A história da indústria dos brinquedos em Portugal

22-12-2017 | Nuno Passos

Pormenor do Museu do Brinquedo Português (foto de Nelson Garrido/Público)

Os célebres soldadinhos de chumbo portugueses (foto do Município de Ponte de Lima)

Carlos Anjos é um dos principais colecionadores e entusiastas dos brinquedos em Portugal (foto de Nelson Garrido/Público)

Miguel Pina Martins é fundador da jovem "Science4You", dedicada à educação científica (foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Um grupo de crianças com um brinquedo artesanal, temporalmente longe da "verdadeira industrialização" do setor no país

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José Manuel Lopes Cordeiro, do Instituto de Ciências Sociais, está a realizar um trabalho pioneiro na área.




A história da indústria dos brinquedos em Portugal está por investigar. Da maioria das oficinas, fábricas e maquinismos restam ruínas. Dos objetos produzidos resta um espólio escasso à guarda de alguns colecionadores e museus. A pesquisa está sobretudo em dois livros resumidos, nos catálogos de exposições temporárias e… nos colecionadores. “Custa entender como não há quase ninguém a aprofundar o tema... É que o brinquedo é transversal às várias gerações e idades”, reflete José Manuel Lopes Cordeiro, do Departamento de História do Instituto de Ciências Sociais da UMinho e uma referência no estudo do património industrial nacional. O professor tem diversos trabalhos em mãos, mas quer juntar este desafio, eventualmente com apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) ou de outras entidades. “É um terreno difícil do ponto de vista da investigação científica, pois 95% das fábricas desapareceram e não se guardaram arquivos nem histórias dos objetos e das pessoas que estiveram envolvidas”, resumiu no primeiro Congresso de Brinquedo Português, copromovido recentemente pela UMinho.
 
Lopes Cordeiro define três etapas da industrialização do brinquedo em Portugal, consoante os materiais aplicados. Na primeira – do século XIX à década de 1940 – recorreu-se a pasta de papel, madeira, folha-de-flandres, ferro e chumbo para fazer, por exemplo, cavalos de baloiço, piões, bonecos articulados, carros infantis e soldadinhos. A oficina mais antiga referenciada foi a “José Agostinho da Costa Carneiro”, de 1878, da Maia, ligada a brinquedos de madeira, mas “quase de certeza” existiram outras antes. “É citada no livro ‘O Brinquedo em Portugal’, mas não tinha licença, como era comum na época, porque não encontrei registos de constituições destas fábricas no Arquivo do Governo Civil do Porto”, contextualiza o investigador. As principais oficinas ficavam no Porto, Ermesinde, Valongo, Gondomar e Lisboa, onde havia a conhecida “Augusto Poitier”. “Eram sobretudo espaços pequenos, na própria habitação, com práticas artesanais, fazendo séries limitadas e vendendo em feiras locais ou regionais”, realça. Os empresários estavam no ramo “por gosto pessoal” e “mantinham uma certa rivalidade, como a espionagem dos modelos entre as diferentes fábricas e a tentativa de reprodução dos que tinham sucesso”. Por outro lado, alguns artesãos urbanos começaram a introduzir design em objetos de madeira e de lata, como a galinha a abrir as asas de outras formas.
 
A segunda etapa surgiu após a II Guerra Mundial, com a afirmação do plástico. O fabrico deu-se de Viana do Castelo (fábrica “Papa Léguas") ao Algarve (três fábricas), mas com ênfase na zona de Leiria, Marinha Grande, Batalha, Caldas da Rainha, Porto de Mós, Peniche e Pombal. O plástico foi evoluindo do mais rígido – perigoso para as crianças, ao soltar-se em lascas – aos mais diversos polímeros seminaturais e sintéticos, como celuloide, baquelite e polietileno. Os moldes não tinham grande sofisticação e a produção tornou-se mais económica, rápida e fácil. “Foi a verdadeira industrialização do setor no país”, alude o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova.UMinho). Entre os objetos construídos, havia miniaturas específicas, como os comboios Expresso do Vouga e Lusitânia Expresso ou soldados com a farda da Mocidade Portuguesa ou do exército luso na I Guerra Mundial. O contexto sociopolítico estava presente já há algumas décadas nos brinquedos. Por exemplo, os aviões Spitfire (britânico) ou Stuka (alemão), típicos da II Guerra, vinham às peças em caixinhas, para construir, colar e depois pintar com tinta ou colar por decalque os símbolos nacionais. Este tipo de modelos estrangeiros, em geral da Alemanha, França e Inglaterra, também era copiado por cá.
 
A terceira etapa sucedeu após o 25 de Abril, com uma perspetiva empresarial e nalguns casos internacional. Tal sucedeu com a “Vitesse”, da Maia, que beneficiou do maquetista Fernando Pinto e nos anos 80 se assumiu como “líder mundial” nos automóveis miniatura 1/43 (lembra-se do icónico táxi verde e preto Mercedes 180?). Mas a primeira fábrica a exportar tinha sido nos anos 60 a “Metosul”, de Espinho, que passou do ferro ao plástico e destacou-se pelas miniaturas de camiões Mercedes-Benz e VW “carocha”. Houve ainda a "Maia & Borges", fundada em1976 em Nogueira da Maia, que fabricou figuras sob licença, como o Snoopy, a Pantera Cor de Rosa e as mascotes da Expo'98 e do Euro'2004. E a “Luso-Toys”, da Maia, apostou num catálogo de peças que o arquiteto Siza Vieira comentou ser hoje “mais difícil de achar do que uma formiga branca de olhos azuis”. Só que no mercado global a concorrência é séria e nenhuma delas perdurou. Aliás, o declínio da frágil e conservadora indústria nacional do setor começou a sentir-se nos anos 70 e, sobretudo, fruto da adesão à CEE (1986), com a livre circulação de produtos, as regras mais rígidas na segurança e fabrico de produtos (exigindo outra estrutura económica para aguentar) e o advento dos preços baixos asiáticos. Essas fábricas nacionais viraram-se então para outros setores do plástico, nomeadamente com aplicação doméstica.
 
Portugal ganhou recentemente duas empresas de produção de brinquedos, "Science4You" (Lisboa) e "Ambar Science" (Porto), teve a reabertura da "Majora" (Porto), criada em 1939 e famosa por clássicos de tabuleiro como Sabichão, e mantém pequenas obstinadas como a BruPlast (Valongo). “Oxalá se aguentem nos seus nichos da educação científica e do revivalismo, pois não são bem concorrência direta dos chineses”, nota Lopes Cordeiro. Na Europa, as fábricas carismáticas foram encerrando desde os anos 80, face ao “boom” da Ásia. A maior resistente é a dinamarquesa "Lego", que, contudo, anunciou este ano a redução do seu pessoal. A título de curiosidade, a "Lego" foi imitada há três décadas por uma fabriqueta dos Açores, que lançou no mercado blocos ligeiramente maiores, sem sucesso. Outra resistente na Europa é a região da Andaluzia, no sul de Espanha; criou uma associação empresarial para o setor, que foi organizando feiras desde os anos 20, participou em eventos internacionais sucessivos e exigiu taxas alfandegárias para brinquedos importados. “Em Portugal foi ao contrário. O setor nunca se uniu, o que o debilitou, nem promoveu feiras de industriais, que servem de estímulo ao aparecerem inovações e redes de contactos. E só nos anos 60 certas empresas começaram a ir a feiras lá fora”, evoca o professor, para atalhar: “A nossa produção viveu virada para si, tal como a sociedade e o país politicamente viviam”.
 

Uma visita ao museu
 
O Museu do Brinquedo Português fica em Ponte de Lima e é o primeiro do género. O ex-libris desta indústria nacional é um passeio pedagógico década a década, com a evolução de bonecas, veículos, soldados, barcos, instrumentos, jogos… As peças decanas são relíquias oitocentistas em madeira ou lata. Nas estantes inclui-se também a fabricação nacional com moldes estrangeiros e sente-se as alterações sociopolíticas que se foi vivendo. Há quatro mil peças para ver, das dezenas de milhar que Carlos Anjos junta desde miúdo. Ele que queria ainda abrir um museu só com os seus brinquedos de plástico, em Leiria, que nos anos 50 a 70 superou as cem fábricas de plásticos. Para já, Anjos ultima o livro “Brinquedos de plástico em Portugal”, após “O Brinquedo em Portugal” (1997), que publicou com João Arbués Moreira, promotor do Museu do Brinquedo de Sintra, o qual teve 60.000 peças e fechou em 2014 por falta de apoios, dando lugar ao tecnológico NewsMuseum – Museu das Notícias. No país, há ainda museus do brinquedo e do brincar em Vila Verde, Vagos, Seia, Torres Vedras, Lisboa (marionetas), Faro e Funchal, tendo a maioria deles peças nacionais e estrangeiras. O Museu dos Biscainhos, em Braga, integra a principal coleção de brinquedo português afeta ao Estado.
 


Investigar mais sobre azulejo
 
Tal como nos brinquedos, o azulejo português carece de fontes históricas, pois a maioria das fábricas desapareceu e não houve a preocupação de se guardar arquivos e catálogos, para se saber quem, onde, quando e como se produziu determinada peça. Este setor da cerâmica tem gerado interesse internacional de estudiosos e curiosos, inclusive do Brasil, para onde se exportou o material desde o século XVII e que está presente em imensas fachadas, como em São Luís do Maranhão. “Portugal produziu uma variedade enorme de azulejos e teve umas 30 fábricas importantes, como em Gaia, Porto, Aveiro, Ovar e Lisboa. O problema é que não há registos do que se fez, salvo em casos como a Fábrica de Cerâmica das Devesas”, refere José Manuel Lopes Cordeiro. A procura pelo tema está também ligada aos roubos regulares de azulejos históricos e artísticos do exterior e interior de edifícios, como as igrejas. Neste âmbito, o Projeto SOS Azulejo é uma ajuda importante, a par da rede de contactos com antiquários, quando aparecem azulejos antigos.