“Há dias em que tudo o que faço é nada perante as atrocidades”

16-10-2017 | Nuno Passos

Com uma criança de Kibera, nos arredores de Nairobi, Quénia, junto ao símbolo da associação solidária Hodi, que criou

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Rita Martins

Nasceu no Porto há 33 anos, mas viveu quase sempre em Braga. Formou-se em Psicologia em Coimbra, no CICD na Inglaterra e é mestranda em Direitos Humanos na UM. Atuou em Mombaça e Kibera (Quénia), a maior favela urbana de África, onde continua a apoiar o seu povo com a associação Hodi, que criou. Vai agora cumprir um sonho, como psicóloga dos Médicos sem Fronteiras.


Que recordações tem da infância e juventude?
Boas! Da infância, retenho verões passados com família materna e paterna, entre Vila do Conde (praia) e Alpendorada (aldeia), e muitas brincadeiras à mistura. Lembro-me de caminhar com o meu pai e o meu irmão num bosque perto da casa onde vivíamos (enquanto a mãe preparava o almoço) e fazermos de “exploradores” entre contacto com animais, flores e o rio. Já a juventude foi passada em Braga. Lembro-me de ter um grupo de amigos enorme (em Nogueira) e, posteriormente, um grupo mais pequeno e chegado, o “Anarquie 99”. Juntos passámos uma juventude saudável e cheia de descobertas próprias dessa etapa.
 
Porque decidiu formar-se em Psicologia? E em Direitos Humanos, em especial na UMinho?
Estranhamente, tinha frequentado Informática de Gestão na UMinho, curso com o qual não me identifiquei, o que me permitiu compreender que as saídas profissionais não são sinónimos de satisfação pessoal. Mudei para Psicologia, na Universidade de Coimbra, pois achava que era um veículo mais fácil de enveredar mais tarde pela parte humanitária, que sempre foi o meu grande objetivo. O mestrado em Direitos Humanos surgiu sete anos depois, já com outra maturidade e bagagem profissional e pessoal, pois gostaria de ter mais informação (sobretudo internacional) ligada à temática. Escolhi a UMinho pois “bom filho a casa torna” e, obviamente, por ter o mestrado na área mais conceituado do país, com um excelente leque de profissionais.
 
Como foram os primeiros tempos na UMinho?
Quando entrei no antigo curso de Informática de Gestão (2002, creio!), a integração foi muito boa, pois estava num curso maioritariamente formado por rapazes; por isso, todas as atenções estavam voltadas para mim e as minhas amigas. [risos] Não posso dizer que tive um professor que me marcou, muito menos disciplina, pois não era de todo a minha área preferencial. E em Psicologia também não, pois a área que me interessava não estava ainda a ser desenvolvida em Portugal. Atualmente, no mestrado em Direitos Humanos, considero a professora Patrícia Vink, diretora do curso, alguém que me marcou pela sua extrema competência, pelo apoio aos alunos, pelo empenho e pela cultura em termos de direitos humanos.
 
Que estórias guarda da vida académica?
Recordo-me dos bons tempos na Queima das Fitas e no Enterro da Gata. Nas atividades extracurriculares fiz parte do TUM - Teatro Universitário do Minho, em Braga, e da equipa técnica da RUC - Rádio Universidade de Coimbra.
 
Faz em 2017/18 uma paragem nos estudos devido a uma nova ação humanitária.
Certo. Deixei o segundo ano do mestrado em stand-by, pois partirei em breve numa missão de um ano, enquanto psicóloga, com os Médicos Sem Fronteiras, para um local ainda incerto. Era um sonho antigo e, como tal, fico imensamente feliz por ter sido selecionada e poder fazer parte da equipa da melhor organização mundial de intervenção médico-humanitária em crises e catástrofes. Conto voltar depois e possivelmente terminar o mestrado.
 
Como surgiu o seu gosto por voluntariado internacional?
Provavelmente, por influência do meu pai e pelo que nos entra diariamente em casa através dos media. O meu pai deu aulas em Angola e partilhava connosco fotos da praia com os seus “afilhados” (miúdos com dificuldades, com quem estava depois das aulas na universidade). Sempre acreditei na ideia de que ficar em casa no sofá, a ver as imagens a entrar e apenas dizer que a situação está caótica, não é o caminho. Tracei todo o meu percurso profissional e pessoal nesse sentido e, com muito esforço, motivação, empenho, abnegação e sacrifício, consegui realizar quase todos os meus sonhos.
 
Como foi deixar tudo para trás e a reação de família e amigos? Nunca se arrependeu?
Não diria que deixei tudo para trás. É apenas um “até já!”. Obviamente que custa imenso “deixar” os que nos fazem bem e falta. É sempre doloroso o corte físico, apesar de hoje termos mais possibilidades de encurtar essas saudades nesta era digital. No entanto, todos sabem que tal faz parte da minha felicidade e, por isso, apoiam-me ao máximo e são sempre os meus pilares. Não me arrependo, mas claro que gostaria de poder conciliar tudo. Isso seria o ideal e é nesse sentido que quero apostar futuramente.
 
Porquê África, em especial o Quénia?
Pela necessidade de ver com os meus próprios olhos e verificar se realmente fazia sentido partir. De alguma forma, tinha meios de ajudar. A primeira experiência foi em Mombaça, para onde parti em 2013 sozinha com uma mochila às costas – e adorei. Fiz muito pouco, mas percebi que me enquadrava totalmente na cultura local e que poderia fazer mais. Felizmente, tive oportunidade de, em menos de seis meses, regressar, desta vez com contrato de um ano para trabalhar com uma ONG queniana, na maior favela urbana de África, em Kibera.
 
Como é aí um dia normal?
Não há propriamente uma rotina em Kibera. Tentamos ter um planeamento semanal das atividades para nos guiarmos com a equipa dos voluntários e o staff local, que muitas vezes tem que ser alterado, de acordo com a prioridade das situações. Há idas às três escolas onde colaboramos, compra de uniformes e sapatos, organização dos apadrinhamentos, verificação da qualidade e quantidade do programa alimentar, organização de atividades com as crianças, visita a casas de famílias (parte comunitária/social), reuniões com pais, professores e staff, consulta… Soma-se todo o trabalho administrativo a fazer.
 
O que a comunidade local mais precisa?
Além das necessidades básicas evidentes de segurança, habitacionais, nutricionais e médicas, necessita de dignidade, de respeito para sair da sombra de quem os está a tapar. De ser vista e ouvida!
 

"O voluntariado nunca pode ser um escape ou uma tentativa de autoajuda"

Como gere as emoções do que vê e vive?
É a parte mais complicada. Gerir as emoções no terreno. Um dia acordamos com uma vontade enorme e a certeza de que podemos e vamos mudar tudo; depois, há dias mais complicados em que nos questionamos e vemos que, afinal, tudo o que fazemos é quase nada! O mais complicado no meio disto tudo é de facto esta gestão coerente de emoções. Saber controlar os sentimentos, saber e ter que dizer que não, aceitar que não somos omnipotentes e que, apesar de toda a nossa vontade, nem sempre conseguimos realizar tudo a que nos propomos e temos aceitar que há alturas em que nada podemos fazer para amenizar certas dores! É importante saber balancear tudo na vida, mas sem dúvida que isto é o mais complicado de fazer quando diariamente nos deparamos com atrocidades, com graves violações dos direitos humanos fundamentais e quando sabemos que, ainda que pouco, podemos fazer mais e melhor! É sobretudo revoltante saber que há quem tenha mais poder do que nós e pouco ou nada faz para melhorar a vida dos seus semelhantes!
 
Como surgiu a Hodi - Associação para a Cooperação, Desenvolvimento e Promoção dos Direitos Humanos em Kibera?
Hodi significa, em suaíli, "pedir licença para entrar". Surgiu formalmente em Portugal em julho de 2016, depois de um trabalho contínuo iniciado em maio de 2014 (o projeto “Hodi Kibera”). Neste momento não temos escritório em Braga, devido a dificuldades na renda mensal, e procuramos um local gratuito.
 
Como se pode ajudar?
Pode-se aderir como sócio (15 euros anuais) ou apadrinhar crianças necessitadas (200 euros anuais). Outra forma de ajudar é adquirir artesanato que trazemos do Quénia ou nos mercados de rua em festas temáticas em Braga, como no Natal e na Páscoa. Também se pode apoiar organizando eventos de angariação de fundos; já tivemos dois festivais de hip-hop, tertúlias de poesia… A angariação de fundos é e vai ser o grande entrave ao crescimento da associação.
 
Se a Hodi passar a ONGd (organização não-governamental para o desenvolvimento), talvez dentro de um ano, o que pode mudar com o apoio das empresas?
Como ONGd, teremos a oportunidade de atuar ao abrigo da lei do mecenato ou utilidade pública, certamente uma mais-valia para nós. Poderemos receber fundos de empresas (há uma percentagem interna anual das empresas que poderá ser usada em projetos sociais e humanitários), e será a meu ver uma “win-win situation”. Precisamos de mais apoios de entidades e organizações, pois até aqui temos contado basicamente com apoios individuais (VÍDEO).
 
No seu entender, como é que a comunidade académica encara o voluntariado?
Não tenho uma opinião clara, para ser sincera. Existem alguns núcleos de voluntariado na UMinho e noutras universidades. As “praxes”, por exemplo, deveriam ser substituídas por ações de voluntariado nacional. Isso sim, seria avançar na educação cívica dos jovens que vão entrar para o ensino superior. Desta forma, poderiam encarar o momento como um caminhar para alargar o espírito social e humano. E este também deveria ser outro tipo de aprendizagem oferecido pelas universidades.
 
Que mensagem deixa a quem pensa/quer ser voluntário(a)?
Na minha opinião, o voluntariado nunca pode ser um escape para a realidade ou uma tentativa de autoajuda. Antes pelo contrário, diria. O voluntário tem que estar bem preparado, sobretudo ao nível psicológico. A sua realidade vai ser muito diferente, a todos os níveis. Como tal, terá que saber que não existem super-homens nem supermulheres. Tem que estar preparado para ver, e muitas vezes perceber, que não é num período de tempo muito curto, que as mudanças vão ser sentidas. Acredito que o período de voluntariado deveria ser o mais alargado possível, para que de facto se sintam algumas mudanças. Aceitar que não podemos mudar tudo; lidar bem com frustrações; ser humilde; respeitar a cultura alheia; ser muito dinâmico; ser flexível; estudar bem o contexto para onde se vai; pensar em estratégias de coping; e, principalmente, ser muito open-minded e ir com o coração cheio de amor. Penso que desta forma a experiência tem tudo para ser bem aproveitada.
 
Que outros desafios pessoais e profissionais gostava de realizar?
O meu grande sonho era fazer parte dos Médicos sem Fronteiras, portanto está a realizar-se! Quando voltar a Portugal, gostaria de continuar o trabalho realizado lá fora. O problema é que as oportunidades são escassas e eu – que nem estou inscrita na Ordem dos Psicólogos, pois recuso o estágio profissional não remunerado, nesta fase da vida –, apesar de provavelmente ter mais experiência do que muitos colegas – terei poucas oportunidades na área. Adorava explorar algo relacionado com Psicologia, em particular na área das emergências e catástrofes, contudo sei que vou estar sempre limitada profissionalmente. O que é uma pena.
 
 

Curiosidades
 
Um livro. “Amor em tempos de cólera”, de Gabriel García Márquez.
Um filme. “A vida é bela”, de Roberto Benigni.
Um disco. “In the heart of the moon”, de Ali Farka Touré & Toumani Diabaté.
Um clube. FC Porto.
Um desporto. Quando a preguicite aguda não impera: body attackjogging, natação.
Um passatempo. Descobrir música boa.
Uma viagem. Volta a África.
Um prato. Parrilhada de marisco.
Um vício. Cerveja, tremoços e rissóis.
Uma personalidade. Nelson Mandela.
Um momento. Chegada a Mombaça, em 2013.
Uma frase. “The way you get meaning into your life is to devote yourself to loving others, devote yourself to your community around you, and devote yourself to creating something that gives you purpose and meaning” (Mitch Albom).
Um sonho. Ser mãe.
A UMinho. Um pilar para o futuro.
 

Fotos cedidas por Rita Martins