Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal, do qual a UMinho é cofundadora]. Aliás, ao colocar no RepositóriUM, o cientista está a dar visibilidade ao seu trabalho, ao seu grupo/centro de investigação, à sua universidade, ao seu país.
 
Ainda assim, haver publicações que não ficam logo em acesso aberto é uma etapa no processo?
O ideal era tudo ficar em acesso aberto no imediato. Estamos num período de transição. Por exemplo, o autor pode ser contactado no RepositóriUM para ceder uma cópia do artigo durante o embargo, desde que para fins educativos ou académicos. Há enquadramento legal para isso.
 
Como será na próxima década?
Já não tenho dúvidas que antes de 2025 estaremos muito próximo do acesso aberto a 100%. A questão é como vai ser até lá – se nas mãos das grandes editoras e com métricas pobres ou, então, se fazemos uma transição para as instituições reassumirem o controlo e a custos reais. Repare, o custo real da revisão por pares de um artigo para revista é de poucas centenas de euros. Neste momento, pratica-se acima dos 2000 euros, em média. Se nada mudar, podemos atingir 20 mil euros e o cientista aceitar pagá-los para publicar o seu artigo, se isso representar um grande empurrão para a sua carreira.
 
O que fazer?
Primeiro, instituições e cientistas têm que estar ao dispor para reassumir o controlo do sistema e o que isso vai implicar. Segundo, universidades e financiadores de ciência não podem dizer aos investigadores “Sejam abertos”, mas ao mesmo tempo darem o sinal contrário de “Importa-nos é que publiquem na Science”. Terceiro, ter consciência que o processo ficará infinitamente mais transparente e barato a prazo. É preciso alguma energia e vontade política nacional e transnacional para que o sistema e o modo de avaliação mudem. Isso foi já realçado em 2016, numa conferência aquando da presidência holandesa da UE. A Associação Europeia de Universidades tem também um grupo de peritos sobre o tema [do qual Eloy faz parte, em representação do CRUP - Conselho de Reitores]. Em Portugal, a sra. Secretária de Estado Fernanda Rollo tem uma posição determinada e incluiu o tema na agenda do Governo.
 
Considera que a UMinho tem sido pioneira no acesso aberto?
Sem dúvida. Teve o primeiro repositório em língua portuguesa, tem uma política de auto-arquivo desde 2004, é coordenadora científica e técnica do RCAAP, tem dois membros no grupo de trabalho da Política Nacional da Ciência Aberta, participa ativamente em iniciativas do Governo com outros países, coordena projetos europeus como o OpenAIREplus e FOSTER e tem o atual presidente da Confederação Mundial de Repositórios de Acesso Aberto (COAR).