Evolução social e legal da família

22-12-2017

Rossana Martingo Cruz

Ao Direito cabe continuar a acompanhar a evolução social, sem a pretensão de definir o que é a família.


A conceção de família não é estanque nem unitária. A sua perceção não só acompanhará a feroz passagem do tempo como a evolução social e as consequentes mudanças de mentalidade. Assim, será sempre difícil definir um conceito em constante mutação e que dependerá das idiossincrasias de cada cidadão, das suas vivências e contextos sociais. Atendendo a esta mutabilidade, não deve o Direito comprometer-se com uma definição correndo o risco que a mesma perca, a breve trecho, a sua atualidade. Até porque a realidade social avança a um ritmo mais rápido que a produção da norma.

Longe vão os tempos em que a família nuclear (pai, mãe e filhos) ocupava a ideia de realidade familiar para a maioria dos cidadãos. Nem a tão usada expressão «família tradicional» se afigura propriamente correta dada a sua ambiguidade geohistórica e a sua vinculação a ideais quase amorfos. Os afetos assumem uma aceitação que o Direito absorve e se sente impelido a regular. A perceção de família muda com o tempo uma vez que é uma construção social. E, por isso, deve ser analisada tendo em atenção as circunstâncias concretas que a circundaram em cada momento, levando-nos à - já conhecida - conclusão de que não existe família mas sim famílias.

A importância da família é transversal, daí que todas as matérias no seu entorno relevem de sobremaneira. Comummente, será no seio da família que o indivíduo se desenvolve. A família, em termos abstratos, será constituída por um conjunto de pessoas interligadas entre si que influem a conduta de uns e de outros e que comportam, ainda, pressões de um ente exterior: a sociedade.

O Homem sempre se organizou em núcleos familiares (de diferentes sortes), pois cedo descobriu que essa existência comungada o faria prosperar. Nas últimas décadas, a família foi profundamente afetada por mudanças sociais e perdeu algumas das características pelas quais foi sendo reconhecida nos últimos séculos. A quebra destas «amarras» no contexto familiar ocorre a partir da década de sessenta nos países ocidentais (embora em Portugal se tenha tornado mais evidente a partir de abril de 1974). Paulatinamente, desde a II Grande Guerra, os ideais de democracia e igualdade ganham terreno, a mulher começa a adquirir um estatuto de igualdade e os indivíduos assumem a sua autonomia afetiva, sexual e familiar.

Em consequência, a evolução do Direito da Família na senda das dinâmicas relacionais familiares tem sido notável nas últimas décadas, obrigando o legislador a abraçar as mudanças propiciando acolhimento legal para as mesmas, como forma de enobrecer o direito à autodeterminação familiar. Existem diversas formas familiares com distintas configurações jurídicas. Não obstante o elenco fechado (e já ultrapassado) do artigo 1576.º do Código Civil considerar como fontes familiares o casamento, a adoção, o parentesco e afinidade; a Constituição a República Portuguesa (nos artigos 36.º e 67.º) abre as portas para um entendimento amplo que tem sido seguido pelo legislador com a produção de diplomas avulsos (sustentando realidades como a união de facto e o apadrinhamento civil).

Enaltece-se uma perspetiva legal inclusiva de família devendo o legislador conferir proteção a núcleos que vivem e interagem em cúpulas afetivas estáveis, ainda que de origem diversa. Ao Direito cabe continuar a acompanhar a evolução social, sem a pretensão de definir o que é a família. Aliás, dando corpo à célebre expressão da escritora francesa conhecida como Condessa de Beausacq, "família é um conjunto de pessoas que se defendem em bloco e se atacam em particular".


Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho